Aurora sem dia – Conto

Aurora sem dia

Joaquim Maria Machado de Assis

Leitura dramática: Marcelo Lima ; música: Sonata para cordas de Carlos Gomes [1894]

machado-de-assis-1904

Naquele tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado igual afeição.

Luís Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã acordou Luís Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera, amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco levou a produção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os pedidos.

Mal dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a noite que precedeu a publicação. A aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou-se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém-nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido.

Não dormiu sobre os louros imaginários. Daí a dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode sentimental em que o poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a amada, e já entrevia no futuro a morte melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou, por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se chegou a suspeitar de inveja dos redatores do Correio Mercantil. A poesia saiu enfim; e tal contentamento produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho a grande revelação.

— Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.

— Homem, tu sabes que eu só lia os jornais no tempo em que era empregado efetivo. Desde que me aposentei não li mais os periódicos…

— Pois é pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.

— E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra coisa.

— Falam de política e publicam versos, porque ambas as coisas têm entrada na imprensa. Quer ler os versos?

— Dá cá.

— Aqui estão.

O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e impossíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.

— Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?

Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo desdém:

— São coisas de poesia que nem todos entendem; esses versos sem graça são meus.

— Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.

— Sim, senhor.

— Pois tu fazes versos?

— Assim dizem.

— Mas quem te ensinou a fazer versos?

— Isto não se aprende; traz-se do berço.

Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava à idéia de poeta a idéia de mendicidade. Tinham-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina, expectorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas-grandes. Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.

— Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.

— Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta?

— Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.

O Dr. Lemos tranqüilizou o homem dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostrou-lhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros, para ser deputado, ministro ou diplomata.

— No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei falar ao Luís; quero ver o que ele tem feito, porque como eu também fui outrora um pouco versejador, posso já saber se o rapaz dá de si.

Luís Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas produções não publicadas. Estas orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões comuns, frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum lampejo que indicava da parte do neófito propensão para o mister; podia ser ao cabo de algum tempo um excelente trovador de salas.

O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza que a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários.

— Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.

— Não me parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar antes algum tempo.

Não é possível descrever o gesto de soberbo desdém, com que Luís Tinoco arrancou os versos ao doutor e lhe disse:

— Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende, traz-se do berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava.

E saiu.

Daí em diante foi impossível ter-lhe mão.

Tinoco entrou a escrever como quem se despedia da vida. Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar. Luís Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do ceticismo byroniano, que tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para ele a vida tinha escrita na porta a inscrição dantesca. A inscrição era citada com as próprias palavras do poeta, sem que aliás Luís Tinoco o tivesse lido nunca. Ele respingava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas de Otelo. Tinha a respeito de biografias ilustres noções extremamente singulares. Uma vez, agastando-se com a sua amada — pessoa que ainda não existia, — aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense podia produzir monstros daquela espécie, do mesmo modo que o sol italiano dourara os cabelos da menina Aspásia. Lera casualmente alguns dos salmos do Padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava mais benevolamente da “Morte de Lindóia”, nome que ele dava ao poema de J. Basílio da Gama, de que só conhecia quatro versos.

Ao cabo de cinco meses tinha Luís Tinoco produzido uma quantia razoável de versos, e podia, mediante muitos claros e páginas em branco, dar um volume de cento e oitenta páginas. A idéia de imprimir um livro sorriu-lhe; e daí a pouco era raro passar por uma loja sem ver no mostrador um prospecto assim concebido:

GOIVOS E CAMÉLIAS
POR
LUÍS TINOCO
Um volume de 200 páginas… 2$000 rs.

O Dr. Lemos encontrou-o algumas vezes na rua. Andava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que se supõem apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás.

O Dr. Lemos falou-lhe a terceira vez que o viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não pôde deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns elogios às suas produções. Expandiu-se-lhe o rosto:

— Obrigado, disse ele; esses elogios são o melhor prêmio das minhas fadigas. O povo não está preparado para a poesia: as pessoas inteligentes, como o doutor, podem julgar do merecimento dos outros. Leu a minha “Flor pálida”?

— Uns versos publicados no domingo?

— Sim.

— Li; são galantíssimos.

— E sentimentais. Fiz aquela poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez. Que lhe parecem aqueles esdrúxulos?

— Acho-os esdrúxulos.

— São excelentes. Agora vou levar algumas estrofes que compus ontem. Intitulam-se “À beira de um túmulo”.

— Ah!

— Já assinou o meu livro?

— Ainda não.

— Nem assine. Quero dar-lhe um volume. Sai brevemente. Estou recolhendo as assinaturas. Goivos e camélias; que lhe parece o título?

— Magnífico.

— Achei-o de repente. Lembraram-me outros, mas eram comuns. Goivos e Camélias parece que é um título distinto e original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias.

— Justamente.

Durante esse tempo, ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papéis. Procurava as estrofes de que falara. O Dr. Lemos quis esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço. Ameaçado de ouvir ler os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele.

Foram a um hotel próximo.

— Ah! meu amigo, dizia ele em caminho, não imagina quantos invejosos andam a denegrir o meu nome. O meu talento tem sido o alvo de mil ataques; mas eu já estava disposto a isto. Não me espanto. A enxerga de Camões é um exemplo e uma consolação. Prometeu, atado ao Cáucaso, é o emblema do gênio. A posteridade é a vingança dos que sofrem os desdéns do seu tempo.

No hotel procurou o Dr. Lemos um lugar mais afastado, onde não chamassem muito a atenção das outras pessoas.

— Aqui estão as estrofes, disse Luís Tinoco conseguindo arrancar de um maço de papéis a poesia anunciada.

— Não lhe parece melhor lê-las à sobremesa?

— Como quiser, respondeu ele; tem razão, porque eu também estou com fome.

Luís Tinoco era todo prosa à mesa do jantar; comeu desencadernadamente.

— Não repare, dizia ele de quando em quando; isto é o animal que se está alimentando. O espírito aqui não tem culpa nenhuma.

À sobremesa, estando na sala apenas uns cinco fregueses, desdobrou Luís Tinoco o fatal papel e leu as anunciadas estrofes, com uma melopéia afetada e perfeitamente ridícula. Os versos falavam de tudo, da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério.

Os cinco fregueses jantantes voltaram a cabeça, quando Luís Tinoco começou a recitar os versos; depois começaram a sorrir e a murmurar alguma coisa que os dois não puderam ouvir. Quando o poeta acabou, um dos circunstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luís Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo:

— Não é conosco.

— É, meu amigo, disse ele resignado; mas que lhe havemos de fazer? quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte?

— Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não compreendem o que é um poeta.

— Vamos!

O Dr. Lemos pagou a conta e saiu atrás de Luís Tinoco, que deitou ao rideiro um olhar de desafio.

Luís Tinoco acompanhou-o até à casa. Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de cor. Quando ele se entregava à poesia, não a alheia, que o não preocupava muito, mas a própria, podia-se dizer que tudo mais se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo. O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem suporta a chuva, que não pode impedir.

Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os jornais prometeram analisar mais de espaço.

Dizia o poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte “vir assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas que todo aquele que sentia dentro de si o j’ai quelque chose là, de André Chénier, devia dar à pátria aquilo que a natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os seus verdes anos, e afirmava ao público que não tinha sido “embalado em berços de seda”. Concluía dando a bênção ao livro e chamando a atenção para a lista dos assinantes que vinha no fim.

Esta obra monumental passou despercebida no meio da indiferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao folhetinista.

O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal; só perdeu de vista o homem, porque o poeta de quando em quando lhe aparecia metido em alguma produção literária que o Dr. Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco. Não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene que escapasse à inspiração do fecundo escritor. Como o número de suas idéias fosse mui limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas coisas eram a mesma coisa dita por outro modo. O modo, porém, constituía a originalidade do poeta, originalidade que ele não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com o tempo.

Infelizmente enquanto se entregava com ardor às lides literárias, esquecia-se o poeta das lides forenses, de onde lhe vinha o pão. Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, numa carta que acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez”.

O Dr. Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o espírito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se.

— Ainda bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora, disse ele; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade.

— Tem razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas.

— Li há dias num papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias. Percebi a intenção. Acusava-me de não meter ombros a obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema épico!

“Ai!” disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada do poema.

— Podia mostrar-lhe alguma coisa, continuou Luís Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada.

— Muito bem.

— Tem dez cantos, cerca de 10.000 versos. Mas quer saber a minha desgraça?

— Qual é?

— Estou apaixonado…

— Realmente, é uma desgraça na sua posição.

— Que tem a minha posição?

— Creio que não é excelente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco das suas obrigações do foro, e que brevemente lhe vão tirar o emprego.

— Fui despedido ontem.

— Já?

— É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me.

— Mas… de que viverá agora? seu padrinho não pode, creio eu, com o peso da casa.

— Deus me ajudará. Não tenho eu uma pena na mão? Não recebi do berço um tal ou qual engenho, que já tem dado alguma coisa de si? Até agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras; mas era só amador. Daqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o pão.

A convicção com que Luís Tinoco dizia estas palavras, entristeceu o amigo do padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante alguns segundos — com inveja, talvez, — aquele sonhador incorrigível, tão desapegado da realidade da vida, acreditando não só nos seus grandes destinos, mas também na verossimilhança de fazer da sua pena uma enxada.

— Oh! deixe estar! continuou Luís Tinoco; eu hei de provar-lhes, ao senhor e a meu padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não me falta coragem, doutor; quando me faltasse, há uma estrela…

Luís Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancolicamente para o céu. O Dr. Lemos também olhou para o céu, mas sem melancolia, e perguntou rindo:

— Uma estrela? Ao meio-dia é raro…

— Oh! não falo dessas, interrompeu Luís Tinoco; lá é que ela devia estar, ali no espaço azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ela e menos formosas…

— Uma moça?

— Uma moça, é pouco; diga a mais gentil criatura que o sol ainda alumiou, uma sílfide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura…

— Escusa dizê-lo; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta.

— Meu amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu adoro-a…

— E ela?

— Ela ignora talvez que eu me consumo.

— Isso é mau!

— Que quer? disse Luís Tinoco enxugando com o lenço uma lágrima imaginária; é fado dos poetas arderem por coisas que não podem obter. É esse o pensamento de uns versos que escrevi há oito dias. Publiquei-os no Caramanchão Literário.

— Que diacho é isso?

— É a minha folha, que eu lhe mando de quinze em quinze dias… E diz que lê as minhas obras!

— As obras leio… Agora os títulos podem escapar. Vamos porém ao que importa. Ninguém lhe contesta talento nem inspiração fecunda; mas o senhor ilude-se pensando que pode viver dos versos e dos artigos literários… Note que os seus versos e os seus artigos são muito superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos aceitação.

Este desenganar com as mãos cheias de rosas produziu salutar efeito no ânimo de Luís Tinoco; o poeta não pôde sofrear um sorriso de satisfação e bem-aventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa de um advogado. Luís Tinoco olhou para ele algum tempo sem dizer palavra. Depois:

— Volto ao foro, não? disse ele com a mais melancólica resignação deste mundo. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco de quê? A troco de uns magros mil-réis que eu não tenho e me são necessários para viver. Isto é sociedade, doutor?

— Má sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas não há outra à mão, e a menos de não estar disposto a reformá-la, não tem outro recurso senão tolerá-la e viver.

O poeta deu alguns passos na sala; no fim de dois minutos estendeu a mão ao amigo.

— Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata de meus interesses, sem desconhecer que me oferece um exílio.

— Um exílio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos.

Daí a dias estava o poeta a copiar razões de embargos e de apelação, a lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquele emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O Dr. Lemos não lhe falou durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo poema.

— Está parado, respondeu Luís Tinoco.

— Deixa-o de mão?

— Conclui-lo-ei quando tiver tempo.

— E a folha?

— Deve saber que acabei com ela; não lha mando há muito tempo.

— É verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então acabou o Caramanchão Literário?

— Deixei-o morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta assinantes pagantes…

— Mas então abandona as letras?

— Não, mas… Adeus.

— Adeus.

Pareceu simples tudo aquilo; mas tendo-se ganho alguma coisa, que era empregá-lo, o Dr. Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse anunciar a causa do seu sono literário. Seria o namoro de Laura?

Esta Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos, nome que lhe parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto existiu esse namoro, e em que proporções correspondeu a moça à chama do rapaz? A história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe com certeza é que um dia apareceu um rival no horizonte, tão poeta como o padrinho de Luís Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o redator do Caramanchão Literário, e que de um só lance lhe derrubou todas as esperanças.

Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta florentino. Quando ele a acabou e emendou, releu-a em voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou a harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a sua melhor produção. O Caramanchão Literário ainda existia; Luís Tinoco apressou-se a levar o escrito ao prelo, não sem o ler aos seus colaboradores, cuja opinião foi idêntica à dele. Apesar da dor que o devia consumir, o poeta leu as provas com o maior desvelo e escrúpulo, assistiu à impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante muitos dias releu os versos até cansar. Do que ele menos se lembrava era da perfídia que os inspirou.

Esta porém não era a razão do sono literário de Luís Tinoco. A razão era puramente política. O advogado, cujo escrevente ele era, tinha sido deputado e colaborava numa gazeta política. O seu escritório era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente dos partidos e do governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a indiferença de um deus envolvido no manto da sua imortalidade. Mas a pouco e pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Já lia os discursos parlamentares e os artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo, porque naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou indiferença. Um dia levantou-se com a convicção de que os seus destinos eram políticos.

— A minha carreira literária está feita, disse ele ao Dr. Lemos quando falaram nisto; agora outro campo me chama.

— A política? Parece-lhe que é essa a sua vocação?

— Parece-me que posso fazer alguma coisa.

— Vejo que é modesto, e não duvido que alguma voz interior o esteja convidando a queimar as suas asas de poeta. Mas, cuidado! Há de ter lido Macbeth… Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Há no senhor demasiado sentimento, muita suscetibilidade, e não me parece que…

— Estou disposto a acudir à voz do destino, interrompeu impetuosamente Luís Tinoco. A política chama-me ao seu campo; não posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do poder, as baionetas dos governos imorais e corrompidos, não podem desviar uma grande convicção do caminho que ela mesma escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da verdade. Quem foge à voz da verdade? Os covardes e os ineptos. Não sou inepto nem covarde.

Tal foi a estréia oratória com que ele brindou o Dr. Lemos numa esquina onde felizmente não passava ninguém.

— Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta.

— O que é?

— Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo, e ser seu protegido; é o meu desejo.

O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco. Foi ter com o advogado e recomendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude, mas também sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de São Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguém de aumentar o pessoal militante; recebeu a recomendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia seguinte, disse algumas palavras benévolas ao escrevente, que as ouviu trêmulo de comoção.

— Escreva alguma coisa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe achamos propensão.

Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé. O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez; todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa da publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do protetor.

— Há de perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo aos amigos.

O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado à terra para endireitar os tortos políticos.

Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estréia política do ex-redator do Caramanchão Literário. Era assim:

Releve o poder — hipócrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés, conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela: é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometeu atado ao Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo ao suplício, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos que amam a verdade, o remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo.

Luís Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da estação literária veio a reproduzir-se na estação política; o protetor, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela, produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras — demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.

Algum tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de ficar batido. Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex-deputado Z.?”

Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado, lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena Câmara dos Comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís Tinoco ignorava até aquela data a existência de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e cautela perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico “para refrescar a memória”. O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe idéia dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que era e não era pimpolho.

Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho a grande aprazimento seu e no meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu, e armou-se de paciência para esperar.

Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não conservou levaram o jovem publicista à província natal do seu amigo e protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais. Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as que ali o demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses depois, colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa criou Luís Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar algum tempo. O padrinho já estava morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem família.

A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A idéia de possuir duas armas, brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe idéia crônica, presente, inextinguível. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, teve-a quando se enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe pusesse em dúvida o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe contestavam excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé profunda e intolerante — que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.

Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escritos da província, e contava-lhe singelamente as suas novas esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembléia Provincial era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte trouxe notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos consumados.

A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pôde ter a honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.

A noite foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís Tinoco via-se já troando na Assembléia Provincial, entre os aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloqüência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava mentalmente os gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província.

Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável até, para que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O ex-poeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou cinco daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem, e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do império, e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do comando ministerial.

Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro e o espírito a vagar por esse mundo fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como estava o dele naquela ocasião.

Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava observar, desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava assim:

Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até lá), nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la.

Inauguraram-se enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de falar que, logo nas primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas em que demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar, alçar, cair e bater com a mão direita.

O estilo também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite, a despesa à brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro. Toda a maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante.

Infelizmente os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse:

— Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna. Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da província. Imediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado.

Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.

O SR. LUÍS TINOCO. — O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados).

O orador: — Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camélias. Vejamos um goivo.

A Ela.

Quem és tu que me atormentas
Com teus prazenteiros sorrisos?
Quem és tu que me apontas
As portas dos paraísos?

Imagem do céu és tu?
És filha da divindade?
Ou vens prender em teus cabelos
A minha liberdade?

Vê V. Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembléia tem visto como ele trata as leis do metro.

Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.

Nem por isso Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava.

— Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi… Mas que tem, doutor? está espantado?

O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e camélias, o eloqüente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, — uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.

Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.

— Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos…

— Casado?

— Há vinte meses.

— E não me disse nada!

— Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo… Que duas criancinhas as minhas… lindas como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da província. Oxalá se pareçam também com ela nas qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!…

Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política.

— De vez?

— De vez.

— Mas que motivo? desgostos, naturalmente.

— Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.

— Pois teve ânimo?…

— Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar.

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JOÃO, MAIS UM FILHO DE NOSSA ORGULHOSA BAHIA DE SÃO SALVADOR

JOÃO, mais um FILHO de nossa orgulhosa BAHIA de SÃO SALVADOR

Entrevista

por Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

Em certas rodas aqui por Minas, algumas vozes têm dito que entre os nascidos na Bahia, nenhum outro poeta recente tem se destacado quanto João Fernandes Filho. Os menores no Reino da Poesia conseguem facilmente dele uma entrevista especial, devido sua generosidade. Esse é o nosso caso.

João, conte-nos um pouco da sua infância, sua relação com a família e comunidade, sua região, sua terrinha. O escritor brotou na alma muito cedo, como nós leitores seus fomos informados. Queremos saber mais disso.

Minha infância se passou em Bom Jesus da Lapa, interior da Bahia, e tive o amor, a proteção e a liberdade necessárias dos meus pais para viver uma meninice pobre, mas riquíssima em aventuras – brincar na chuva, brincar de roda, ouvir histórias na noite em frente à casa etc. –, passar as férias na casa do meu avô materno, em cima da serra, a luz era de fifó, e a água no pote buscada na fonte. Na rua Santa Luzia, no Bairro São Miguel, em Bom Jesus da Lapa, não havia calçamento, e, após as chuvas, encontrávamos pequenos cágados nas poças de lama. A mata era próxima, o rio era próximo. Meus pais – seu João Galego e dona Dilza – cuidaram de nós, meus irmãos e eu, com raro amor e responsabilidade. Agora, por meio de sua pergunta, revendo tudo isso, percebo que tive uma infância lendária por ser simplesmente isso – uma infância comum de menino do interior do Brasil na década de 1980.

Quem é João Filho? De onde veio, onde está e para onde pretende ir?

Sou um pecador. Vim da lama, estou tentando ser limpo pelo Cristo; o problema, é claro, não é Ele, mas eu que atrapalho. E, pela misericórdia d’Ele, tenho a esperança de morar nem que seja no último casebre da periferia do Céu. Em termos pedestres, João Filho é poeta e professor, doutorando em literatura portuguesa na USP. 

Como foi a experiência rebelde de escrever letra de canções punk? Como está o letrista João hoje? O que tem ouvido? Qual o conselho que João daria aos letristas iniciantes?

Uma das minhas primeiras experiências literárias foi uma letra que escrevi com um amigo. Se não me engano, acho que com 13, 14 anos. De lá para cá, eu escrevi letras para os ritmos e gêneros mais diferentes, do punk como você indicou até o famigerado arrocha.

Hoje, os parceiros musicais mais constantes são compositores da linha do bom cancioneiro tupiniquim.

Ouço muita coisa. Para ficarmos em dois exemplos do momento: o primeiro disco do Clube da Esquina e Arvo Part.

O conselho é simples, e, acredito, todos os jovens letristas saibam: na letra prevalece a música, mas não deixem jamais de escrever letras belas, boas e verdadeiras.

Essa predileção pelo teatro lido ao assistido, queremos saber.

Na verdade, é uma deficiência minha. Tive, claro, contato com a área, escrevi uma peça – Auto do São Francisco –, mas não sou do métier do teatro. Para mim funciona mais ler a peça do que assisti-la no palco, o que é um contrassenso porque o teatro acontece no palco. Se as declamações forçadas de um poema me aborrecem, assim também as encenações antinaturais (eu sei que o termo é perigoso ao se falar de teatro) me entendiam sobremaneira.    

Genética. Processo de criação. “Faço tudo no facão, depois tomo o estilete”. A fase artesanal ajuda a alma mesmo? Há quem considere que uma coisa é desligada da outra. Explique o seu caso.

Na poesia, eu tento lapidar no momento mesmo da primeira escrita. A cada verso procuro a melhor construção sonora e imagética dentro de um contexto que faça sentido. Claro, que, depois, relendo antes de publicar em livro, eu refaço alguns versos. Tenho um arquivo imenso com poemas que não deram certo, ou que não gostei, ou que ficaram pela metade etc. Aproveito muito desse arquivo. Guardo também imagens, e até mesmo palavras, surgidas ao longo dos anos, e que, algum dia, poderei usar num verso.   

Na prosa é que faço anotações de ideias, cenas, diálogos para somente depois rearrumar, reescrever etc. Ao escrever prosa sempre refaço depois.

Forjar manifestos, escolas, movimentos hoje em dia soa cafona por quê? Para quem?

Não sei se soa cafona, mas os grupos são necessários. Escritores, de alguma maneira, sempre encontram sua “turma” estética mesmo que ideologicamente não se coadunem. Situação cada vez mais rara porque as ideologias têm prevalecido acima de todas as relações humanas. O que é uma coisa miserável. Mas, respondendo sua pergunta: cada poeta, consciente do seu ofício, possui uma cosmovisão, o que quer dizer, em outras palavras, traz escondido um manifesto, uma estética. No atual cenário brasileiro, e vejo também em outros países, a dimensão estética é a mais desprezada nos mais variados gêneros artísticos.

Proseie mais do poeta-balconista, comerciante, atendente, distribuidor de congêneres. Em verso, esse tema econômico e vital interessou bastante ao entrevistador, que defende a Rerum Novarum, o distributivismo justo. “Suum cuique tribuere” 《Dê a cada um o que é seu》》. Uma das unidades da Justiça ensinada por Ulpiano. O poeta Antônio Augusto de Mello Cançado, incansavelmente, reensina-nos até hoje aqui em Minas. (?) 

A Venda do meu pai, João Galego, é um dos meus lugares míticos. Fui criado dentro da Venda (sempre com inicial maiúscula). Quando me perguntam das minhas influências literárias, eu uso a figura do poeta-balconista que sempre rouba um pouco de cada freguês-escritor que aparece no balcão da Venda. Escrevi muitos poemas que falam ou fazem referência à Venda e ao seu universo, mas há um que não posso ler em público porque não seguro as lágrimas, é o “A Venda por dentro”, do livro Auto da Romaria. O poeta-balconista, em outra perspectiva, é também um atendente que procura servir caridosamente os seus leitores. Um leitor é o maior presente para um poeta. Ninguém é obrigado a ler o que escrevemos, a comprar o livro que publicamos; devemos conquistar esse leitor com uma escrita que contenha algo daqueles versos de don Antonio Machado: “umas poucas palavras verdadeiras.”

Colecionamos muita poesia dos anos 60, 70, 80, 90 e da dita “Poesia da Era-Lula”. Nesta última, gargalos das anteriores, a meu ver, predominou as forças demasiadamente sensitivas, engajadas no coletivismo autoritário, utopia do socialismo-XXI. Em seu livro-balancete “Dez anos que encolheram o mundo (2001-2010)”, Piza aponta a migração e o exílio como temas repisados na prosa. Incrível como as 《《editorias enviesadas e dirigidas 》》de literatura antecipam os efeitos e consequências das sementes ideológicas. Hoje vemos os venezuelanos, os nossos exilados políticos, as perseguições e as injustiças. Na poesia (2001-2010), Daniel destaca Ferreira Gullar e Fabrício Carpinejar apenas. Qual sua opinião sobre esse balanço do jornalista?

Não li o livro do Daniel Piza. Mas concordo com o resumo que você faz. Direi o óbvio (cada vez mais é vital ser dito): literatura é a arte da linguagem trabalhada artisticamente. É preciso distinguir que linguagem nesse sentido não é beletrismo, e nem o seu contrário – o desleixo. É necessário equilibrar três pilares muito bem compilados por Bruno Tolentino: abrangência, profundidade e feeling (sentimento e sinceridade). Sustentados por esses três pilares a linguagem engendra a forma. A forma é a alma da obra (forma e não fôrma). Sem isso não há obra de arte em gênero algum. A melhor poesia moderna ou pós-moderna não fugiu desse caminho.  

Não concordo com Daniel Piza no destaque de dois poetas apenas nesse período de 2001 a 2010. Entre os mais velhos, a grupo de 1965 de Pernambuco estava atuando e com renome nacional – Alberto da Cunha Melo, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly etc. Entre os mais jovens – Érico Nogueira, Astier Basílio, Mariana Ianelli etc. Cito apenas alguns nomes de destaque nacional.

Daniel Piza incomodou muitos “coletivildos tirânicos”, pelo que sei. Mas nesse caso somos dois na discordância. Serão procurados e lidos seus autores citados. Vamos falar um pouco de crítica literária. Em 2005 o Sr. Wilson Martins disse no Caderno Idéias do Jornal do Brasil: “só sou conservador na medida que a literatura é conservadora. Não se pode revolucionar a literatura todos os dias.” Comente, por favor.

Grande Wilson Martins! Em alguns pontos de vista (por sinal, é o nome da coleção em vários volumes de sua crítica que abarca de 1954 até 2000), eu não concordo com ele, um exemplo entre tantos: sua leitura historicista da obra de Cecília Meireles. Contudo, Wilson Martins foi um gigante da crítica brasileira e não apenas literária. Estou de acordo com o comentário que você destaca do escritor paranaense. Revolucionar a literatura todos os dias é tentar recriar a roda, esquecer a imensa história da literatura que nos antecede, de Homero para cá são mais de três mil anos de escrita literária! Há que se ter um mínimo de noção e humildade com esse quase infindável acervo. O surgimento de um James Joyce, de um Guimarães Rosa (cito os grandes revolucionários) é o ápice de um período que, por acúmulo e verticalização, radicalizou os experimentos na arte romanesca. E como disse o grande mineiro é no “mais mesmo da mesmice que vem a novidade.” Sei, claro, as formas literárias caducam, precisam ser renovadas, mas, antes, é a sensibilidade nova que pede formas novas, novos caminhos. E sensibilidade não é feito a moda que muda toda semana. Desse modo, as tais revoluções da literatura apregoadas todos os anos não passam de repetições mecânicas. Quem revoluciona o tempo todo não percebe paradoxalmente a imobilidade cadavérica do seu estado.

O escritor Douglas Lobo frisa sobre “a ingênua expectativa” do Afrânio Coutinho a respeito da atividade crítica migrar dos periódicos para as universidades; já outros autores se entusiasmaram pelo fato da crítica migrar das universidades para as redes de internet. No primeiro caso, teríamos um aperfeiçoamento do gênero; no segundo, por sua vez, ganharíamos mais liberdade e acessibilidade.  Como o senhor vê esses fenômenos relacionados a suportes, ambientes, jargões etc.?

Vale deixar registrado aqui um livro que mapeia essa mudança – da chamada crítica impressionista (termo pejorativo cunhado por Afrânio Coutinho) para a crítica universitária – Crítica literária em busca do tempo perdido? De João Cezar de Castro Rocha.  

Outro registro que acho necessário: é um abuso tratar como diletantes críticos da excelência de Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Sergio Milliet, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Eugênio Gomes, Brito Broca, Fausto Nilo etc. Pois foi isso que fez uma boa parte da crítica universitária. Esta, no entanto, não pode ser ignorada, porque há material de altíssimo nível.   

Com a mudança do suporte deveríamos ganhar mais espaço e liberdade. Por exemplo: na internet o espaço e a liberdade são maiores, e quem desejar é só escrever, mas a qualidade é muitas vezes duvidosa. O jargão, não obstante, é inescapável. É assim em todas as áreas, não é mesmo? Claro que há exageros. O suporte em si mesmo é algo bom. A internet, para o pesquisador sério, é uma ferramenta, hoje, inescapável.    

Não sabia que Fausto Nilo escreve crítica. Deve ser ótimo, pois é arquiteto e compositor. Um ensinamento como “O ideal do Crítico” de Machado de Assis e os apontamentos de um José Veríssimo guardam ainda alguma utilidade para os dias de hoje?

Li os dois autores, mas confesso de que não me lembro de quase nada da crítica deles. Teria que relê-los para responder sua pergunta.  

“O advogado é o poeta da Justiça. O poeta é o advogado da beleza”, disse José Martiniano de Alencar. Quais seriam as responsabilidades de um poeta nos dias de hoje nessas questões de ética, estética, direitos humanos (direitos culturais), justiça e paz social?

A primeira responsabilidade de um poeta é escrever boa poesia. Seu ofício tem como base o bom, o belo e o verdadeiro. A dimensão estética vem sempre em primeiro plano. O resto vem por acréscimo. Se ele deseja fazer justiça e promover a paz social, então, vá cuidar dos pobres e oprimidos. Mas em nome de Deus e não de uma ideologia qualquer.

Filosofia. No poema Luz Primeira, da terceira parte do livro A dimensão necessária encontramos a relação conflitante do atomismo grego com a genealogia judaica. Origens dos elementos (lumens e sons), o firmamento, as criaturas tais e quais. Poderia nos dizer de seu percurso nos exercícios filosóficos? Mais por questões, problemas e sensações ou mais pela historiografia?

Com certeza pelas questões e problemas que me surgiram ao longo da vida. Não sou filósofo, e, acho, não tenho capacidade para tanto. Mas algumas questões filosóficas básicas foram intuídas desde quando eu era menino. Claro, com a intuição infantil. Uma delas na quarta série primária, e eu só soube o nome décadas depois: o infinito quantitativo. Numa aula, a estagiária falou que poderíamos perguntar o que quiséssemos. Eu fiquei intimidado porque ela me pareceu com cara de poucos amigos, apesar de permitir as perguntas. No entanto, meu pensamento de menino partiu de onde estava, em Bom Jesus da Lapa, e foi se ampliando em círculos concêntricos cada vez maiores, Bahia, Brasil, América do Sul, planeta terra, Via Láctea, e esbarrou nessa imensidão. Minha pergunta seria se não tivesse ficado intimidado: – E depois? O que é que há depois? Porque, para o menino ali, o que vinha depois era um imenso vazio branco. Eu não conseguia ultrapassá-lo de nenhuma maneira.  

Assim, minhas leituras filosóficas foram feitas a partir de questões que me surgiram ao longo dos anos. Mas também me apoiei na historiografia. O eixo geral de minhas perguntas é comum à história da filosofia – de onde viemos, para onde vamos, quem sou eu e o que faço aqui. Nada de novo.

Pergunta frequente. Afinal, poesia lírica é ou não é traduzível? Anderson Braga Horta diz que “alguns proeminentes autores dizem que não, mas os tradutores não acreditam e traduzem sem parar (…) território nebuloso, ambíguo.” Como João Filho imagina o efeito de sua poesia no leitor pensante e falante em outros idiomas?

A tradução é uma aproximação ao que foi escrito na língua de partida. E a tradução, de qualquer área que seja, é a veia aorta que ajuda a bombear vida às culturas. Quem é que conhece todas as línguas? Logo, é vital a tradução. Terá sempre perdas e ganhos, óbvio.

Está aí uma pergunta que nunca me fiz. Sério mesmo. Pensando nisso agora, eu mais desejo do que imagino: que os meus poemas, ou um verso, possam abrir uma pequenina janela de luz no coração do leitor estrangeiro.

Subsídios ( dois dos autores citados pelo entrevistador):

https://editoradanubio.com.br/o-futuro-da-literatura-brasileira-douglas-lobo/

Douglas Lobo

Daniel Piza

   







CAMINHANDO SOBRE A LETRA: A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

CAMINHANDO SOBRE A LETRA: A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

G. rios

Há duas categorias de sujeito: aquele, do enunciado; este, da enunciação. O primeiro se manifesta na superfície da letra. O segundo, na esfera do não-dito. Geralmente, as pessoas somente conseguem ler a mensagem propriamente revelada. Mostram-se incapazes de perceber que há mistério, insinuando-se na palavra. Tais indivíduos tornam-se objeto de manipulação do emissor, principalmente da mídia, esperta raposa.

Exemplificando, emitiu-se há pouco tempo um texto jornalístico, mencionando bilhões de reais esquecidos no Banco Central. Afoitos, todos digitaram nome e endereço, dispostos no mesmo anúncio. Receberam, no máximo, trinta moedas do Judas. Ouvimos muitos discursar, enganados, pois acreditavam obter mais que cinquenta centavos. Ludíbrio, perspicácia ilusória sobre o inocente receptor.

Olhos eletrônicos ou de psicólogos vigiam o cliente na loja. Percebem o motivo de atração do produto sobre ele. Seria a cor, a embalagem, a localização na prateleira? Conforme o caso, na próxima visita, o objeto será diferente.

Por que brinquedos ocupam o lugar embaixo? Claro. Crianças são pequenas, quanto ao tamanho físico. Por que o material de luxo fica em cima? Ah! Porque a maior classe compradora constitui-se de B, C, D, E. Elementos da classe A jamais se importam com preços.  Daí, o valor em dinheiro está em caixa alta no sabão ou detergente da estante mediana. O Whisky caríssimo dispensa comentário. Ofende-se o cliente com alguma menção de preço.

Propaganda subliminar age sob o desejo popular. A mercadoria pode ser mais valiosa pela sensualidade que pelo significado consumista. Sabonetes, perfumes, cremes, sugerem aspecto sexual através do formato externo, gravuras sedutoras, papéis macios.

Quem adquire o objeto em questão, possivelmente se esquecerá da natureza ruim daquilo que se esconde na embalagem.  Aí permanece de guarda o aparato da opressão. O dominador sabe enganar o incauto sujeito. Grupos políticos vendem imagem falsa. Corruptos se fazem passar por construtores da Pátria. Por trás da aparência, empresas oferecem gato por lebre.

Redes de tevê, computador, celular, puxam para dentro da toca do coelho a ingênua Alice no País das Armadilhas. Parece hoje que os jovens marcham enfileirados ao comando da telinha. Presos nela, obedecem à ordem do videogame, professor de guerra e violência contra o semelhante.

Iludidos, moços e moças se comunicam à distância máxima, pois no face to face predominaterrível enfrentamento ante o inimigo-Outro.  Adulto-pai prefere conversa online, porque a família também se enfronhou no celular. Sala de visitas: vivalma presente. Pai, mãe, filho, avós, todos ligados no Programa da tevê.

Impossível notar a dissemelhança entre esta Rede e as demais, na veiculação da idêntica notícia. Tudo igual no painel da memória fraca.  A hipocrisia ideológica dos canais maquila-se num rosto feminino, na exótica indumentária masculina, na voz grave do locutor.

Disfuncionalizam-se argúcia, inteligência, sinal vermelho.  Onde o substrato do enunciado? Futuro: Elege-se antigo candidato usurpador dos direitos do velho camarada ora votando. Durante o período da chamada Ditadura, artistas camuflavam a expressão autêntica da música, utilizando esse processo.

Chico Buarque na peça Calabar, elogia a traição do personagem. Assim, debocha em forma não-dita das torturas no Golpe Militar/64. Na letra de Passaredo indigna-se, solicitando que os ‘passarinhos’ fujam do perigo. Concede, silencioso, meios para que os companheiros se afastem da prisão iminente.

Cálice, de Milton Nascimento, oculta o termo cale-se, mensagem rebelde contra a censura da época. Ou seja, Não fale.  Cale o bico em público.  Vários outros artistas, Taiguara, Vandré, Edu Lobo, reforçam- lhes a boa estratégia.     

Faz cerca de dois meses, a Emissora Z apresentou imagens da rodovia T completamente lotada. O trânsito continuava embargado nas estradas próximas. Explicavam ao microfone que a plateia de determinado candidato à Presidência impedia a passagem dos veículos. Creio ter alguém telefonado, ameaçando o repórter. Daí a meia hora, o cenário muda. O impedimento provém de lamentável acidente, envolvendo duas carretas.  

Nossa grande desenhista, escritora, personalidade, Ângela Lago, publicou um livro denominado Sim, Não, Talvez. Nele, o rapaz quebra a perna. Enfaixado, recebe visita de um vizinho. ‘Que coisa! Azar, hein?’ Ao que a mãe responde: Sim. Não. Talvez.   Acontece, após, no país, guerra medonha.  Vizinho: ‘Imobilizado, ele não foi. Sorte, hein?’ Mãe: Sim. Não. Talvez. O jovem se casa. Ela: ‘Felicidade, né?’ Mas se divorcia. Etc etc. 

Há também a fábula em que o marido, querendo testar a confiança na esposa, contou-lhe ter botado um ovo. O fato aumenta de narração em narração. Ao regressar, o infeliz encontra a postos todos os meios de comunicação, ansiosos por saber como botara tantas dúzias do alimento.

Eis o motivo exato por que devemos aprender a lição: Vimos o produto? Vamos constatar se é bom. Ouvimos a notícia? O vizinho comentou? Averiguemos se a fala continua verossímil. Sim. Não. Talvez.

Escritores acolhem a plurissemia, a plurivocidade dos vocábulos. Professores em alerta descobrem sentidos imersos na textualidade. Guimarães Rosa, ao dar título ao conto Soroco, sua mãe, sua filha, concede o nome masculino a elucubrações leiturais. Tal história da geração louca sugere ‘Sou louco, Sou oco, Sou rouco’. Rouco, em razão de o doido entoar uma algaravia musical.

Observe-se a onomástica predileta de Machado. Em Quincas Borba, Palha representa o marido cego à leviandade da mulher Sofia, sábia namoradeira. Rubião acumula dinheiro e pedras preciosas por herança do amigo. Estamos mencionando apenas uma obra. Isso l é comum em romance, conto, poesia, de Assis.         

Urge que a escola leia rápido a enunciação. Diríamos, logre entender o inconsciente da matéria literária. O aluno aprenderá os dois níveis estudados. Tudo o que nos circunda possui histórias diferentes em si.

A tampa de refrigerante no asfalto relata sua trajetória pelo mundo. De onde veio? A que cenas anteriores assistiu? Onde esteve antes: numa festa, numa creche, num botequim? Nova atividade. Cansado de trabalhar, o que dizem os móveis, a favor do recém-chegado? ‘Deite-se aqui, sou limpa, amiga, macia. Aproveite-me’. Daí pra frente.

Conduzir as crianças para além do que está exposto, oral ou grafado, é tarefa simples. Lendo publicidade, advinda de clube, loja, açougue, poderíamos analisar com elas mentiras colocadas ali. O exagero da propaganda pode ser desmistificado pela releitura de seu conteúdo.

A beleza rara de um poema pode ser multiplicada, segundo inúmeros leitores. O autor do livro conhece esta realidade: cada um projetará seu horizonte de expectativa, seu repertório vivencial na obra. Portanto, serão livros que se fecham/abrem mil vezes antes de se fechar.

Tomemos um comercial de cigarros. Jamais será mencionado o imenso prejuízo causado pelo tabaco. O apelo cairá sobre a força, o esporte, o poder: ‘Quem fuma X sabe o que quer”. Sabe nada. É um ignorante a respeito de organismo. Afogado em malha comercial, ficará doente, fraco. Morrerá de cirrose.

Esse, o não-dito pelo ricaço dono da Empresa multinacional, inconsequente assassina. O produto é feito e divulgado de acordo com a faixa etária, o sexo, a predileção do comprador. Olho vivo, ó brasileiros.

Talvez, sim, não, tenhamos fornecido bons exemplos de leitura enunciativa em ambos os graus. Retiremos, pois, o consumidor da instância paciente. Seja ele o agente do ato escolhido. Livre arbítrio.

Quem se anima a brincar com a força do enunciado, sob a ótica da enunciação? Experimente desordenar letras da palavra. Roma é amor de trás para frente. Leia da última sílaba até a primeira, o palíndromo: ‘Socorram-me. Subi no ônibus em Marrocos’. Graça: raça, garça, garra. Raul: rua, lua, luar, Rá, lar… Jogos interessantes. Quantos mais?                                                                              

O garoto, a garota, verificam-se estimulados a observar o que sucede ao redor. Nesse aspecto, a grande cidade abre o leque de possibilidades. Quem vai para o Centro? Que indivíduos participam do movimento na Praça? Por que os mendigos pedem esmolas, e os favorecidos da sorte, não? Por que as pessoas demonstram raiva na fila do ônibus? Quem poderia ser o cara naquela Ferrari?

Em casa, o adolescente percebe detalhes pequeninos de afeto. Nada? Nota que o papai trabalha, viaja e se esforça por lhe dar conforto? Mamãe sai, traz o material escolar. Quanto cuidado em selecionar preço, qualidade, espessura do caderno! O estudante viu isso? A vovó traz uma barra de chocolate. Lembrou-se do neto. Ganha um beijo, obrigado? Ele/ela ingere maravilhosa macarronada. Agradece à empregada? Dá-lhe presentinho de aniversário?

Vamos à cozinha. O fogo. A água. A flor. O gelo. Que delícia de casa! O irmãozinho é muito fogoso. A prima vive na piscina. Tia Maria se veste com fores estampadas.  Eta, parente gelado! Nem um pouco sensível.

Nosso escritor mineiro Paulo Mendes Campos quis fazer uma crônica sobre o fantástico mundo onde vivemos. Começou a pesquisar. De repente, uma formiga atravessa a página do Livro de Ciências Humanas. Pronto. Percorrera o papel o insondável mistério da vida.  O redator foi capaz de ver a Terra inteira modificada por um bichinho à toa. Depois, lemos-lhe o texto repleto de alegria. Fonte motivacional para nosso próximo encontro com os quase invisíveis insetos.

Roland Barthes legou-nos O Prazer do Texto. Sugerimos autor e obra a quem nos segue aqui. Quando descobrimos o que é terapia literária, a criatividade nos assalta. Tristeza diz adeus. A pena vale a pena, seja de caneta, de dor, de asa em voo.  Construamos o ninho para todas as penas possíveis.

Pedro partiu para Portugal para pintar paredes e portas. Quá, quá, qual! Continuemos na língua do pê. É preciso mostrar aos filhos, alunos, conhecidos, que vibramos ao desenhar figuras. Pintar o Sete. Esculpir madeira. Colar estampas. ESCREVER. Será que influenciamos o companheiro do lado de fora a ser ledor contumaz?

O professor, de vez em quando, aparece com um livro. Põe na lousa exercício complicado de quê. Enquanto a turma se descabela, o mestre abre a história, dá pinotes, chora de tanto entusiasmo. Apostamos que, ao final da aula, os petizes perguntarão onde tem esse negócio.  Ele: ‘Na Biblioteca. Foi lá que vi Alexandre e outros Heróis. Ai, ai, cansei, ufa! de tanto rir. Vão atrás, é ótimo!’                                                   

Logico, professor e alunos participam da escrita coletiva. Uma frase aqui, outra lá, a escritura ganha pernas no papel ou no quadro. Painel, todos querem? Mural? Entrevista? Fantoche? Teatro vivo? Cinema? Podemos fazer um filme de vampiros. Trago a massa de tomate e os lençóis. Em grupo? Individual?  Mãos à obra. Ajudo na construção literária. Também escrevo. Adoro, pessoal.

Atenção! Hai-kais são estruturas japonesas com três versos. Contêm ideia filosófica fácil de ser posta no caderno. Encantam meninos, jovens, adultos. Sugestão: Estudem-se a origem, o desenvolvimento, a entrada do gênero no Brasil. Descubra-se a maneira de liberar a forma do poema. Hai-Kai na Dança. Hai-Kai AKI. Etc.

Perceba-se: A escrita usa máscara. Transforma o real em seres absolutamente incríveis, verdadeiros, fictícios. Percorremos locais jamais descobertos. Então, Manuel Bandeira é as três mulheres do sabonete Araxá, o pobrezinho que sonha ganhar balão, a estatuinha nova que envelhece, cobrindo-se de pátina.

Marylin Monroe, na biografia, comenta ter perdido sua identidade, depois de filmar tantas diferentes personagens. Graciliano, na cadeia, constrói Memórias do Cárcere. Ajudam no serviço alguns encarcerados. Escondem o manuscrito, quando ouvem barulho de passos da guarda.

Sugestão: Se os estudantes revelam comportamento inadequado, o professor pedirá que interpretem a si próprios na peça teatral. Quem sou eu? Ajo dessa maneira, por quê? Devo mudar essa atitude? O que nesta Escola esperam de mim? Etc.

O resultado é deveras excelente. Dispensa figurino, palco, luz. Tal apresentação culmina na sala de aula, no auditório ou no pátio. No último, a assistência desejará imitar os colegas. Posteriormente, a turma se acalma.

Perigo: O elenco só se interessará pela aula de Português. Surgirá logo reclamação, caso o trabalho da escola abandone a interdisciplinaridade. Vejamos: Problemas matemáticos tratarão de teatro.  A Área de Artes se dedicará à feitura do material de cena. A História se incumbirá de estudar o Teatro na Grécia. Etc.

Criancinhas encenam, com extrema fantasia, contos de fadas, anedotas, fábulas. Teatro de sombra, poesia, marionete, boneco de pano confeccionado na escola; tudo serve para envolvê-las. Salientamos o uso da máscara, personagens simples, ação descomplicada.

Como professora, preocupamo-nos sempre em auxiliar na limpeza do estabelecimento. Almoçamos na cantina, convidamos membros da limpeza a cuidar juntos do recinto. Interessante: Quando chegamos ao Colégio de periferia, era comum urinar nas paredes. Reinava ali um rato ‘da comunidade’, devorando folhas da sopa matinal.

Ao reassumir o Marconi, onde lecionamos, a diretora daquele lugar ofereceu-nos o triplo da quantia recebida pela Prefeitura, contanto que voltássemos para lá. Emocionada, aludiu que os alunos pintaram o Colégio. O rato desapareceu em nuvem de fumaça. Queriam teatro.  Trazia o abaixo-assinado do corpo docente e discente em peso. Confessamos-lhe que o Vilarinho era longe demais. Necessitávamos descansar.

Concluindo. A imaginação criativa pertence a todos. Ideologia criminosa espalha por aí que poetas são ‘diferentes, superdotados, nefelibatas’. Cruel desaforo destinado ao povo. Querem mediante coerção exigir que a massa seja burra. Incapaz de compor ideias maravilhosas. Pão e circo, ensinam, é Lei. Argumentam esse despropósito para manter a rédea no lombo do cavalo humano.

Cabe aos iniciados em Belas Artes dar pincel, tinta, camartelo, lápis, caderno, partitura, semente, ao planeta. Lutemos pelo conhecimento geral da cidade, Nação, Nações. Nunca mais ranger de dentes, pobreza, mesquinharia. Fora, explorador! Dentro, sábio mentor do Bem, da Justiça, da Paz!  Existiremos eternamente, nós, que apregoamos o saber saboroso por terra, céu, mar. Assim seja.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            

Velhos séculos um novo ano



Velhos séculos e um novo ano

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

Vem-nos entrando esse dois mil e vinte e três.
Já se passaram dois mil anos, meu Jesus!
No lendário Gregoriano o porvir já se fez.
A humanidade d’hoje leva u’a espinhosa cruz!


“De mil passarás! De dois mil anos não! ”,
dizia a rústica sabedoria popular.
Veio a virada do milênio, errou o ancião?
Não. A virada virou, mas só o dígito a girar…


de anos, lustros, décadas, séc’los e milênios.
Parece-nos que voltamos ao ano zero:
Pestes, catástrofes, perseguições e incêndios.


Façamos por, instauremos paz e o amor sincero.
Mais lealdade entre adversários e estranhos.
Mais solidários nós, nativos e estrangeiros.

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Especial “Semana de Arte Moderna VI”

Especial “Semana de Arte Moderna VI” | por Graça Rios

As mulheres (pintura, tapeçaria e poesia privativa) | Monteiro Lobato novamente contra a arte moderna | Ausência afro e ausência da poesia feminina | Silêncios e estrondos de uma pré-modernista |Apadrinhamento de Luiz Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias) | Origens mestiças de Chiquinha Gonzaga | Lundu, umbigada | Casamento arranjado |Enfrentamento, desobediência, liberação e liberdade por meio da música | Separações conjugais | Condenações morais | Desarraigamento das atividades domésticas |  Profissionalização na música e amizade com Joaquim Calado | Defesa dos direitos autorais e remuneração dos artistas |Aproveitamento econômico e justiça distributiva na atividade artística | O sarau…

Chiquinha Gonzaga

Clique abaixo para ouvir o “papo de rádio” literário.

Trilhas: Valsa “Plangente” gravação de 1912 pelo Grupo Chiquinha Gonzaga; Choro “Atraente”, de Chiquinha Gonzaga, gravação com Pixinguinha no saxofone e Benedito Lacerda na flauta; “Lua Branca” (1912), gravado por G. Rios; “Te amo”, gravação de 1908 pelo Grupo Chiquinha Gonzaga; “Ô abre alas” (1899) executada por G. Rios & Maxixe “Corta jaca (Gaúcho)”, gravação de 1908 pelo Grupo Chiquinha Gonzaga.
Nair de Teffé

Inesquecível marcha carnavalesca | João Batista | Primeira-Dama moderninha Nair de Teffé | Execução de Corta Jaca ao Violão entra para história da política | Soirée | Música popular brasileira na sede do governo, no Palácio do Catete Contra o preconceito e atraso social | Alforria de José Flauta, Catulo da Paixão Cearense (Poeta-músico e teatrólogo), Nair intrigada e Emílio Pereira | A culpa era da dança | Influências da Belle Époque e cartunistas europeus…

Agradecimento especial a Denise Werneck.

Especial “Semana de Arte Moderna V 

Especial “Semana de Arte Moderna V” | por Graça Rios

a condição da mulher no início do século XX | a família, o marido e os filhos | analogias, associações e imaginações | declamação | Anita Malfatti e suas dúvidas | sobre a (des)valorização da arte e do artista em seu tempo

Anita Malfatti, em 1955 fotografada por Guilherme Malfatti
Clique acima para ouvir o “papo de rádio” literário. Trilha: Markos Paullo, cello em teclados.

suspense | Monteiro Lobato x Anita Malfatti | a exposição e a fúria | “paranóia ou mistificação” | loucura e comparações com a Paulicéia | SP hoje e àquela época | desvarios | em defesa de Anita | mortificação de uma artista e os ciúmes masculinos

Anita Malfatti e Tarsila do Amaral em sua Exposição 1955 no MASP/SP.
Clique acima para ouvir o “papo de rádio” literário. Trilha: Markos Paullo, cello em teclados.

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Especial “Semana de Arte & Modernismo Brasileiro”

Especial “Semana de Arte Moderna IV” | por Graça Rios

o pós-22 e alguns de seus desaguares …continuidade digressão para João Guimarães Rosa (Grande Sertão: veredas) | Cada um para seu lado | O goro do ovo | Cecília Meireles: uma simbolista dentro do Modernismo | Ícones, sinais, índices, semioses | Drummond | Bandeira | Rachel de Queiroz | Graciliano Ramos (São Bernardo) | A política de antes e a de hoje | Ninguém seguiu metodologia | Sobre as mulheres…cantiga…

Clique abaixo para ouvir o “papo de rádio” literário.

Trilha: A Prole Do Bebê N°1 – Branquinha (A Boneca De Louça) 

às primeiras décadas da República | O apetite e o sentido afetivo da Antropofagia | Retorno à Anita Malfatti | Fuga da Guerra | Aulas na Alemanha, na França e nos E.U.A | Exposição em 1917 | Cores exuberantes de nosso Brasil | A mulher, a mulher…

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Especial “Semana de Arte Moderna III” | por Graça Rios

Especial “Semana de Arte Moderna III” | por Graça Rios

Menotti e Graça Aranha | patrocínios e política cultural | As 4 (quatro) mulheres | Relacionamentos amorosos e conjugais | O que é o amor? | Villa-Lobos, concertos e discursos.

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Trilha: Villa-Lobos, “Cascavel”.
Di Cavalcanti, “Ciganos” (1940)

A Semana foi realmente um marco? | As gerações seguintes | Rumos de Minas (G. Rosa) | Tergiversações | Grau zero | Criação vocabular e simbologia| Pesquisa e criação| Quebra de tabus e preconceitos | Guerras e tristes fins | Cavalo-veículo

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Trilha: Villa-Lobos, “Caboclo &…”
Di Cavalcanti, “Duas mulatas”, 1961.

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Especial “Semana de Arte Moderna II”

Especial “Semana de Arte Moderna II” | por Graça Rios

Em busca da “língua(gem) natural” e contra o “lirismo bem-comportado” | o índio fundador da nossa cultura [pode ser contestado! | a ausência do negro na Semana | crítica a Paulo Menotti Del Picchia & Juca Mulato | Grupos: Nheengatu, Verde-amarelo, Tupi or not tupi | impossível se ater ao período | a música em ‘meu cu não é ímã | marginalização da mulher | à procura do Muiraquitã | o difícil escrever simples | Abaporu e Antropofagia | a Semana é um ovo, mas às vezes gora | Quem é que vai destruir o quê????

Clique abaixo para ouvir o “papo de rádio” literário.

sonoplastia: lopes (“esquece zé, vem jantá!” e “…que meu chôro seja ouvido”).
Muiraquitã – amuleto da sorte.

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Especial Semana de Arte Moderna I | Por Graça Rios

Especial Semana de Arte Moderna I | moda estilo capiau | linguagens carnavalescas e carnavalizadas | poética do mascaramento | desvarios libertários | o que foi e é nossa Pátria para os semanistas? | “o grande engano”, falação, repensar e questionar (…)

Por Graça Rios,

Bhz em 22.02.2022.

Clique abaixo para ouvir o “papo de rádio” literário.

sonoplastia: lopes, amilton matos e vicente jr.
Tarsila e Oswald a bordo do navio Lotus, em 1926. A pintora usa vestido assinado pelo costureiro francês Paul Poiret

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CARTA DE JOSÉ DE ALENCAR

CARTA DE JOSÉ DE ALENCAR

(Apresentação de Castro Alves a Joaquim Maria Machado de Assis)

Tijuca, 18 de fevereiro de 1868.

Ilmo. Sr. Machado de Assis.

Recebi hontem a visita de um poeta.

O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, fallo do Brazil que sente; do coração e não do resto.

O Sr. Castro Alves é hospede d’esta grande cidade, alguns dias apenas. Vae a S. Paulo concluir o curso que encetou em Olinda.

Nasceu na Bahia, a patria de tão bellos talentos; a Athenas brazileira que não cança de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros.

Podia acrescentar que é filho de um médico illustre. Mas para que? A genealogia dos poetas começa com seu primeiro poema. E que pergaminhos valem estes selados por Deus?

O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um pos pontífices da tribuna brazileira. Digo pontífice, porque nos caracteres d’essa tempera o talento é uma religião, a palavra um sacerdócio.

Que júbilo para mim! Receber Cícero que vinha apresentar Horácio, a eloquência conduzindo pela mão a poesia, uma gloria esplendida mostrando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora!

Mas também quanto, n’esse instante, deplorei minha pobreza, que não permittia dar a tão caros hospedes régio agasalho. Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os poetas-oradores, para preparar esse banquete da intelligencia.

Se, ao menos, tivesse n’esse momento junto de mim a pleiade rica de jovens escriptores, à qual pertencem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocayuva, Muzio, Joaquim Serra, Varella, Rozendo Moniz, e tantos outros!…

Entre estes, porque não lembrarei o nome de Leonel de Alencar, aquém o destino faz ave de arribação na terra natal? Em litteratura não ha suspeições: todos nós, que nascemos em seu regaço, não somos da mesma família?

Mas a todos o vento da contrariedade os tem desfolhado por ahi, como flôres de uma breve primavera.

Um fez da penna espada para defender a patria. Alguns têm as azas crestadas pela indifferença; outros, como douradas borboletas, presas na teia d’aranha, se debatem contra a realidade de uma profissão que lhes tolhe os vôos.

Felizmente estava eu na Tijuca.

O senhor conhece esta montanha encantadora. A natureza a collocou a duas leguas da Côrte, como um ninho para as almas cançadas de pousar no chão.

Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas crystallinas, como o espírito na limpidez d’este céo azul.

Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquelle halito celeste do Creador, que bafejou o mundo recem-nascido. Só nos ermos em que não chairam ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade do berço.

Elevando-se a estas eminencias, o homem approxima-se de Deus. A Tijuca é um escabelo entre o pantano e a nuvem, entre a terra e o céo. O coração que sobe por este genuflexorio, para se prostrar aos pés do Omnipotente, conta trez degráos; em cada um d’elles, uma contricção.

No alto da Boa Vista, quando se descortina longe, serpejando pela várzea, a grande cidade reptil, onde as paixões pupulam, a alma que se havia atrophiado no fóco do materialismo, sente-se homem. Em baixo era uma ambição; em cima contemplação.

Transposto esse primeiro estadio, além, para as bandas da Gavea, ha um lugar que chamam Vista Chineza. Este nome lembra-lhe naturalmente um sonho oriental, pintado em papel de arroz. É uma tela soblime, uma decoração magnifica d’este inimitável scenario fluminense. Dir-se-hia que Deus entregou a algum de seus archanjos o pincel de Apelles, e mandou-lhe encher aquelle panno de horizonte. Então o homem sente-se religioso.

Finalmente, chega-se ao Pico da Tijuca, o ponto culminante da serra, que fica do lado opposto. D’ahi os olhos deslumbrados veem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dous oceanos, o oceano do mar e o oceano do ether. Parece que estes dous infinitos, o abysmo e o céo, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio d’essas immensidades, um atomo, mas um atomo, rei de tanta magnitude. Ahi o ímpio é christão e adora o Deus verdadeiro.

Quando a alma desce d’essas alturas e volve ao pó da civilização, leva comsigo uns pensamentos sublimes, que no mais baixo remontam à sua nascença, pela mesma lei que faz subir ao nivel primitivo da água derivada do topo da terra.

N’estas paragens não podia meu hospede soffrer jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse á natureza que puzesse a meza, e enchesse as amphoras das cascatas de lympha mais deliciosa que o falerno do velho Horacio.

A Tijuca esmrou-se na hospitalidade. Ella sabia que o joven escriptor vinha do Norte, onde a natureza tropical se espanneja em lagos de luz diaphana e, orvalhada de esplendores, abandona-se lasciva como uma odalisca ás caricias do poeta.

Então a natureza fluminense, que também, quando quer, tem d’aquellas impudencias celestes, fez-se casta e vendou-se com as alvas roupagens das nuvens. A chuva a borrifou de aljofares; as nevoas delgadas resvalam pelas encostas como as fimbrias da branca tunica roçagante de uma virgem christan.

Foi assim, a sorrir entre os nitidos véos, com um recato de donzella, que a Tijuca recebeu nosso poeta.

O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outr’ora escrevera para o theatro. Avaliando sobre medida minha experiencia n’este ramo difícil da litteratura, desejou ler-me um drama, primicia de seu talento.

Essa producção já passou pelas provas publicas em scena competente para julgal-a. A Bahia applaudiu com jubilos de mãe a ascensão da nova estrella de seu firmamento. Depois de tão brilhante manifestação, duvidar de si, não é modestia unicamente, é respeito á santidade de sua missão de poeta.

Gonzaga é o título do drama que lemos em breves horas. O assumpto, colhido na tentativa revolucionaria de Minas, grande manancial de poesia historica ainda tão pouco explorado, foi enriquecido pelo auctor com episódios de vivo interesse.

O Sr. Castro Alves é um discípulo de Victor Hugo, na architectura do drama, como no colorido da ideia. O poema pertence á mesma escola do ideal; o estylo tem os mesmos toques brilhantes.

Imitar Victor Hugo só é dado ás inteligencias de primor. O Ticiano da litteratura possue uma palheta que em mão de colorista medíocre mal produz borrões. Os moldes ousados de sua phrase são como os de Benevenuto Cellini; se o metal não fôr de superior afinação, em vez de estatuas sahem pastiços.   

Não obstante, sob essa imitação de um modelo sublime desponto no drama a inspiração original, que mais tarde ha de formar a individualidade litteraria do auctor. Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da patria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos.

Não se admire de assimilar eu o cidadão e o poeta, duas entidades que no espírito de muitos andam inteiramente desencontradas. O cidadão é o poeta do direito e da justiça; o poeta é o cidadão do bello e da arte.

Ha no drama Gonzaga exhuberancia de poesia. Mas d’este defeito a culpa não foi do escriptor; foi da edade. Que poeta aos vinte annos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se derrama sobre a natureza e a inunda?

A mocidade é uma sublime impaciencia. Deante d’ella a vida se dilata, e parece-lhe que não tem para vivel-a mais que um instante. Põe os labios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de poesia, de gloria, e quizera estancal-a de um sorvo.

A sobriedade vem com os annos; é virtude do talento viril. Mais entrado na vida, o homem apprende a poupar sua alma. Um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou convencido que elle há de achar um drama esboçado, em cada personagem d’esse drama.

Olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões.

Maria, achando em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angustia, parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A acção, dirigida uma ou outra vez pelo accidente material, antes do que pela revolução intima do coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna.

Mas são esses defeitos da obra, ou do espirito em que elle se reflecte? Muitas vezes já não surprehendeu seu pensamento a fazer a critica de uma flor, de uma estrella, de uma aurora? Se o deixasse, creia que elle se lançaria a corrigir o trabalho do supremo artista. Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma individualidade.

Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves recitou-me algumas poesias. A Cascata de Paulo AffonsoAs duas ilhas e A visão dos mortos não cedem ás excelências da língua portuguesa n’este genero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo d’esse metro natural, d’essa rima suave e opulenta.

N’esta capital da civilização brazileira, que o é também de nossa indifferença, pouco apreço tem o verdadeiro merito quando se apresenta modestamente. Comtudo, deixar que passasse por aqui ignorado e despercebido o joven poeta bahiano, fora mais que uma descortezia. Não lhe parece?

Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o theatro, o jornalismo, a sociedade, para que a flor d’esse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade.

Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos titulos. Para apresentar ao publico fluminense o poeta bahiano, é necessário não só ter fôro de cidade na imprensa da Côrte, como haver nascido n’este bello Valle do Guanabara, que ainda espera um cantor.

Seu melhor titulo, porém, é outro. O senhor foi o unico de nossos escriptores, que se dedicou sinceramente á cultura d’essa difficil sciencia que se chama critica. Uma porção de talento que recebeu da natureza, em vez de aproveital-o em creações próprias, teve a abnegação de aplical-o a formar o gosto e desenvolver a litteratura patria.

Do senhor, pois, do primeiro critico brazileiro, confio a brilhante vocação litteraria, que se revelou com tanto vigor.

Seja o Virgilio do joven Dante, conduza-o pelos invios caminhos por onde se vae á decepção, á indifferença e finalmente á gloria, que são os trez circulos maximos da divina comedia do talento.

José Martiniano de Alencar

Glossário:

Apelles= pintor da Grécia antiga.

Falerno = vinho da península itálica.

Espannejar= espoar, expor-se espalhadamente.

Fimbrias = franjas, guarnições.

Roçagante = que se arrasta pelo chão, que roçaga.

Ticiano = Tizian Vecellio De Gregorio, pintor renascentista italiano.

Benevenuto Cellini = artista da Renascença, escultor, ourives e escritor italiano. 

Pastiços = postiços, acrescentados depois da obra pronta.

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Ponto de Assis

PONTO DE ASSIS | Gracioso alinhavo no bordado de Cris

Por Maria da Graça Rios

                                           

Assentado próximo ao tear, um analista ponto cruza certa cambraia literária. Que formas puras cria tão gentil poeta? Onde fita sinhaninhas, malgrado informe bastidor? Através da peça de tule machadiana, rasga a bainha de todo infame verbo. Máquina afinada, corta com lâmina o feitio dos sectários de Lúcifer. Alfineta a gaze fina com a qual belzebu enrola inocentes, pregueados na sedução, roubo, ignomínia. O amigo sabe: Diabo chuleia, borda, ali, uma Igreja Única, Totalitária, Global. Por isso, utiliza ferrugens na bobina d’outras sés. Convence-se pintor manual dum cós de caimento livresco, sob as Leis do Tártaro. Estampa figuras em carreteis, ante divinos aviamentos, ao desforrar direitos humanos. Molda por baixo esperança, amor, paz. Por cima, moldura sevícia, orgulho, truculência. Ignora o designer de moda, Joaquim Maria, que tece trama de atar leitor. Cristiano emenda-se às malhas da Letra. Mestre realista fia, confia:                                      

Desalinha, desconserta, cose as patas do coisa-ruim, filho! Desfia a arquetípica franja de Lucius. Vanitas vanitatum omnia vanitas? Satã perde o fio da meada, misturando fuxicos contra o paradigma dos profetas e reformadores. Alfaiate fogoso, sonha enlaçar a nó górdio toda hegemonia das religiões e doutrinas. Sob véu de cinzas plumas, tudo julga, perverte, vende. Pai da negação, aperta alarga estreita qualquer plataforma alta ou arremate terreno. ‘Por trás da virtude, o vício’, ziguezagueia o tinhoso. Mira, pois, estilista crisântemo! O Sujo, ora traveste-se de tons aristotélicos: ‘O bom é sempre mau’. Sobre matrizes e telas, lantejoula Grande Ordem Nova e Insana das coisas a que denomina Legião. Blasfema aos pés do Onipotente: ‘Encorpado de purpurina carnaval vidrilho, seguidor nenhum terá sede de Ti. Plissará grinaldas em favor da noiva barbárie. Confeccionará panfletos acerca de maniqueísmos políticos… Eis que nesse instante, Lopes al’Cançado trança no bilro fios de renda: ‘Veludo ou seda, diacho, propendem-se a repuxos encolhimentos buracos. Representam o enviesado manto terrestre. Alvo macio hipoalérgênico, nosso terno algodão agasalha rebanhos celestes.  Modelas o nada, Anjo da treva. Desenha-te no abismo. Salve o Senhor Rei do bem costurado Universo’.  Ah! Parece-me que algum monge da Ordem de São Bento frisou a ferro de brasa esse babado: Éden versus Inferno. CristiAMO colcheteia-se.  Traspassa no dedo seu áureo dedal. Após, sutura definitivamente fibras soltas do manuscrito.

Sobre o texto de Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano intitulado “Sêde de Deus e de Civilização” (comentário a respeito do conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis).

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ao vazio nas redes – poesia

ao vazio nas redes

o real é o real — a rainha Realidade reina pelos mundos

não há que temer as certezas, amores: o certo é o certo;

o torto é o torto; há curvas, há retas e há os desencontros,

e não há que se ter prazer nesses ventos de ares imundos.

só porque se dizem soltos das réguas, uns tais inumanos

vendem-se como livres, estufam o peito, alargam os ombros

espalham-nos buracos ôcos, sonham tudo só de “espertos”

são vôos sem planos, rotas sem bússolas, cenas sem fundo.

querem desconstruir o que nem sequer esboçariam, ô dó!

esvaziarem o que não encheram?! Fazer-nos de meros robôs?!

almas não se esburacam como se dá em contrapisos chôcos…

nas cheias há respiros, abasteceres, devagares e bons retornos

o vazio pode ser espaço, mas primeiro da solidão, e só depois

da felicidade ou da beleza; da liberdade, jamais do abandono.

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A LÚCIDA E DELICADA POESIA de Maria Braga Horta

Já manifestamos por aqui a referência monumental de um dos Braga Horta, o Anderson, poeta, prosador, crítico e tradutor. Nos orgulha sua poderosa poesia e sua prosa estilística aliadas às dos seus inúmeros amigos escritores, concretizando relevantes serviços à literatura brasileira já praticamente por três quartos de século, sobretudo junto à ANE – Associação Nacional de Escritores fundada em 1963. Chegaram-nos por intermédio de um outro amigo-poeta, mineiro e radicado no Rio de Janeiro, Edmo Frossard Paixão. Conhecemos primeiro amostras da obra de Maria por meio do Livro de Rua da Biblioteca do Cidadão – Série Escritores Brasileiros Contemporâneos (Thesaurus,2004). Fomos surpreendidos com poemas cheios de amor sincero, graciosas homenagens, memórias, cumplicidade familiar. Alicerces de uma vida terrena com propósitos. Depois acessamos as obras do filho e, por conseguinte, a do pai Anderson de Araújo Horta. Por último, alegramo-nos com a voz da cantora Glória (hoje entoando em plagas espirituais) e Goiano Braga, o caçula que também é cantor e compositor de música popular.

Como nos ensina José Veríssimo: “um só escrito pode fazer uma obra, porém muitos livros, às vezes, não a fazem.” Maria Braga Horta (1913-1980), em vista das mais consagradas e tidas como fundamentais de nossa história, escreveu não muito em quantidade, mas deixou o legado. É a sábia e delicada poesia! Transita pelo dramático — por esse gênero não muito, vemos em Retorno dos Retirantes —, pelas diversas líricas (amorosa, onírica, metalinguística…) e pelo épico (com exemplo em Goiás e em O Garimpeiro). Vejamos:

DIVERSIDADE

Vendo o sol percorrer sempre o mesmo caminho,

lá do alto do céu dominando o universo,

me pergunto: – Por quê, neste mundo mesquinho,

o destino da gente é tão vário e disperso?

Por quê, da rota azul que percorre sozinho

irradiando calor, fez, contudo, diverso

o calor que recebe o quintal do vizinho

do calor que recebe a rima do meu verso?

Meu vizinho, que planta o seu solo em agosto,

colhe em breve o seu fruto de ouro. E ri e canta,

e se sente feliz, tão feliz que dá gosto!

E eu aqui, sol a sol, faço versos de amor!

e o meu verso não tem, como o grão que ele planta,

o condão de fazer feliz o próprio autor…

Lajinha, 26-02-1956.

POETA

Quando nasce um poeta, é só seu corpo humano,

pois na alma do poeta o infinito vem preso

e o seu corpo não é mais que um verme profano

em que vibra o esplendor do céu, na terra aceso.

É o inútil labor do seu cérebro insano

-sentindo, pela vida, ansiedade e desprezo-

semeia as ilusões e colhe o desengano

e entre a terra e o céu pára o vôo, surpreso.

A alma de cada poeta é um sensível compasso

medindo os sons e a cor, os ritmos e a luz,

procurando o infinito e se abrindo no espaço!

Seu destino, na vida, é um dilema fatal:

ama a terra e ama o céu e em seus versos traduz

a ambição de ser deus e a dor de ser mortal!

Lajinha, 04-03-1956.

No lindo poema a seguir teremos o exame de consciência, um conselho a si mesma num momento de decisões importantes. Foram muitas as peregrinações da família, como conta o primogênito ABH em suas publicações.

EXORTAÇÃO

Alma inquieta e sem rumo, sem morada

dentro do próprio ser, que te acontece?

Para onde vais? Que buscarás na estrada

onde o esplendor do sol desaparece?

Que desejas colher nessa encantada

terra de sonhos? Que dourada messe

supões haver na senda extraviada

onde nem mesmo o sonho permanece?

Olha em torno de ti. Volta e procura

em ti mesma o caminho da ventura

que andas buscando sem saber se existe…

Encontrando-te, enfim, terás a glória

de tornar a existência transitória

mais serena, mais terna, e menos triste.

Escritora, professora, colaborou em periódicos, escreveu poemas infantis. Homenageou Carlos Drummond de Andrade. Celebrou Florbela Espanca e conquistou prêmios. Sobre a vida da escritora há minúcias interessantíssimas narradas por Anderson Braga Horta em “Legado Poético” e por ela mesma em “Autobiobibliografia”, textos de abertura do livro Caminho de Estrelas -Poesia reunida (Massao Ohno Ed.,1996). Pois então, a exemplo dos demais apreciadores e apoiadores da boa arte literária, resta-nos destacar alguns poemas, impulsionando a poetisa. Um maior número de leitores precisa conhecê-la. Urge distribuição mais eficaz, maior partilha de obra literária tão útil nesse momento de reflexão e restauração cultural.

Numa noite de fevereiro desse ano de 2021, retornei à colheita: escrever é plantar, ler é colher. A poesia simples, clara, direta e despretensiosa (classificação do gênio-filho), creio que deve ser lida como se escolhêssemos frutos de tão amadurecidos e delicados. A atenção deve ir mais na essência do sentimento, da inspiração.

Retomando trilhas pelo “Caminho de Estrelas”, parei no desfrute de Sonhando, da parte Nossa História de Amor, à página 213:

SONHANDO

Ao Anderson, com os votos de Ano-Bom

Os meus sonhos e os teus sempre foram iguais

sempre foram assim como irmãos no sentir:

ora tecem do amor os ternos madrigais

ora traçam da vida o dourado porvir.

Tem um elo comum para bem definir

a expressão interior dos seus pontos vitais:

para nós o sonhar é mais que construir

porque atinge o infinito e as belezas ideais.

Nos meus sonhos, nos teus, alcançamos os dons

em que o amor, a justiça, a esperança, a ternura

criam traços de luz, tomam cores e tons…

E ao voltarmos o olhar para a vida em redor

nós sentimos, então, a suprema ventura

de construirmos, em sonho, outro mundo melhor. 

Goiânia, 30-12-1944.

Temos aí a expressão da cumplicidade idealizada e concretizada no casal. Olham juntos o mundo e nele interferem com marcada e prudente contribuição. O homem como esposo, pai, avô, poeta, professor, operador do direito; a mulher como esposa, mãe, escritora, também professora e cidadã participativa. Os amantes se ocupam com o presente ao redor e se preocupam em contribuir para com a sociedade e as gerações futuras. A harmonia conjugal atenta às necessidades da vida exterior. Vi nesse poema a igualdade-irmã perante a Deus, as cores do arco-íris, os Sete Dons do Espírito Santo, o esforço por uma vida com menos sofrimentos.  Farol de que nós, amantes e fazedores de poesia, precisamos tanto nesses dias de hoje.

Por feliz coincidência, antes de eleger o soneto acima, tínhamos anotado do nosso caderninho de locuções e brocardos latinos: Qui amant, ipsi sibi somnia fingunt. “Aqueles que amam criam sonhos para si mesmos”. Gratidão aos Braga Horta! 

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NOVOS ACHADOS ARQUÉTIPOS DO CRÂNIO DE LUZIA – POEMA

NOVOS ACHADOS ARQUÉTIPOS DO CRÂNIO DE LUZIA

És um dos lobos solidários, fiel e geralista

Teus gestos falam quando tua fala é calada

És lobo sincero co’ as seriedades sutis – uiva!

Vais pelos morros só, observando as moradas.

Do Morro do Picão avistas a luz-Matriz

Da Protetora dos olhos, da luminada vista

Teus olhos voam enquanto pernas cansadas

Dão-te o rumo nas guinadas úteis, sadias.

Voltas pelo vale à procura do Santo Crânio

Para rejuntar-lhe ao pesado Corpo Santo

Imune às covardes chamas de Pascásio

Ages em silêncio, uivas baixo pelos cantos.

No cérebro vêm eventos idos, mas tão claros:

Guerras, tiranias, humilhações, injustiças

Duros braços, resistências, lutas, punhos firmes

Caxias contra Otoni no Recanto dos Bravos[1].

Facas a fio, punhais curtos, foices e martelos

Espadas, castelos, catapultas contra ameias

Lanças, arcos, correntes, muros e armaduras

Instrumentos de tortura, escudos e esferas.

Esperas Dela não apenas fogos e festividades

Recolhes as Estórias, os mitos e os bons relatos

E do Cristo a potência, a Fé, força e fidelidade

Conservas, organizas, distribui tudo em fatos.

Rogai, Santa Nossa, pelas ex-alunas ofuscadas

Em tristes espíritos! Por baixo de tuas pálpebras

As Lúcias, Luzias, Lunas, Luanas, Luzes e Lumas

Lucianas, Lucílias, Anas, Cristianas e Cristinas.

Do velho vem o jovem, do trivial o arcano

Contra as ilusões e artificiais honrarias

Segues à poeirenta da Avenida Brasília[2]

Sentes, pensas; refletes e crias como humano.

No início Deus foi Quem deu a terra ao rio

Depois deu ao pescador de homens a inspiração

Para à terra dar este lindo nome: Santa Luzia

Que agora (como merece) recebe esta louvação.

“Eu acredito na redenção dessa Santíssima,

Eu acredito!”, repete o duvidoso Voltaire [3]

“Duro de crê-la, mas de certo não será lenda

Nenhum pagão teria o Tao de um Lao-tsé

Nem da virtude, como Ela, abriu a tal senda

Deu tud’ aos pobres!? Golpe no rosto da cobiça.


[3] Refere-se ao Capítulo X “O perigo das falsas perseguições e falsos mártires”, do Tratado sobre a Tolerância.


[2] Avenida principal do bairro de São Benedito da cidade de Santa Luzia/MG.


[1] Monumento do Muro de Pedra, onde teve fim a batalha entre Duque de Caxias e Teófilo Otoni (1842).

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“ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO”

“ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO”

(Filme de Buñuel)

Maria da Graça Rios

O que move a existência humana? Eis uma pergunta formulada desde os primórdios da Filosofia. Platão, Nietzsche, Foucault, Saussure, consideram que o desejo é o motor das ações humanas. Teoricamente, deixam estabelecido que a partir da hiância (corte do cordão umbilical) todo indivíduo se torna eternamente desejante. Diante da impossibilidade de retorno ao estado homeostático uterino, o indivíduo projetará em objetivos futuros sua incompletude.

O desejo em Psicanálise não trata de algo a ser realizado, mas de uma falta jamais realizada. Em todas as escolhas, há sempre um novo desejo. Portanto, ele permanece insatisfeito. Renasce continuamente uma vez que está em outro lugar que não no objeto a que visa ou no significante suscetível de poder simbolizá-lo.

O próprio desejo persiste em designar o desejo do Todo (objeto perdido) pela expressão de desejo da parte (objetos substitutivos). Trata-se de um fluir metonímico, pois tal objeto estará sempre se deslocando em direção ao que aparenta ser o outro, perdido. O sujeito se vê aprisionado pela vã tentativa de obturar sua falta constitutiva. É nessa premissa que alicerçamos a construção desta tese.

Por que selecionamos Aleijadinho para fundamentar nossa proposta? Porque, à medida que empobrece e perde a saúde, suas imagens adquirem maior riqueza e beleza estética. Arminho, ouro, pedras preciosas, ornamentam as vestes sacras. Anjos rosados resplandecem desenhados na pedra sabão, enquanto a palidez marmórea desfigura o artista. Amarrados camartelo e pincel ao toquinho do braço, o pequeno grande escultor mineiro anseia pela perfeição artística. Aqui, um traço retilíneo conforma o ombro da santa; ali, uma curva acentuada faz seu olhar glorificado. A crença em alcançar a completa esfera paradisíaca como auxílio das mãos conduz beleza e mistério ao abandono da lepra deformante.

Morre a carne putrefata, mas nasce um gorducho Menino do seio da Virgem Maria. Nada obsta ao autor desconforme o prazer da criação. Faminto de pão e teto, ascende aos altares e frutos do jardim celestial. O difícil e conflituoso espírito barroco acalma Cristo no caminho do Calvário. A luta pelo ideal estético fica sempre à frente do infinito tempo e da sociedade colonial em que vive. Cravada na montanha, uma esplêndida Madona aspira à igreja ouro- pretana. A pujança da obra de Lisboa provém da mais dura miséria.

Os Profetas Inconfidentes identificam-se com o martírio do homem. Isaías trama Revolta, sublimando a do Poeta. Oseias corta correntes com a força indômita do Gênio adoecido. Os soldados, vestidos de roxo, veem flores perfumadas surgindo do estrume fétido com que ele julga  curar-se.  Então,  Monsenhor  se  comove  e  encomenda-lhe  um  frontispício.  Disfarçado de astúcia e paz, o aleijado colore a serpente, lançando o voo das pombas na  amplitude do adro. São horas sombrias e longas, recobertas de sinos e fitas. A realidade é urtiga, conduzindo aos roseirais. Escritos vagam nas vagas do mar sob os pés angélicos. Entre o divino e o profano, exausto em cima das tábuas, Aleijadinho adormece. Lá fora, o templo é tão simples; cá dentro, resplende luxúria.

O que suscita o desejo sobre esses objetos pintados no mundo? Algo indecifrável, diremos. Um brilho, uma textura, um som, um significante. Eles são, para Lacan, faces simbólicas ou imaginárias daquilo que está muito além do princípio do prazer. Tal elemento concreto passa  a ser o alvo do artista, concentrado em pleno gozo. No caso de Francisco, a linguagem da escultura se torna fundamental para a reconstrução do inconsciente recalcado pela mágoa. Alcançou o absoluto, mas há coisas maiores que o tudo.

Considerados tais aspectos concernentes ao tema proposto, comprovamos em larga escala a assertiva inicial. Aspiramos constantemente ao que ainda não conquistamos. Certa de que o desejo constantemente nos atravessa, dizemos que caminhamos ansiosamente ao encontro  de um ótimo conceito por esta eloquente escritura.

Nas línguas portuguesa e inglesa.

São destinados ao meu Curso de Inglês Avançado na UFMG. Espero que o apreciem. 07/07/2020.

“THIS OBSCURE OBJECT OF DESIRE”


(Buñuel Film)

What drives human existence? This is a question formulated since the beginning of philosophy. Plato, Nietzsche, Foucault, Saussure, consider the desire of human actions’ engine. Theoretically, let them establish that from the hyance (umbilical cord cut) to the individual becomes eternally desiring. Faced with the impossibility of returning to the uterine homeostatic state, the individual will project objectives that are supposed to compensate his incompleteness in the future.

Desire in Psychoanalysis is not something to be accomplished, but actually a lack of accomplishment. In all choices, there is always a new desire. Therefore, he remains dissatisfied. The object is continually reborn elsewhere its signifier can symbolize it.

The desire for the whole (lost object) is to be designated by its part’s expression of desire (substitute objects). It is a metonymic flow, because such an object will always be moving towards what appears to be the other, lost. The subject sees himself imprisoned by a vain attempt to fulfill the constitutive lack. It is on this premise we base the construction of this thesis.

Why did we select Aleijadinho to support our proposal? Because, as he impoverishes and loses health, his piece of Art acquires greater wealth and aesthetic beauty. Ermine, gold, precious stones, adorn the sacred robes. Rosy angels shine drawn on the soapstone, while the marble pallor disfigures the artist(1).

Tied hammers and brushes to his little arm, the great sculptor from Minas Gerais longs for artistic perfection. Here, a rectilinear trait conforms the Saint’s shoulder; there, a sharp curve makes her gaze glorified. The belief in achieving one complete paradisiac sphere is helped by his hands which leads to beauty and mystery in order to obliterate the deforming leprosy. The putrefied flesh dies, but a plump Boy is born from the Virgin Mary’s bosom.

Nothing precludes this author from the pleasure of creation. Hunger for bread and shelter ascends to the altars of the celestial garden’s fruits. The difficult and conflicted barroc spirit soothes Christ on the Calvary’s path. The struggle for the impossible ideal aesthetic is always ahead of his time in the colonial society in which he lives. Set in the mountain, that splendid Madonna aspires to the golden-black church.

The strength of Lisbon’s work comes from the harshest misery. Twelve Inconfident prophets identify with the men’s martyrdom. Isaiah sublimes Lisbon’s rebellion. Hosea cuts chains with the indomitable force of the sick Genius. The soldiers, dressed in purple, see fragrant flowers emerging from the foul manure with which he deems to heal himself. Then, a rich matrix bishop orders him a precious frontispiece.

Disguised as cunning and peaceful, the cripple dyes the biblical green snake, launching the dove’s flight across the churchyard. Time is dark, long hours, covered with bells and ribbons. The reality is made of nettle, leading to rose bushes. Writings roam the waves of the sea under the angelic feet. Between the divine and the profane, exhausted on the boards, Aleijadinho falls asleep. Outside, the temple remains simple; inside, shine lust.

What does arouse the great desire about these painted elements in the world? Something indecipherable, we could say. A glow, a texture, a sound, a signifier. This volition, for Lacan, symbolizes imaginary faces of what is far beyond the principle of pleasure. This concrete dream becomes the Art target, concentrated in full enjoyment. In Francis’ case, the known sculpture language becomes fundamental to an unconscious reconstruction repressed by sorrow. He had achieved the Absolute, but there are even more infinite greater things.

Considering these aspects related to the proposed theme, we proveon a large scale in the initial assertion. We constantly look at what we have not yet conquered. Certain that our desire constantly crosses everybody, let us say we walk anxiously to meet the most satisfactory concept for our eloquent scripture.

(1) Reference to Camões Inês de Castro’s episode.

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LÍNGUA FRANCA E VIVA (PORTUGUÊS + KIMBUNDU) EM MINAS GERAIS

LÍNGUA FRANCA E VIVA (PORTUGUÊS + KIMBUNDU) EM MINAS GERAIS

(Entrevista especial com Antônio Benício Cabral: memória afetiva e literatura com base na Língua dos Negros da Costa – Língua da Tabatinga)

Nossa Língua Portuguesa aqui no Brasil constitui-se por inúmeras contribuições de povos nativos e africanos: antropônimos, topônimos, expressões que denominam alimentos, crenças, utensílios, membros do corpo, animais, vegetais, danças, ritmos, enfermidades e deformidades. Para nossas Minas Gerais vieram sobretudo povos da nação Bantu, falante do abrasileirado quimbundo [kimbundu em Angola]. Estes africanos, não por coincidência, trouxeram à colônia técnicas artesanais de mineração, metalurgia, agricultura, culinária, músicas e, claro, sua língua e crenças.

Conceituada referência sobre o assunto é o livro intitulado “PÉ PRETO NO BARRO BRANCO: A Língua dos Negros da Tabatinga (Editora UFMG, 1998), da escritora Sônia Queiroz, cuja cuidadosa pesquisa se alicerça na memória da própria autora, natural de Bom Despacho, bem como num respeitoso trabalho documental e de campo.

Nessa publicação especial, entrevistaremos outro convivente e falante da Língua da Tabatinga (ou Língua do Negro da Costa), Antônio Benício Cabral. Assim como Sônia, ele praticou quando menino e ainda guarda em sua memória afetiva o código. Benício organizou um vocabulário e nos presenteia com uma narrativa de ficção de sua autoria, contribuindo ainda mais aos interessados e pesquisadores.    

Comecemos por sua apresentação, onde nasceu e viveu, por onde andou e anda, seus escritos e como tomou contato com a Língua do Negro da Costa. Nasci em Bom Despacho mesmo, na chamada Rua da Biquinha, nos idos de 1958. Aos 3 anos de idade me mudei para a Rua dos Expedicionários (antiga Travessa Lambari), onde vivi até sair de Bom Despacho, após terminar o antigo Curso Científico, com 17 anos de idade. Morei em Brasília, Campinas-SP, Campo Grande-MS, Santos-SP, Belo Horizonte, Divinópolis e, com a aposentadoria, retornei para Bom Despacho. Sou formado em Economia, na UnB, com pós-graduação na Unicamp, e Direito, na UFMG. Sempre gostei de estudar línguas estrangeiras e falo inglês, espanhol, francês, italiano e básico de alemão. O meu contato com a Língua da Tabatinga se deu desde a infância, nos folguedos de rua, quando a gente usava várias palavras da língua para se comunicar usualmente. O uso era maior quando havia contato com os meninos da antiga Tabatinga, hoje Bairro Ana Rosa. Depois de adulto decidi elaborar o Vocabulário e realizei algumas pesquisas específicas

Por que é considerada uma língua-franca? Poderia nos explicar com suas palavras? Para mim não há dúvida de que se trata de uma língua. Entretanto, conforme leituras minhas nessa área há alguns anos, creio que a classificação correta é “Língua Franca”, que é a mistura de várias línguas de molde a possibilitar a comunicação entre gentes originárias de várias nações. O sustentáculo da Língua da Tabatinga é o português, porém há um grande uso de vocabulário de origem africana. Essa língua franca, no caso a Língua da Tabatinga, possibilitou que negros originários de várias regiões da África, conseguissem se comunicar entre si, pelo uso de vocabulário mesclado de várias línguas africanas, com o português. Cabe destacar que o português, por exemplo, já funcionou como Língua Franca em toda a Ásia, após os grandes descobrimentos, no Século XVI. Um ponto importante a destacar é que, a meu ver, é totalmente errado chamar a Língua da Tabatinga de “dialeto”. Para uma língua ser “dialeto” ela tem que se referir a outra língua da qual deriva ou que deu origem. Por exemplo, o português, o castelhano, o Catalão, o Asturiano, o Galego (este muito parecido com o português), são todos dialetos do mesmo ramo linguístico. São variações regionais da mesma língua mãe, em última análise, regredindo 2.000 anos, do latim que era falado em Roma. A Língua da Tabatinga é uma língua autônoma, independente, não está referida a nenhuma outra.

No vocabulário organizado (1985-1998) – ao que nos parece você e a Sônia intercambiaram material e memória – há palavras acrescidas e reinventadas, mostrando-nos dinâmica dos falantes, tipo: “cureio”=comida (antigo) e “Banjerê”= comida (forma atual). Na sua opinião, quais fenômenos poderíamos destacar nessa espécie de atualização? Não é bem esse o fato. O meu Vocabulário foi elaborado pela primeira vez em 1985, com a grande ajuda do meu amigo Comodoro, que já não reside em Bom Despacho. Anos depois, quando da publicação do Livro da Professora Sônia, acresci palavras ao meu Vocabulário. De fato, existem palavras que possuem sinônimos, não sei o motivo. Eu conheci comida como “cureio” e comer como “caxá o cureio” e mais tarde conheci a palavra “banjerê”. Tem falante que usa a palavra “chap-chap”, no mesmo sentido. São variações, mas não sei a origem. As invenções existem e ficam por conta da combinação de palavras conhecidas, para formar outras, como por exemplo “caramboia catita que ingira no fute” é uma invenção dos falantes, que uniram “galinha” “pequena” que “anda no céu, voa” para significar “passarinho”. Outro exemplo, “orongó” é cavalo e “tiploque” é sapato, unindo as duas “tiploque de orongó”, penso em uma ferradura. “Cuete-ocaia” é homem homossexual, combinação de “cuete”, homem, com “ocaia”, mulher.

Há pessoas que aprenderam a língua em outras cidades, como o caso do meu tio que a conheceu numa carvoaria em Uberlândia. Ele contava que o signo servia como código secreto e resistência às ações exageradas da polícia, às certas perseguições injustas. Servia também para despistar dos alcaguetes colaboradores dos patrões severos. Por outro lado, comentava meu tio, também corria-se boatos de que criminosos se utilizavam do código para encobertar pequenos delitos. Imagino que situação como essa última poderia comprometer a sociabilidade do falar…o que você tem a nos dizer sobre isso? Sabendo que essa Língua só existe em Bom Despacho, seguramente seu tio manteve contato com bondespachenses que foram morar/trabalhar em Uberlândia. De fato, os falantes usavam muito a Língua para, de certa forma, se protegerem, da Polícia, dos cidadãos de posse, que eram o patrões etc. Percebia-se muito o uso da Língua em bares mais simples e nas zonas boêmias da cidade. Usava-se a Língua para fazer comentários maldosos sobre as mulheres atraentes, coisas do gênero. O possível uso por criminosos é uma hipótese bastante aceitável, porém não tenho informações a respeito. Na verdade, por questões de discriminação racial e social, os moradores da antiga Tabatinga eram tidos como criminosos em geral, como são vistos, atualmente, os moradores das favelas das grandes cidades. Não acredito que isso tenha comprometido o uso da Língua, a questão é mais histórico/social mesmo, com a morte e a diáspora dos falantes, ao longo dos anos.

João Francisco L. Cançado (1956-2019)

Penso que, a partir dos registros já acumulados, iniciativas da comunidade junto de outros estudiosos, bem como a prática recreativa por novos falantes e a divulgação da língua nos ajudariam na compreensão histórica de nós mesmos, enquanto nação e povo de origens várias. Você vê as discriminações como obstáculos contra esse possível esforço conjunto? Verifica bons resultados nessas últimas décadas, em face de tantas lutas no sentido de superarmos tais estigmas?  Atualmente, não vejo mais discriminação, como houve no passado. Os moradores da antiga Tabatinga, por volta das décadas de 1960/1970, eram vistos como maus elementos, pessoas brigadoras, com tendências criminosas. Eram, quase todos, negros e eram muito pobres. Havia prostituição no Bairro. O bairro era provavelmente o mais pobre de Bom Despacho. Havia, visivelmente, muita discriminação por parte da gente dos Bairros mais chiques, especialmente do Centro. A Língua da Tabatinga era vista como coisa de gente baixa, os moradores do Centro da cidade não viam com bons olhos a prática dessa Língua. Era como se a Língua fosse usada para enganar e roubar os “brancos” da cidade. Hoje, ao contrário não percebo nenhuma discriminação com relação à Língua, que passou a ser vista como um patrimônio cultural da cidade. Percebo que a Prefeitura Municipal vem incentivando o conhecimento da Língua pelos alunos das escolas e vem incentivando a sua divulgação como patrimônio cultural. O antigo Sesc, que foi devolvido para a Prefeitura, foi batizado como “Conjolo de Vissunga” (Casa de Cultura, ou Casa de Festa). Não acredito que a Língua voltará a ser falada, mesmo porque o seu uso era totalmente espontâneo, mas já é alvissareiro saber que a Prefeitura e os cidadãos vêm dando mais valor à memória da Língua da Tabatinga. Seria muito bom ver pessoas usando a Língua da Tabatinga na rua, novamente, mas creio que isso é uma utopia.

Quando você escreveu e o que mais lhe motivou a escrever o conto “O cuete que caxô imbuete dos viriango”? Quando foi publicado pela primeira vez, enfim, fale-nos um pouco do processo. Escrevi esse conto há alguns anos, não me recordo precisamente. O que me motivou, especialmente, foi tentar manter a memória da Língua da Tabatinga, porém demonstrando na prática como se dá a sua utilização. Uma coisa é um Vocabulário, frio, estático, outra bem diferente é um texto, que flui, que tem ritmo, que simula a fala de alguém. O ruim é que não dá para fugir muito do assunto abordado no conto. O vocabulário remanescente da Língua da Tabatinga é muito restrito e fica limitado a questões de trabalho, bebida, sexo, casamento, polícia, coisas mais comuns na vida das pessoas mais simples, que eram os autênticos falantes da Língua da Tabatinga. Eu tinha um receio de que, com o passar dos anos, eu mesmo perderia a capacidade de produzir um texto, um discurso, uma narrativa, na Língua da Tabatinga, coisa que já está ocorrendo. A memória vai ficando difusa, diáfana, em razão da falta da prática, infelizmente.

Maria Joaquina da Silva, a Dona Fiota (1928-2012). Guardiã e transmissora da remanescente tradição oral na cidade de Bom Despacho/MG. Dona Fiota, seus familiares e comunidade trabalharam em projeto com a Fundação Guimarães Rosa e contribuíram com inúmeras pesquisas acadêmicas.
Maria Joaquina da Silva, a Dona Fiota (1928-2012). Guardiã e transmissora da remanescente tradição oral na cidade de Bom Despacho/MG. Dona Fiota, seus familiares e comunidade trabalharam em projeto com a Fundação Guimarães Rosa e contribuíram com inúmeras pesquisas acadêmicas.

Vimos que o autor é mais que bissexto nas modalidades de poesia e ficção. Quais são suas obras escritas e publicadas? Gosto de escrever e tenho alguns projetos, para o futuro próximo, entretanto não me considero um escritor. Mesmo porque tenho mais facilidade com assuntos técnicos do que com literatura. O único livro que escrevi, que nunca foi publicado em papel e está no meu Blog, é “O ESTADO NO ESTADO, por que os Funcionários Públicos são indolentes?”. É uma análise da Administração Pública brasileira, por alguém que atuou como Servidor Público Federal concursado, até então, por 22 anos, além de algum tempo anterior como contratado. Cumpri 34 anos como Servidor Público Federal concursado. Já publiquei artigos em jornais universitários, jornal local, jornais murais da cidade e semelhantes. Trabalhos acadêmicos foram muitos, nos anos de faculdade. Algumas Monografias para conclusão de curso. Eventualmente, escrevo alguma coisa, mais de cunho político, nas redes sociais. Tenho um Blog que precisa ser mais movimentado. Tenho dois projetos de livros para o futuro próximo, um sobre “Ideologia” e outro sobre “tópicos de Direito Penal”, que tem relação direta com minha vida profissional no Serviço Público.

Bom, é isso, espero haver atendido o esperado. Coloco-me à inteira disposição. Muita satisfação poder falar sobre a Língua da Tabatinga, da qual tenho muito orgulho, orgulho natal.

O CUETE QUE CAXÔ IMBUETE DOS VIRIANGO

O cuete-atiapo caxava curimba no sengue, lá no Quebra-Cocão, no conjolo do cavinguero da ingura avura. O cavinguero era avuraça, tipurava os cuete do cumbaro avura de Brasia, os cuete que caxa ingura avura e ingira no fute, na uruma-do-fute e caxa urunanga opepa, com cavu e tiploque de coro de cangura-do-sengue. Na curimba do sengue, o cavinguero ingira na uruma avura, caxa urunanga opepa e tiploque de sengue caxado nos istazunidos. O cuete-cavinguero é cheio dos tiparo dos imbondo, com oronha de oro e percinê de cuete-avura. O cavinguero é dotô. As gibera do cavinguero é cheia das ingura avura.

O cuete-atiapo curimbava carregano uruma de carguero, com assangue, tipoquê, pungue e as veiz cajuvira. O cuete ingirava do isquife quando o carambóia-cuete tipurava um cacarejo, antes do unde tipurá no sengue. O cuete tipurava um cajuvira com caviconve e uns cumicove e adispôis tipurava um marcanjo de paia de pungue. Aí o cuete ia caxá curimba. Caxá o haver de gombê. E aí era ingirá pro sengue e batê moco no conjema. O cuete prantava vianjê, tipoquê, pungue e assangue.

Quando caxava a sexta-feira o cavingueiro ia caxá as ingura dos cuete do sengue. A ingura catita. O cuete tipurava a ingura e o tué do cuete caxava uarrufo. Os cuetim ingirava caladim, só cramano, tué baixado. Aí os cuete ingirava pra redovia mode caxá o camba, pá ingirá pro conjolo, no cumbaro. Os cuete ia ingirano no camba, só tipurano as ocaia dos tinhame avura, os mavera bão de caxá e as urunanga catita. Os cuetim ia tipurano uns pros outros, pra ingirá pro conjolo de matuaba e caxá uma omenha-de-vianjê, no oteque.

O pobrema é que o cuetim era cassucarado e o cassucara do cuete foi coisa séria, no conjolo-do-Granjão, com inganga de verdade. E a ocaia-do-cuete tava no conjolo só tipurano o cuete caxá. A ocaia já ia tipurano as ingura do cuete, mode caxá os tiparo dos imbondo pro camonim. O camonim do cuete era catita e caxava muito haver de gombê. Aí o cuete caxô um tiquim de ingura na gibera, mode a ocaia num tipurá, pra caxá os grozope com os cuete lá.

Quando é fé, a ocaia ingirô pro conjolo da ocora dela pra tipurá a uruma de tipurá, as novela da grobo. A ocaia ingirô com o camunim. O cuete caxô uns cureio que a ocaia dexô no conjolo. Tinha tipoquê com assangue, biguibote, camberela de gombê, urufim frito, haver de carambóia, mantambu cuzido e uns pedaço de orelo. Aí o cuete tipurô, tipurô, tipurô… tipurô a uruma de tempo, caxô um marcanjo de paia de pungue e ingirô pro conjolo-de-matuaba. As ingura tava na gibera do cuete. O cuete caxô umas urunanga avura pra caxá ocaia e tipurô um tiploque opepa que o cuete catiolô no conjolo dos tiparo dos imbondo de ingura avura. O cinto do cuete tinha fivela de tiploque-de-orongó.

O conjolo do cuete era no Quenta-Sol, mais o conjolo-das-matuaba era na Tabatinga, pertinho do conjolo do Bené-Pião. Aí o cuete ingirô na uruma-de-equilíbrio.

No conjolo-da-matuaba o cuetim já foi caxano os grozope com os outros cuete e o tué do cuete ia só ingirano. O cuete tipurava tudo quanto é ocaia e as ocaia caxava uarrufo com o cuete. As ocaia só mandava o cuete ir ingirá no conjolo-do-Demonho, o cangura oveva de coreã-de-gombê. As ocaia mandava o cuete ir caxá cuxipa no janô. O tué do cuete só ingirano no fute.

O cuete resorveu ingirá pro conjolo das ocaia-de-cuxipa, na Rua da Garça. O tué do cuete tava ingirano no fute, por causa da matuaba avura. Quando o cuete passou na Praça da Matriz tinha um cuetim tipurano marcanjo avura. O cuetim ofereceu pro cuete. O cuete falô: “num tipuro marcanjo avura não, cuete; sô cuete curimbadô; cuete de cassucara; os viriango tipura ocê, sô”. Aí o cuetim falou: “tipura um tiquim aí, cuete-ocaia, pro tué ingirá; é bão, sô”. Aí o cuete tipurô o marcanjo avura e ingirô pro conjolo-das-ocaia. O tué do cuete tava ingirano no fute por causa da matuaba e do marcanjo avura.

Aí o cuete chegô no conjolo-das-ocaia-que-rasta-cuxipa e tipurô uma ocaia cafuvira do janô avura e caranguela catita. O tué do cuete ingirô que nem pião. O cuxipo do cuete foi ficano avura e o cuete foi tipurano o janô da ocaia. O janô da ocaia era opepa. O oranjê da ocaia era opepa. Os tiparo da ocaia era opepa tamém. O cuete perguntô pra ocaia cafuvira quanto que era de ingura pra caxá cuxipa. A ocaia falô pro cuete que era cem cruzeiro e o cuete perguntô se a ocaia rastava cuxipa no janô, porque o janô da ocaia era avura. A ocaia caxô uarrufo e mandô o cuete e caxá cuxipa no janô. A ocaia falô que só tipurava cuxipa na marcela. Aí o cuete chamô a ocaia para ir pro isquife rastá cuxipa.

Quando o cuete cabô, falô pra ocaia que tava atchapo, que num ia caxá ingura não. Falô pra ocaia que a ingura ingirô no conjolo-das-matuaba. O cuete falô que só ia caxá vissongue na outra sexta-feira. Aí a ocaia cafuvira caxô uarrufo e ingirô um turisco na cabeça do cuete. Aí o conjolo-das-ocaia virô foi uma vizunga, aquês tiparo dos imbondo, com as ocaia tudo encima do cuete e ês prancheano e o cuete tentano ingirá. Aí caxaro os viriango.

Os cuete-viriango já foro tipurano os moco-de-undaro no tué do cuete. Aí os viriango falaro pro cuete: “ô cuete, seu tué tá ingirano, cê fica queto se num quisé fitá viru”. Caxaro o cuete na uruma-de-viriango e ingiraro pro conjolo-dos-viriango. No conjolo-dos-viriango é que foi a verdadeira vissunga. Aí os viriango ia caxano imbuete no cuete. Caxava imbuete no tué do cuete, caxava imbuete no janô do cuete, no babatimão do cuete, pra toda banda. O cuete caxô imbuete dos viriango até prancheá. Aí o cuete rastô tiprequé no conjolo-dos-viriango.

Aí quando o carambóia-cuete tipurô o cacarejo o cuete levantô do isquife oveva e tipurô o cumba-do-bélude caxá quadrado.

Belo Horizonte, 18 de outubro de 2009-

BENÍCIO CABRAL

VOCABULÁRIO DA LÍNGUA DA TABACA

(Também chamada “Língua dos Negros da Costa” [Angola])

Vocábulos de “a-x”

Aiaquinzim. S.m. Queijinho

Arumute. S.f. Abóbora; Var: Urumute.

Arunanga. S.f. Roupa, calça. Var: Urunanga.

Assangue. S.m. Arroz. Var: Assango; Assengue; Imassango; Missangue.

Assengue. S.m. Arroz. Var: Assangue.

Atchapo. Adj. Pouco; Esfarrapado; Maltrapilho; Roto; Estragado; Inutilizado

etc.; sem dinheiro. S.m. Pobre. Sin. Tchapo ou Tiapo.

Atiapo. Adj. Vide Atchapo.

Avura. Adj. Grande; Grosso; Depressa; Muita quantidade. Também usado para designar pessoa boa, coisa boa, bonita, ou coisa positiva de um modo geral (nesta acepção, o mais correto é Opepa).

Avuraço. Adj. Grandalhão; Muito grande.

Avurinha. Adj. Bonitinho.

Babatimão. S.m. Suã de vaca.

Bambi. S.m. Frio.

Banjeco. S.m. Qualquer instrumento musical. Var: Imbanjeco.

Banjerê. S.m. Comida. Var: Conjerê. Sin: Cureio (esta é a forma mais usada atualmente).

Bélude. S.m. Dia (por oposição a noite, que é Oteque).

Biguibote. S.m. Macarrão.

Bugue: S.m. Milho. Var: Pungue.

Cachar. V. Pegar; trazer; cair (chuva); dar; entregar; tomar; roubar; beber; comer; etc. “Funciona como verbo passe-partout cujo sentido se define pelo contexto.” Var: Acachar.

Cachar Covera. V. Adoecer.

Cachar o Cureio. V. Almoçar; jantar; ceiar.

Cachar Curimba. V. Trabalhar.

Cachar Cuxipa. V. Transar; fornicar; prostituir-se; etc. Sin: Rastar Cuxipa.

Cachar Esquife. V. Ir deitar-se; ir domir.

Cachar Janô. V. Sin. Cachar Cuxipa, só que mais usado para a atitude passiva.

Cachar Matuaba. V. Beber bebida alcoólica.

Cachar Matuaba no Tué. V. Encher a cara; beber até se embebedar.

Cafanhaque.S.m. Dente; Mandíbula;Queixada.Var:Cafanhaco; Gafanhaque.

Cafunguera. Var. de Cavinguero.

Cafuvira. S.m. e Adj. Preto; Negro; Escuro; Crioulo. S.m. ou f. Homem Preto ou Mulher Preta. Var: Cavuvira.

Cajuvira. S.m. Café.

Camargo. S.m. Saco.

Camargo Catita. S.m. Embornal.

Camba. S.m. Ônibus. Var: Cambajara; Cambajarra.

Cambajara. Var: Camba.

Cambém. S.m. Vasilha; recipiente; panela; copo.

Cambém de Cajuvira. S.m. Xícara (para café).

Cambém de Cureio. S.m. Panela

Cambém de Caxá o Cureio. S.m. Prato.

Cambém de Curimba. S.m. Ferramenta (instrumento de trabalho).

Cambém de Omenha. S.m. Copo (vasilha para água).

Cambém de Caxá Omenha. S.m. Talha.

Camberela. S.f. Carne. Var: Camberelo; Timbere; Timberéia.

Camberelo. Var: Camberela.

Camberela de Cangura. S.f. Carne de porco.

Camberela de Cangura de Omenha. S.f. Carne de peixe.

Camberela de Cangura do Sengue. S.f. Carne de caça.

Camberela de Carambóia. S.f. Carne de galinha (de frango).

Camberela de Gombê. S.f. Carne de vaca (de boi).

Cambereluda. S.f. Carnuda; gorda; boazuda.

Cambóia. S.f. Locomotiva.

Cambuá. S.m. Cachorro; cão.

Cambuá-Camoninho. S.m. Cachorrinho; filhote de cachorro.

Cambuá do Sengue. S.m. Lobo; cachorro do mato.

Camoná. S.m. ou f. Menino; menina; criança. Var: Camoninho (mais usado).

Camoninho. S.m. ou f. Criança; menino; garoto; guri (masc. ou fem.).

Camoninho no Jequê. Adj. Grávida.

Canambóia. S.f. Galinha. Var: Carambóia (atualmente mais usado).

Candambora. Var. Carambóia (atualmente mais usado).

Cangura. S.m. Porco; leitão; cachaço. Var: Canguro.

Cangura do Sengue. S.m. Bicho; animal selvagem.

Cangura de Omenha. S.m. Peixe (bicho que vive na água).

Carambóia. S.f. Galinha; frango; por extensão: galo (Carambóia-Cuete). Var: Canambóia; Candambóia Candambora; Candombóia; Candombora.

Carambóia Catita que Injira no Fute. S.f. Passarinho.

Caranguela. S.f. Aparelho sexual feminino; vulva; vagina. Sin: Marcela.

Cassucara. S.m. Casamento; matrimônio. Var: Cassucaro.

Cassucarar. V. Casar-se; contrair matrimônio.

Catiolar. V. Roubar.

Catita. Adj. Pequeno. Var: Catito. Por ext.: feio; sem valor; inútil; fraco etc. (nestes últimos sentidos, o mais correto é utilizar Oveva.

Catovelana ou Cotovelana. S.f. Faca.

Cavicome. Vide Caviconve.

Cavicongo. Vide: Caviconve.

Cavicongue. Vide: Caviconve.

Caviconve. S.m. Pão. Var: Cavicome; Cavicongo; Cavicongue; Conviconve; Conficonfe.

Cavinguero. S.m. Fazendeiro; patrão. Por ext: dono; chefe. Adj. Rico. Var: Cafunguera; Cavinguera; Cavinguerão; Cavunguera; Cavunguero; Vindero.

Cavu. S.m. Paletó.

Conema. Cocô; fezes; esterco.Var: Conena.

Conficonfe. Vide: Caviconve.

Conjema. S.m. Cemitério; morte. Por ext: terra. Fitar Viru: morrer.

Conjerê. S.m. Comida; Almoço; Janta; Ceia. Var: Banjerê. Sin: Cureio.

Conjolo (ô). S.m. Casa; residência. Por ext.: prédio; repartição etc. Var: Conjor; Conjô; Canjolo.

Conjolo das Ocaia. S.m. Zona boêmia; cabaré; randevu.

Conjolo de Camberela. S.m. Açougue.

Conjolo de Conena. S.m. Banheiro; instalações sanitárias.

Conjolo de Conjema. S.m. Cemitério (pode-se usar apenas Conjema).

Conjolo de Covera. S.m. Hospital.

Conjolo de Curimba. S.m. Local de trabalho; escritório; oficina.

Conjolo de Cuxipa. Sin. Conjolo das Ocaias; motel.

Conjolo de Gombê. S.m. Curral.

Conjolo de Grozope. S.m. Bar (mesmo que Conjolo de Matuaba).

Conjolo de Ingura. S.m. Banco.

Conjolo de Matuaba. S.m. Bar.

Conjolo de Omenha. S.m. Mictório; banheiro.

Conjolo de Viru. S.m. Cemitério. Sin: Conjolo de Conjema.

Conjolo do Granjão. S.m. Igreja.

Conjolo do Longado. S.m. Discoteca; clube; casa de dança.

Conjolo dos Cuete-Ocora. S.m. Asilo.

Conjolo dos Viriangos. S.m. Cadeia. Por ext: batalhão.

Conteque (ê). S.m. Noite. Mais usado: Oteque.

Conviconve. Vide: Caviconve.

Coreã. S.m. Chapéu; cobertura.

Coreã de Gombê. S.m. Chifre.

Covera. S.f. Doença. Var: Corvera.

Cuete (ê). S.m. Homem; moço; rapaz; cara; sujeito. Por ext: macho.

Cuete-Avura. S.m. Cara Grande. Por ext: Cara legal; cara bonito; cara rico.

Cuete Curimbador. S.m. Trabalhador; operário; proletário.

Cuete da Ocaia. S.m. Marido.

Cuete do Conjolo de Granjão. S.m. Padre; sacristão. Sin: Inganga.

Cuete-Ocaia. S.m. Homem homossexual; pederasta passivo; bicha; homem gay.

Cuete-Ocora. S.m. Homem velho. Por ext: Pai.

Cuete-Omano. S.m. Irmão. Sin: Imbanje.

Cuete-Tata. S.m. Pai.

Cumba. S.m. Luz; lâmpada. Var: Pumba.

Cumba do Bélude. S.m. Sol. Sin: Unde.

Cumba do Oteque. S.m. Lua.

Cumbaro. S.m. Cidade. Var: Cumbara.

Cumicove. S.m. Quitanda; salgado; tira-gosto. (Trata-se de variação de Caviconve).

Cureiar. Sin: Cachar o Cureio. Var: Curiar.

Cureio. S.m. Comida; almoço; janta; ceia. Sin: Banjerê ou Conjerê. Var: Cureia; Curei.

Curimba. S.m. Trabalho; ocupação; ofício. Var: Curimbo; Curima; Curimo.

Curimbar. V. Trabalhar. Var: Curimar.

Cuxipa. S.f. Pênis; órgão sexual masculino. Var: Cuxipo. Sin: Erpido.

Cuxipador. S.m. Aquele que pratica sexo com freqüência. Gíria: comedor;

fodedor.

Cuxipar. V. Sin. Rastar Cuxipa.

Cuxipo. S.m. Pênis; órgão sexual masculino. Var: Cuxipa. Sin: Erpido.

Encachar. V. Sin. Cachar.

Erpido. S.m. Pênis. Sin: Cuxipa, Cuxipo.

Esquife. S.m. Cama; leito. Var: Isquife. Sin: Tiprequé.

Fitar Viru. V. Morrer; falecer.

Fute. S.m. Céu; firmamento; ar; espaço sideral.

Gafanhaque. S.m. Dente; Queixo; Mandíbula. Var: Cafanhaque e Cafanhaco.

Gombê. S.m. Gado; vaca; boi.

Gombê-Camoninho. S.m. Bezerro (Gombê Catita).

Granjão. S.m. Deus; o Todo-Poderoso. Var: Garanjão; Garanjame.

Grozope. S.m. Cerveja.

Grozopiado. Adj. Bêbado.

Grozopim. S.m. Bebidinha; qualquer bebida alcoólica de dose.

Haver de Carambóia. S.m. Ovo. Sin: Sabor.

Haver de Gombê. S.m. Leite.

Imassango: S.m. Arroz; Var: Assangue; Assengue; Missangue.

Imbanje. S.m. Irmão. Sin: Cuete-Omano. Var: Imbangue.

Imbanjeco. S.m. Qualquer instrumento musical. Por ext: toca-disco; toca-fita; toca CD. Var: Imbanjeque; Banjeco.

Imbanjeco de Imbuete. S.m. Violão.

Imbera. S.f. Chuva. Sin: Omenha do Fute.

Imbiá. S.m. Cigarro. Sin: Marcanjo.

Imbondo. S.m. Qualquer coisa; objeto.

Imbuete (ê). S.m. Pedaço de pau; madeira; cacete; porro; taco. Por ext: pênis.

Imbuete de Undaro. S.m. Pau de fogo; arma de fogo; espingarda. Sin: Moco de Undaro.

Imbuta. S.f. Cobra; lingüiça. Var: Imbuca.

Inca. S.m. Ânus; cu. Sin: Janô.

Indaro. S.m. Fogo. Sin: Undaro.

Indu. S.m. Feijão. Sin: Tipoquê.

Inganga. S.m. Padre; sacerdote; feiticeiro (pajé); Sin: Cuete do Conjolo de Granjão.

Ingora. S.m. Cavalgadura; cavalo; jegue; burro. Sin: Orongó.

Ingura. S.f. Dinheiro; numerário; riqueza.

Ingura Avura. S.f. Rico; cheio da nota.

Ingura Catita. S.f. Pobre; pobretão; sem dinheiro. Sin.: Tchapo.

Injara. S.f. Pênis. Sin: Cuxipa.

Injara Mitomo. S.f. Barriga (pouco usado). Sin: Jequé.

Injira. S.f. Carona; transporte.

Injirar. V. Andar; fugir; correr; voar; sair; sumir; escafeder-se; jogar (pedra ou objeto); atirar etc.

Injirar no Fute. V. Voar.

Injirar no Viru. V. Morrer; falecer. Sin: Fitar Viru.

Injirar pro Esquife. V. Ir deitar-se; ir dormir.

Insu. Adj. Azedo.

Isquife. S.m. Cama. Var: Esquife.

Janô. S.m. Ânus; cu; bunda.

Jequê. S.m. 1. Barriga; ventre; útero; pança. 2. Buraco. Var: Jequé.

Jiqui. S.m. Buraco.

Liporê. S.m. Fruta. Var: Tiporê.

Longado. S.m. Rebolado; dança; jeito de andar;

Mantambu. S.m. Mandioca. Var: Matambu.

Marcanjo. S.m. Cigarro; pito; fumo. Sin: Imbiá. Por ext.: Marcanjo Avura: maconha.

Marcanjo Cafuvira. Fumo de rolo.

Marcela. S.f. Vulva. Sin. Caranguela.

Maruco. S.m. Litro de cachaça.

Massarundá. S.f. Banana.

Matambu. S.m. Mandioca. Var: Mantambu.

Matuaba. S.f. Bebida alcoólica; cachaça.

Matuaba no Tué. Adj. Bêbado; borracho; bebum.

Mavero. S.m. Mama; peito de mulher; seio. Var: Mavera.

Mingüé. S.m. Gato; felino (masc. ou fem.).

Mingüé do Sengue. S.m. Onça.

Missango. S.m. Arroz. Missangue.

Missongue. S.m. Dinheiro (pouco usado). Sin: Ingura.

Mitomo. Ver: Injara Mitomo.

Moco. S.m.Qualquer ferramenta ou instrumento de trabalho;enxada; enxadeco.

Moco de undaro. S.m. Arma de fogo; revólver; espingarda. Sin: Imbuete de Undaro.

Moná. S.m. Criança (Var. de Camoná ou Camoninho).

Mongo. S.m. Sal. Var: Mungo; Mungue.

Montecristo. S.m. Carvão.

Moxé. S.m. Sapo.

Ocaia. S.f. Mulher; moça; garota; fêmea etc.

Ocaia de Cuxipa. S.f. Prostituta; Sin: Ocaia que Rasta Cuxipa.

Ocaia-Ocora. S.f. Mulher velha. Por ext: Mãe.

Ocaia-Omana. S.f. Irmã.

Ocaia que Rasta Cuxipa. S.f. Prostituta; piranha; galinha.

Ocora. S.m. ou f. Homem velho; pai. Mulher velha; mãe.

Oli. S.m. e Adj. Branco.

Omana. S.f. Irmã. Omano. S.m. Irmão.

Omenha. S.f. Água; água potável.

Omenha de Cuxipa. S.f. Urina; xixi; mijo.

Omenha de Vianjê. S.f. Pinga; cachaça; aguardente de cana.

Omenha do Fute. S.f.: Chuva Sin. Imbera.

Opepa. Adj. Bonito; bom. Pessoa loura. Var: Apepa; Apepe; Atleba; Opepe; Oprepa.

Oranjê. S.m. Cabelo; cabelos. Por ext: pêlos. Var: Aranjê.

Oranjê de Cafanhaque. S.m. Barba; Bigote.

Oranjê de Cafuvira. S.m. Pixaim, carapinha.

Oranjê Opepa. S.m. Cabelo bonito; por ext: louro; liso.

Oranjê de Geada. S.m. cabelo grisalho.

Orelo. S.m. Gordura; Toicinho.

Orongó. S.m. Cavalo;égua;cavalgadura.Sin: Ingora.Var:Arangó; Arangome; Aranguão; Orangó; Orongome.

Oronha. S.m. Relógio. Também se diz: Uruma de Tempo.

Orufim. S.m. Peixe. Var: Orufino; Ourofino; Urufim.

Oruma. S.f. Carro. Var: Uruma.

Otata. S.m. Pai. Var: Tata.

Oteque (ê). S.m. Noite. Var: Conteque.

Oveva. Adj. Torto; feio; atrapalhado; machucado.

Percinê. S.m. Óculos.

Pó de Bugue. S.m. Farinha de Milho. Var: Pó de Pungue.

Pó de Mantambu. S.m. Farinha de Mandioca.

Pranchear. V. Cair; levar um tombo.

Prancheio. S.m. Queda; tombo; caída.

Protiuda. S.f. Bunda; nádegas; traseiro. Var: Protiude.

Pungue. S.m. Milho. Var: Bugre; Bugue; Burre.

Radiopipa. S.f. Bunda; nádegas. Sin: Protiuda.

Rastar Cuxipa. V. Fornicar; transar; fazer amor.

Rastar Longado. V. Dançar.

Rastar Tiprequé. V. Dormir; deitar-se.

Rastar Urunanga na Omenha. V. Lavar roupa.

Sabor. S.m. Ovo. Sin: Haver de Carambóia.

Sengue. S.m. Roça; mato; mata. Por ext: Fazenda; zona rural. Var: Sengo.

Tata. S.m. Pai; genitor. Var: Otata.

Teia. S.m. Tatu.  

Tchapo. Adj. Esfarrapado; maltrapilho; roto; estragado; inutilizado etc. Sem dinheiro; pobre. Var: Atchapo.

Tibanga. Adj. Bobo; idiota; imbecil; otário; inepto; simplório; ingênuo; boçal; trouxa; parvo etc. Var: Tibanguara.

Tibanguara. Var: Tibanga.

Timbuá. S.m. Mão.

Timbere. S.f. Carne. Var: Camberela (mais usado atualmente).

Timberéia. S.f. Carne Var: Camberela (mais usado atualmente).

Tinhame. S.m. Perna; coxa; coxa feminina. Var: Quiname.

Tinhame de Uruma. S.m. Roda (de carro).

Tiparo. S.m. Olho. Var: Tipara.

Tiparo dos Imbondos. S.m. (geralmente usado no plural) Rolo; quinquilharia; bricabraque; badulaque; coisa confusa e desconexa; gambiarra; objeto não identificado etc.

Tiploque. S.m. Sapato; calçado de um modo geral. Var: Tipoque; Tiproque.

Tiploque de Orongó. S.m. Ferradura.

Tiploque de Uruma. S.m. Pneu.

Tipomo. S.m. Chapéu. Sin: Coreã. Var: Ticomo; Pongo.

Tipoque. S.m. Sapato. Var: Tiploque.

Tipoquê. S.m. Feijão. Sin: Indu.

Tiporê. S.m. Fruta. Var: Liporê; Ariporê.

Tiporê de Insu. S.m. Limão.

Tiporê de Uíque. S.m. Laranja; tangerina.

Tiporê do Sengue. S.m. Fruta silvestre.

Tiprequé. S.f. Cama. Sin: Esquife. Var: Tipequera; Tipeqüera; Tipequé; Tiprequero.

Tiproque. S.m. Sapato. Var: Tiploque.

Tipurar. V. Olhar; observar; ver etc.

Tué. S.m. Cabeça; crânio; cérebro; inteligência etc.

Tué Uarrufo. S.m. Nervoso; cabeça quente; alterado; preocupado.

Turisco. S.m. Pedra; seixo; cascalho; rocha. Por ext: Bola de sinuca.

Uarrufo. Adj. Bravo; selvagem; forte; arredio. Var: Arrubo; Arrufo; Uarrubo; Uarrufa.

Uba. S.f. Cerveja. Sin: Grozope.

Uíque. Adj. Doce; coisa doce. S.m. Açúcar.

Undaro. S.m. Fogo; fósforo; isqueiro; faísca etc. Var: Indaro; Sundaro; Undara.

Unde. S.m. Sol. Sin: Cumba do Bélude.

Urufaco. S.m. Sapato. Sin: Tiploque. Var: Uruvaco.

Urufim. S.m. Peixe. Var: Orufim.

Uruma. S.f. Carro; veículo. Por ext: máquina. Var: Orum; Oruma; Orume; Orumo; Urum; Urumo.

Uruma de Equilíbrio. S.f. Moto; motocicleta; motoneta; lambreta; vespa.

Uruma de Gombê. S.f. Carro de boi.

Uruma de Omenha. S.f. Barco; navio; canoa.

Uruma de Orongó. S.f. Charrete; carroça.

Uruma de Pedal. S.f. Bicicleta.

Uruma de Tempo. S.f. Relógio. Sin. Oronha.

Uruma de Urunanga. S.f. Máquina de costura.

Uruma do Fute. S.f. Avião.

Urumute: S.f. Abóbora; Var: Arumute.

Urunanga. S.f. Roupa; vestimenta; calça; camisa; vestuário. Var: Arundanga; Arunanga; Urundanga.

Urunanga Catita de Cuete. S.f. Cueca.

Urunanga Catita de Ocaia. S.f. Calcinha.

Urunanga de Mavero. S.f. Sutiã.

Vianjê. S.m. Cana-de-açúcar.

Vindero. S.m. Patrão. Var. de Cavinguero.

Viriango. S.m. Soldado; policial; polícia; meganha; samango; etc.

Viru. S.m. Defunto; morto; cadáver.

Vissongue. S.m. Dinheiro (pouco usado, antiquado). Sin. Ingura.

Vissunga. S.f. Festa; baile; pagode. Var: Vizunga.

Vizunga. S.f. Festa. Var: Vissunga.

Xapixape. S.m. Comida. Sin mais usado: Cureio.

Bondês; Bederodes; BD; (Bom Despacho),

28 de maio de 1985. ANTÔNIO BENÍCIO DE CASTRO CABRAL & IVÃ RODRIGUES DO COUTO (COMODORO)

Atualizado com a união com o vocabulário da Professora Sônia Queiroz, integrante do seu livro “PÉ PRETO NO BARRO BRANCO, A língua dos negros da Tabatinga”; pg. 112 a 138. Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998.

Referências:

CABRAL, Antônio Benício. Benício Cabral Produções. A Língua da Tabatinga. O Cuete que caxô imbuete dos viriango.Coordenação e desenvolvimento do autor. Disponível em: <https://beniciocabral.wordpress.com/>. Acesso em: 19 maio 2020.

CABRAL, Antônio Benício. Entrevista Especial sobre Literatura e a Língua da Tabatinga. Mensagem recebida por <beniciocabral@gmail.com> 05 de agosto de 2020.

GATTUCO, Gio. Linguas Africanas: 10 palavras do Kimbundu usadas pelos brasileiros. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_4OGwDEmBLc >. Acesso em 07 maio 2020.

MAZZITELLO, Maria Catarina. Cuete Cavinguero tá injirando. Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Desenvolvimento da autora. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=OwblIAp9Myk >. Acesso em: 07 maio 2020.

QUEIROZ, Sônia Maria de Melo. Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.149 p.

MOPC LÍNGUÍSITCA. Kimbundo – Língua Africana de Anola Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WdABeeTsCNw&list=PLVtynsD4LmFGc97McUYUkkBwuZU8RtwzZ&index=66&t=0s>. Acesso em 07 maio 2020.

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Graça Rios II – Entrevista “ainda no penhasco…” (mulher, literatura na web, art pop e leituras)

Graça Rios II – Entrevista “ainda no penhasco…”

(mulher, literatura na web, art pop e leituras

Nesta segunda parte do especial literário com a escritora Graça Rios, abordaremos a literatura na web, a feminilidade, a pop art  e algumas reflexões sobre a leitura.

Em 2012, ao inaugurarem o Blog das Belas Coletâneas Ridículas, você e o escritor Etelvaldo Vieira de Melo assinam um excelente manifesto, intitulado Blogu’eus, a respeito da publicação por meio do weblog. Daquele ano para cá como vocês veem a distribuição de literatura na rede mundial e a leitura pelas telas? Costumam pesquisar nos mares da rede sobre literatura contemporânea, buscam por novos autores?

1.Premissa: Toda semana, recebo urge rugindo a mensagem: ‘KD o texto para sábado? Etelvaldo.’. Às vezes, até em Inglês, por causa do aperto na UFMG, possuo alguma prosa pronta; noutras, opto pela crítica cinematográfica. Conforme afirmei, leio tudo que posso sobre o filme visto vivamente vivo. Por exemplo, procuro do excelente ‘O Insulto’: diretor, astros, ficha técnica, comentários, prêmios. Daí, associo essa pesquisa à mitologia grega ou romana. Se fosse agora, teria ligado Parasita ao drama real de terror Corona Vírus, sob o prisma de estar tudo parado. E escrevo: ‘-Não vale mandar de volta.’ E pur si muove o texto, renegando a possível visão heliocêntrica do mundo perante o tribunal da Inquisição dele e do leitor.

Espero passarem-se dez e meio quartos de luas. Pergunto: Fomos condenados? E o IBOPE: Quanto?

Ele: -De sempre! ou: Na semana passada foi ruim, mas hoje tá um dia bão.

Temos 60% cliques na Europa. 30 %, na América. 5%, na Grécia.

– E no Brazil ou Brasil? – 2% dos amigos comentaram se…

Se a expressão tiver uma conotação hodierna, permita-me gritar: ‘- Teco-Teco, eu fico enfezada pqp com isso, orra!’. Mas o amigo é mansinho: ‘No exterior, o povo traduz bem o que escrevemos.’

Sábado seguinte, mando um poema: – Etel, será que na Cochichina entenderão minhas metáforas, enjambements, jogos de linguagem, tema? Ele– Elogiam muito os comentários futebolísticos do Ivani, Mariinha! Hão de a Voz entender-Vos também. (Eu sou a Mariinha).

PS: Ivani, esse o leitor já viu e adorou. É o jornalista, terceiro sócio da nossa dupla.

2. Tese: As bolas graciosas e tico-ticas caem bem nos cestos estrangeiros, mas brasileiro gosta mesmo é do goleiro Ivani. (Vide wwwbbcrblogspot.com)

Em termos de acessibilidade o texto na tela facilitaria a distribuição em rede e o alcance dos leitores. Era o que muitos profissionais esperavam, há quase uma década e meia, quando da chegada dos simuladores virtuais de livros e revistas. Na sua percepção, isso aconteceu? Ou está acontecendo?

A tecnologia é um fator de desenvolvimento universal. Não é ruim PARA O LEITOR AMBIENTADO COM ELA, E BOM CONHECEDOR DO QUE HÁ DE QUALIDADE PARA SER LIDO, mas nada substitui os volumes encapados e a cores, letra digitada, anotações, papel sedoso, da Coleção Temas da Arte Contemporânea, de Katia Canton ou O Café Filosófico, organizado por Markus Figueira da Silva em Natal, pela Editora da UFRN, para jovens vestibulandos ou universitários.

Quais os critérios utilizados pela internet para orientar o trabalho formidável de Machado de Assis? Que eu saiba, nenhum.

Ítalo Moriconi diz que a literatura de pensamento e sentimento, isto é, as belas letras da expressão humana devem ser guardados na memória e nos acervos. Você tem o seu acervo digital particular de arquivos? Tem uma lista de links para navegação constante? Na sua opinião, as vantagens das bibliotecas virtuais e digitais compensam suas respectivas desvantagens?

Há um filme, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que concedeu a Moriconi dez mil orgasmos múltiplos, com certeza. (Perverso! Orgasmo não é apenas sexual, bobão!)

Queimados por proibição governamental todos os livros de uma cidade, o bombeiro Montag e a vizinha Clarisse reúnem escondido um grupo sem função de intelectuais, e cada um memoriza um livro famoso no acervo cerebral. Daí pra frente, veja a película, ora, ora.

Tenho recebido mensagens sobre bibliotecas virtuais magníficas à disposição do internauta. KARAOQ ue mané desvantagem? Acho fantástico também pagar apenas dois reais a um site do Word para ler o que imaginar. Vou escrevendo e pesquisando, simultaneamente. (Ai, contei sem querer o meu segredo de gênia geniosa engenhosa). ‘Dilícia’ exulta o dolor lectorem (= leitor esperto). Onde é o site? Aonde ir? Não conto. Desconto, por dez contos, só o latim do Translate Google.

Não me referi, lógico, a quem põe em segundo lugar o livro de papel, seu saboroso olor verde, seu colírio para os amados olhos. Em outras palavras, aos vagabundos, trapaceiros, vigaristas, preguiçosos, embusteiros, tapeadores, golpistas, desonestos e… que só leem… isso mesmo que o leitor pescou. Guardo artigos, dissertações, poemas, coisas boas, no pen drive, dentro de um arquivo de aço. Peço a alguém de confiança que guarde capítulos de livros que parei de fazer, desde que um antigo psiquiatra me alertou pelo telefone para o fato de eu ter deixado a cabeça no consultório fazia quinze dias.

O mesmo Ítalo Moriconi no capítulo O pop e o após do livro Como e porque ler a poesia brasileira do século XX diz que “na cultura pop (inteligente) o mundo da diversão e o mundo da arte séria se reaproximam”. Muitos artistas tais como Ana C. César e Torquato Neto, sobretudo poetas-letristas trabalharam e ainda trabalham a popificação da literatura tornando-a mais acessível. Fale-nos de sua postura ao explorar os temas e as linguagens da pop art.

Pois eu não estou chateando você aqui com a pop Literatura? Nada mais sério que um escritor brincando. Quem quiser letra dura, econômica, vacinada pra quarqué virusinho ou virusão lav®ado em ducha corona, passa na Biblioteca, pega uma obra Parnasiana, das Academias Barrocas ou das Academias em Geral.

Se desconsiderar o pessoal marginal que procura um estilo diferente, a rebelião contra as Grandes Editoras e seus asseclas, como Cacaso, Ana Cristina, Leminski, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, nos anos setenta, os novos da pós-modernidade; se os desconsiderar, o Brasil cultua o princípio, meio e fim feliz dos romances açucarados. Os escolásticos imperam na Didática. Escolas têm horror a escritor ousado, demolidor do edifício de concreto armado Romântico. Porque não estudam, não se aprofundam na paixão e na técnica do pós-tudo, fornecem aos jovens os sonetos rimados, melosos, os versos de autoajuda. Caiu o muro de Berlim, porém o estudante brasileiro está do lado velho da Literatura. Desconhece Fernando Pessoa, Pirandello, Deleuze. E mais… E mais… Encantam-se com o padrão, com a norma culta e opressiva da Gramática em cima das escrituras. (Felizmente) leem quadrinhos, conhecem Ziraldo, Ana Maria Machado, Fernando Vilela, Daniel Mundukuru, Maurício de Sousa, …

Eu gosto de descobrir o exótico, acreditar na capacidade leitural, na inteligência da garotada. Os editores, exceto um ou dois, publicam textos imbecis e lhes repugnam os bem elaborados, pois querem vender, ganhar dinheiro e obedecer à política dos pobres de ideias e imaginação. Devolveram-me A Hora do Gol, pois adolescente não conhece futebol no meu estilo. Ah, ah, ah! Vingar-me-hei, podem temer.

Qualquer um tem medo de Virgínia Woolf, quando vê o destempero criativo mil anos-luz à frente em termos de ironia do poema seguinte, escrito no século passado. Afinal, os bons textos não têm pés quebrados: têm asas, certo, Emílio de Menezes? Ei-lo:

A Uma Deusa (O Quelso)

Luís Lisboa (maranhense)

Tu és o quelso do pental ganírio
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólío do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,

lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbáceas do pental perônio.

Barlacantes carmentórios

Pulsa obálio gâmbias lúrias
Do pijom és o bartólio
Carquejantes camençúrias.

 A boa literatura pop… as nossas excelentes canções com letras inteligentes, podemos considerá-las como poesia culta?

Trovadores – aqueles que escreviam a letra da cantiga. Jograis – pessoas que tinham como função declamar poesia ,se deslocando de festa em festa, de sarau em sarau para declamar. Segréis – fidalgos que iam de corte em corte para disseminar arte e literatura, e podiam compor também, como os trovadores.Trovadores e segréis cantavam nos palácios ou nos feudos, acompanhados de flautas reta, transversal, cornamusa, viola de arco.

Tomei nota do exposto acima para mostrar a quem me lê as características da poesia medieval. Os cantores populares ouviam as lavadeiras entoar lindas canções nos rios. A partir desse leitmotif, ganhavam a vida tocando instrumentos e reelaborando o escutado. Seria o que hoje denominamos SIMULACRO?

Conheço um compositor Cristiamamos (Cris) ou um segrel/menestrel/trovador? Pop, pop, que nem nóis semo. Escuto-o cantar, ouço sua mãe assobiar, enquanto a esposa Rita tece (tessitura, tecido, texto) e me questiono Onde está a Margarita, olê, olê, olá? Ele também cola uns trecos esquisitos, põe uns pensamentos abalroados barrocos, uns cri-cris de sapassagrilofantes no entoo.

Em incerta feita, perguntei se aquilo era Debussy. Claude-Achille Debussy foi um músico e compositor francês. A sua música inovadora  agiu como um fenômeno catalisador de diversos movimentos musicais em outros países. Ele achou Graça na comparação. De verdade: Wagner, Debussy, Ravel, me causaram uma espécie de agonia há uns anos atrás. Custei a engolir o Bolero. Mas fui a um concerto contemporâneo de música feita em fundo de mina. Que Minas Gerais, sô? Tô falando de mina d’água lá embaixo, com pedra batendo em galho, vento sussurruPIANDO vrum VRUUUUM   FFFFFFFFFiiiiii, cascalho rolando na plateia, BAT BATTT, plamplam, impressão de estar no oco do toco do choco dos crocodilos, um Orror! Desculpe-me. Herrar é umano! Jogaram laser em torno das poltronas.

  1. Laser, abreviação em inglês de “Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation” que significa Amplificação da Luz por Emissão Estimulada de Radiação é um dispositivo que cria e amplifica um intenso feixe de luz monocromático (contém exatamente uma cor ou comprimento de onda), coerente (a luz liberada é organizada e bem definida) e colimado (propaga-secomoumfeixe) Dicionário Google

Aí, endoidei memo.

Nunca vira aquela balbúrdia interplanetária subterrânea terrânea à minha volta. Paganini, dizem, era um virtuose do violino que tocava em cima dos túmulos no cemitério. Meu pai só não subia nos túmulos, mas virava um pagão do violão em cima da cama limpa e passada a ferro de brasa de minha mãe. Espere, leitor, que vai entender a mess (Mess= bagunça, ing.) organizada.

Aí, o laser, os treco caindo do teto em forma de imagens, a água, a gritaria nossa, aquilo me enlouqueceu de luxúria, vaidade, gula, setenta pecados capitais de prazer e gozo. Jamais tive algo assim: precisão de camisa de força.

Agora, dou um espaço pra não confundir os cabeludos.

Chegando em casa, contei a Sebastian Bach Rios a minha efusão confusa e deslumbrosa. Ele se fechou comigo no quarto, pegou o violino:

– Filha, temos de trancar a cela com a cancela, senão vamo de braço dado pro manicômio. Sua mãe chama os psicô e isso vira um kokô. Espaço.

Pegou a caneta e começou a compor em notas filhas da pauta o que eu cochichava.

O que eu cochichava? Você me jogaria rolling stones (pedras rolando, ingl.).

Pasme-se! Era a boa literatura pop…as nossas excelentes canções com letras inteligentes, consideradas só por nós ambos, pai e filha amantíssimos (da Arte), a poesia mais culta do mundo. Eu só a interpretarei algum dia em cima do meu próprio caixão. Sozinha, em solo comigo e meu papá.

Sabemos que uma grande quantidade de tarefas e responsabilidades quotidianas recaem sobre a mulher: realização, supervisão e/ou governança de inúmeras tarefas do lar e da família. Como a escritora se arranja com vistas a obter liberdade doméstica e tempo para criar?

Criar, tocar Órgão, fazer o Avançado de Inglês na UFMG, ser a síndica mais cínica do Edifício Amaralina, fazer Pilates, ir à psicóloga, ir ao consultório da minha Gnana botoqueira pra arrumar a cara, ficar com os netos no domingo, pôr freio na Rose, minha empregada que me freia, ler, comer, quase dormir… e tomar o comprimidinho. Quando começo a ficar muito MUITO e palhaça D+, a Rose fala: – Esqueceu o comprimidinho, melancólica? E MO enfia goela abaixo. Assim, fico calminha, domesticada e recreativa.

Com base na sua experiência, quais seriam as diferenças essenciais entre a mulher escritora atrelada 100% aos “velhos papéis” com a mulher escritora independente de hoje?

A atrelada usa antolhos (viseira para onagros) na leitura do mundo e da letra.

Escrevi um texto para os alunos cegos, chamado ANTOLHOS, com a independência literária e a birutice de sempre. Enviei-o para uma amiga boa de bolo de chuchu no exterior, e ela quis enviar dinheiro para o cego que, na crônica, iria operar o globo (ocular) para voltar a ver as florestas, o ouro, o céu, as nuvens brancas de antes.

A boa de cama e ruim de livro leu a história 100% nos ‘velhos papéis’. Certamente, cozinhando passando lavando roupa encerando o chão lavando o banheiro e lendo….

Sempre meia bandida, meia fada, meia Medusa, pedi que pusesse a quantia em minha conta bancária para os gastos com a cirurgia malvada como o Cão.

Depois, escrevi, inteira/mente safada, que o cego, minha filha, é uma figura de linguagem. Por Deus, entenda que representava metaforicamente o brasileiro. Ele, eu, tu, não enxerga a realidade política, social, econômica em que vive e, se bem operado, pode ver.

Quem manda eu gostar de contemplar mirar observar espreitar considerar bispar almejar as coisas com os olhos da Pequena Príncipa exuperyda:

Só vemos bem com olho vivo. Vários olhos. Olho clínico. Olho nu. Olho-de-peixe. Olho-de-gato. Perder de vista. O resto essencial é invisível para… quem usa antolhos na cara.

Vejamos o seguinte trecho: “a mulher escritora é como um jardim: respira cercada pelo mundo dos homens, e o enxerga em outras cores, carregada de todo um universo de sutilezas ainda ignoradas – mas vivas.” (sobre Virginia Woolf em O Status intelectual da mulher, editora Paz e Terra, 1996). O que Graça Rios pode nos contar sobre sua experiência intelectual sob e sobre o olhar masculino?

Vinicius d’Imorais, aquele machista metido a vítima, vivia comparando a mulher com objetos: a linda lua, um jardim, uma rosa, um pássaro… Cara misógino, bandoleiro mulherengo naquele Soneto da Infidelidade.

Um cego do Braille prometeu-me um disco do sofista marciano. Respondi: Seja, pois, um disco voador, para atravessar as galáxias e ser quebrado pelas serafinas.

Mulher é mulher de carne e osso, seu viniciado na pinga. Mulher é gente, não é diferente. Detesto quem acha que homem é homem; e mulher, lobisomem.

Desculpe-me, leitor, mas sei ler por além das linhas a poesia do velho Vinil, com a Psicanálise da Professora do Mestrado Ruth Silviano Brandão, sob o olhar capcioso da Lúcia Castello Branco. E tem muita demoiselle suspirando por aquela b-o-s-t-a fraca.

Ali, a mulher vale tanto quanto o pé quebrado das estrofes.

Faltou o ghost-writer acrescentar: ‘respira pelo próprio nariz no mundo dos homens e das mulheres. Escreve caminhando leve e solta.’. Veja só, amizade, se aguento carregar o universo! Virei guindaste super-sônico? Só se for o universo dos filhos e netos, nove meses na barriga. Já me bastam os Rios.

Cercada e carregada, só se for pra cadeia, depois de matar na Paz da Terra, o sutil ignorante que falou essas asneiras porcas dela, a Virgínia, fã, entretanto invejosa da minha Katherine Mansfield. Se ainda estivesse vivo…. Sei lá…1966. Deixa pra lá.

O olhar masculino há de ver graça, garça e raça e rios e riso nas minhas experiências intelectuais, morais, cerebrais. Gatona enxuta, ainda! Perigosa, embora.

Se me achar um jardim abafado pelo que ignoro e as tais sutilezas, esse crítico há de enxergar tudo em cores roxas – onde estiver.

Com ‘Licença Poética’ de Adélia Prado, em Divinópolis, perto de onde nasci, ‘Inauguro linhagens, fundo reinos. / Mulher é desdobrável. Eu sou.’

 Thank you, AP.  Merci beaucoup.

Sobre leitura e audição de histórias. A escritora adquiriu muita experiência trabalhando com estímulo e elevação do nível de leitura das pessoas, seja em programas culturais e projetos editoriais, seja no sistema de ensino público e privado, como professora. Penso, a população em geral compreende bem as linguagens simbólicas das telenovelas, dos filmes, dos seriados e da publicidade. Mas por que, então, demonstra certa resistência em ler histórias de ficção e poesia? Por que não aprecia ouvir histórias contadas por pessoas mais experientes e maduras?

It all depends on the counter. Escrevi em inglês para criar suspense no que vou narrar. Tenho uma conhecida que me indagou: – Graça, a professora da minha neta de nove anos pede o reconto de um livro todo mês. A menina enjoou de tanto recontar os autores… que até são bons. O que faço com ela?

Fiquei confusa: com a neta ou com a professora? Claro que a pê da goga é uma carrasca infernal. Faz a criança odiar a leitura, a escrita, o livro, o autor. Existem centenas de atividades incríveis com a leitura. Teatralização, entrevista com o autor (se falecido, um grupo estabelece as questões; outro, responde como se fosse, por exemplo, Alaíde Lisboa); mural com retratos, poesias, recortes de jornais, redações, desenhos de artistas da classe; poesias; jogral com as filas de carteiras; charadas sobre a obra; construção das personagens na aula de Artes; concursos;  debates; filmagens; danças e músicas inventadas pelos grupos, bandas na aula de Música ou Artes; fantoches; documentários do livro ou do autor; visita à Editora com diálogos locais preparados antes;  convite ao escritor para uma conversa na escola ou na sala… E vai, vem, vai, o trem da leitura, do conto, da história vai parar no Paraná, Nordeste, Minas, Além-mar.

Trabalhei com Antonieta A. Cunha na BIJBH. As crianças e nós, adultos, caíamos todos os nove queixos (cinco de cada um) nos Concursos de Contação de Histórias. Em BH há minas de ouro, prata, diamante, em termos de grandes contadores . Citarei alguns, entre os mil conhecidos (perdão, por não citá-los): Deborah Michelin, Sandra Lane, Pierre André, Beatriz Myrrha, Ana Raquel Coelho, Trupe Maria Farinha, Alessandra Visentin, Samuel Medina, Rosana Mont’Alverne. Ligue para eles: na BIJBH certamente haverá os endereços.

Você conviveu com a Maria Luiza Ramos (Fale-UFMG), um outro talento exemplar que nos legou iluminadas formas de pensar a leitura. Ela nos avisa em relação aos “círculos do livro” e “pactos de leitura”, fenômenos que encurtam o repertório de quem lê. Maria Luiza idealizou um leitor versátil, paradoxal, capaz de escapar das camisas-de-força, superar os demasiados enviesamentos (cortes transversais), libertando-se dos mecanismos de controle do imaginário. Mas hoje os movimentos editoriais assumem explicitamente seus vieses e os leitores estão encarcerados em suas preferências. Há como pensar uma pedagogia que ajude a criar/sugerir o leitor ideal de Maria Luiza Ramos?

Maria Luiza, surpreendente intelectual, minha querida amiga e professora, tinha o seu ‘Leitor Ideal’. Certa vez, discutimos sobre isso. O que é o Leitor Ideal? Cada autor, professor, filósofo, crítico literário tem uma ideia diferente a respeito do que isso significa.

Pense comigo: O que é o Leitor Ideal na tecnologia? Qual o Leitor Ideal na leitura do mundo (hoje, não se considera leitura apenas do grafo, a letra. Lemos tudo o que existe, o tempo todo: a face do amigo, o quadro de Renoir, o sistema de governo, a pessoa que nos fala sobre algo – quer me fazer de boba? Me vender isso aí? Está mentindo? – o ambiente, o céu, a tampinha de cerveja no passeio – Quem a comprou? Sabe que essa marca faz mal? Não vê televisão. Bebeu até perdê-la? Porco! A lixeira logo ali!

‘O ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois, ou seja, o que vemos vive em nossos olhos pelo que nos olha. Partindo desse paradoxo, o historiador da arte francês Didi-Huberman compõe um ensaio que se aprofunda nas questões da arte, da estética e da interpretação contemporâneas.’ (Didi Huberman: O que  vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves, 1998 – 1ª edição, 2010 – 2ª edição. Editora 34).

Citei o Didi, primeiro porque me fascina; segundo, porque nos ensina que olhamos os objetos. E os objetos nos olham também. Aprendi que o sofá me vê e chama: ‘ – Venha descansar, mulher. Assente-se em mim. Traga os objetos, ponha em cima do meu vizinho.’. E a luz, brilhando de alegria: ‘- Prefere que eu fique assim, ou estou forte demais para você? Acenda a minha colega do corredor. Fica mais claro.’.

Serei eu, a Bolinha (meu irmão me chama assim) , a leitora ideal de meu pobre texto? Então, alguém será? Fale mal, mas…

O político se acha o Leitor Ideal da Constituição. O psiquiatra se julga o Leitor Ideal do analisando.

O marido se acha o Leitor Ideal da mulher, dos filhos, dos cachorros, dos cambau. O leitor deste texto se acha o Leitor Ideal da minha trapaça de sapiência sobre ele até aqui, mas a leitora tia/avó/irmã do meu leitor acha que ele é o rato besta que engoliu o queijo da minha ratoeira.

Neste tempo de Corona Vírus eu sou a Leitora Ideal dos safados dos Fake News? Da China gananciosa? Da Rússia? Da Coreia? O João das Couves disse que leu nisso uma arma biológica.

Maria Luiza viveu ainda na esperança da liberdade leitural. Dos pactos de leitura que Silviano Santiago descreve e descrê n’ As Malhas da Letra. Que pactos? De que leituras? De que estranhos mecanismos na telealdeia de McLuhan, já sem identidade privada. Sempre gostei das perguntas, porque cada um tem uma resposta geralmente errada para elas. O que acha disso, você, que não se acha o ‘José’ de Carlos Drummond de Andrade? Feliz é o peixe: conTudo, nada, nada… Quem falou isso? Em terra de olho quem tem um cego…Errei!

                                               Graça Rios, 23/03/2020 às 03:15h

Av. Afonso Pena, por Charles Torres

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Uma poetisa no penhasco da capital [entrevista

UMA POETISA NO PENHASCO DA CAPITAL – Entrevista especial com a escritora Graça Rios

Vencedora de vários concursos literários, como o João de Barro, Nacional de Literatura Infanto-Juvenil de Brasília, Poesia no ônibus, entre outros; às vezes feroz ao defender sua postura e sua livre expressão; noutras vezes delicada em contemplar a natureza, a humanidade e as artes. Personalidade homenageada por sua generosidade e empenho no incentivo à leitura, tem o nome identificando uma biblioteca comunitária na zona norte de Belo Horizonte.

Poetisa, prosadora, trocadilhista e brincalhona, trata-se de singular representante de nossa literatura feminina contemporânea.

Mulher que a um só tempo/lugar voa alto sem perder de vista o ninho. Intertextualiza-se com Ana Cristina César, Sylvia Plath e outros tantos autores nacionais e estrangeiros. Experiente na vida e nas letras, perspicaz nas relações humanas e suspicaz nas sociais, mantém-se ativa na criação literária, no estudo de idiomas e de música. Desde 2012 escreve para o blog BBCR (Blog das Belas Coletâneas Ridículas). Tudo isso sem deixar de arrumar um tempinho para a família, a vizinhança e os amigos. Neste mês de março de 2020, temos a honra de realizar uma especial entrevista com a professora, a escritora, a cidadã, artista versátil e poetisa Maria da Graça Rios. Desejamos que os corações se abram a esse convite destinado a todos.

Sinta-se à vontade, inicialmente, para se apresentar à nossa rede de apreciadores internautas. De onde veio, por onde passou, onde está e para onde vai Graça Rios?

Eis aí quatro perguntas profusamente metafísicas para as quais nenhum mortal teria respostas. Peninha de peixe e rato! (risos). Tornando-as terrenas, acessíveis, sou de Carmo da Mata/MG, casei-me, divorciei-me, morei em Lavras e Vespasiano. Vim para Belo Horizonte aos dez anos, onde cursei o ensino básico, médio, superior. Fiz Mestrado e todos os créditos do Doutorado na UFMG. Sniff! Sniff! Lecionei Português e Francês no Estado e na Prefeitura local e no interior. Finalmente, fui aprovada no Concurso para Professor(a) de Nível Superior da UFMG, lotada e aposentada no Centro Pedagógico. Atualmente, continuo (e morrerei) ali, aprovada para o Nível C1, primeiro Avançado de Inglês/2020. Caso escritora, ganhei muitos prêmios, viajei o que dinheiro (mais o dos filhos) me possibilitou, com especialização na Área de Português nos Açores. Continuarei! buscando! entender! tocando! a grandiosidade enigmática da Música, o que faço desde adolescente com meu papai, Maestro violinista Sebastião Rios. À última pergunta, eu, sem graça, respondo perguntando: -Poderei ainda acreditar que vá escrever algo razoavelmente bem/mal?

Só sei que netinhos e filhos são minha glória artística. Se for, talvez  perdão  quiçá – ora, ora, cristão! – (onde vai GR?), para o céu, ficarei sempre nas alturas, astrolando esse fato.

Desde quando resolveu tornar-se artista? E como aconteceu a escolha pela arte da palavra?

Minha vizinha diz ao mundo que ‘seu verdadeiro lugar é no picadeiro, ô paiaça. Por isso tem nome de Graça.’.

Serious now. O padre de CM (onde nasci) me buscava em casa aos seis anos para recitar poesia no meguenormefone da torre da Igreja, mil vezes maior que aquela/esta triste figurinha. A cidade toda me ouvia cheirando e comendo “A Flor do Maracujá”, de Catulo da Paixão (por mim, tadim!) Cearense.

Em BH, aos dez, o Grupo Escolar SB, solene, me premiou com um sabonete, uma pasta dental (‘dentifrício’), e uma fitinha verde-amarela, por ter comentado bonito o Hino Nacional antes do Bolsonaro. Eu andava pelas ruas num T: esticava os braços pra Capital saber que nas Letras eu era um Tesão. Daí pra frente, estudei D+ da conta, e escrevo o alfabeto até no banheiro, publicando o primeiro livro num Concurso da Bienal. Ah, ah! A Menção Honrosa seria a edição do Chuva Choveu   pela Editora Miguilim, via minha musa Antonieta Antunes Cunha.

PS: A medalha de ouro do Concurso Brasil/Portugal foi conquistada com   o poema Açor Emigrante, redigido a lápis crayon num rolo de papel higiênico, comigo ou sem migo assentada no tampo do vaso. A Ilha Terceira havia sido devastada por um sismo marítimo, e o meu coração explodiu.

Muitos de seus textos nos exigem prévios conhecimentos literários, contato com outros autores. Há uma fartura de intertextualidades, citações, recriações, paráfrases, expressões do francês e do inglês etc. Fale-nos sobre suas buscas por influências, sua abertura às diversas estéticas e estilos.

Preciso muito da pesquisa para escrever. Manuel Bandeira renega quem vasculha o vocábulo no dicionário em ‘Poética”, mas eu quero saber tudo sobre vento, pé de vento, ventos alísios, willy-willy, vendaval, se falo do tufão. Também detesto o lirismo comedido, funcionário público, mas adoro discutir com o Aurélio qual palavra fica boa num verso ou diversos. No mais, colo uma lata do Andy Warhol, um abridor de amanhecer do M. de Barros, um versinho de Virgílio (Libertas quae…), um risco/arrisco/rabisco num livro com nome de outro livro ou capítulo de algo que apreciei e ‘vão lendo vão lendo’ (ACC). Sou muito pop e papuda, embora me julguem kkk também erudita. Bolas!

(Risos). Sabemos que tem realizado algumas experimentações poéticas com dois ou três idiomas intercalando-se durante a narrativa. Possui textos escritos exclusivamente em francês ou inglês? Pretenderia publicá-los?

Não escrevi nada exclusivamente em língua estrangeira. Gosto da Flor do Lácio/Inculta e bela. Porém, com ajuda do Translate Image, misturo alemão com aramaico com turco e Venunês. Tenho um livro escondido porque louco, inédito porque ninguém o editaria, mesmo sendo polissêmico, poliglota, polichinelo, polipólen, polip(l)uto. Chama-seVertigem Babélica.

Como considera os simbolistas brasileiros em relação aos portugueses e franceses? E quanto ao Movimento Modernista, o que dele mais incide sobre seus escritos, tanto em prosa quanto em verso?

Amo Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé; mas minha sexy obsessão provém do ósculo ardente, alucinado de Camilo Pessanha. Eis o Segredo dessa alma e meu degredo. Ana Cristina Cesar é o navio que ancoro no ar; a tradução dos meus sete sentidos; a invenção de minha música em poesia de teclas desesperadas. Katherine Mansfield, ela, não reconto meu conto Bliss secreto de quando não defendi a tese de Doutorado porque me esqueci de fazer a rematrícula. Atordoamentos pós-tudo.

Ana e Katherine deixemos para as longas conferências que virão em breve. Alfhonsus, Dos Anjos e o Cruz e Sousa ficariam em que lugar na estante?

O Simbolismo de Cruz e Sousa dos trechos fugidios, cheios de buracos, chiaroscuros, questionamentos, dissoluções, agradava a turma do EJA, através dos excelentes professores.

O eclético e o contrastante se manifestam fortemente em muitos artistas mineiros. Há quem diga que tais características se devem ao nosso acidentado relevo e herança barroca, somando-se ao ecletismo do conjunto arquitetônico da capital. Concorda? Sente essas “atávicas” influências em suas expressões?

Quando Aleijadinho perdia a carne e os ossos, suas imagens encontravam a saúde, o esqueleto pétreo, a pele de cetim, carmim e ouro.

Empobrecido, roto, malquisto, enriquecia os santos e os altares com mantos tintos de sangue dos rubis, de brilho dos cristais, de amor pela justiça, paz, união entre os homens.

Deixei para o leitor um trecho menos esquecido (memória fraca, A.C.?) de um artigo que escrevi no Suplemento do Minas Gerais, sob o esplendor da amizade entre mim e o poeta Adão Ventura. O termo Barroco vem de Pérola de superfície irregular (esp.) ou é um processo mnemônico? O mineiro de trem vem dos dois.

Ótimo, ótimo… guardaremos mais esse fiapo de linha memorável sobre amizade e literatura. Estabelece limites formais “de caso pensado” no emprego do poema-prosa ou da poesia-prosaica? O que faz você decidir se vai expor o texto em versos fixos, em versos livres ou em prosa?

Pelo estilo inicial desta entrevista, o leitor já entendeu que eu não gosto de escrever com limites, nem com formas estabelecidas. Há um ditado que diz ‘O caminho a gente faz enquanto anda’. Vinicius adorava o soneto, porque os temas sensuais dele ficavam bem, ali dentro. Os parnasianos também (des)gastaram as formas ‘de caso pensado e impensado’.

Tenho me divertido escrevendo sonetos sem espaços: 14 linhas, geralmente brincantes, de baixo para cima. Também parafraseio ou pasticho os românticos, trocando as luas pelo sol, os dias pelas noites, os abraços por discussões e versa-vice. Literatura é liberdade. E eu luto por todo pássaro que possa tirar da gaiola. Mas, se me der na telha nestas 24 horas da noite do dia 02/03/2020, fazer um soneto de amor, eu o faço por seu gosto de doce de batata doce. Livre, morô?

Hai-Kai Balão, ilustração & arte de Maria Viegas

Hahahah….Ao iniciar o texto rola mesmo aquela indecisão como na hora de se arrumar para sair? Digamos, não sabe ao certo o que veste, o que calça, qual o peso da maquiagem tal e tal…diante de tantas opções? Conte-nos um pouco sobre seu processo pessoal de criação.

Levo dois anos para escrever um livro pequeno (30 páginas). Deixo-o na gaveta durante uns três meses para amadurecer. João Cabral: ‘O que hoje parece flor de prosa/poesia, amanhã ou depois parece fezes’.

Eu escrevo um hai-kai: Oh, que lindo! Que profundidade! Eu sou o Bashô que baxô em mim hoje. Sou fera na seara da (h)era.

Aí, deixo-o de molho no shoyu, enfiado num romance sobre suchi e antofagasta. Depois, num feio dia hibernal, encontro-o. Leio o primeiro verso e penso o quÊ? Que eu ou o Bashô endoidô ou era um spritu rúim que desceu fingindo ser ele. Eta, merreca! Fica mais de molho no shoyu.

(Ponho a culpa nos outros). ‘Foi o alquimista Paul Kuêy que me influenciou.’

Poesia dita, declamada, expõe a composição como trama viva. Poderia nos enviar um áudio de poesia falada, na voz da própria autora?

Se der, eu mando. A poesia moderna não nasceu para declamos(?). Por exemplo: Atirei uma pedra n’água/ de pesada foi ao fundo./ Os peixinhos declamaram: /’Ei, dona carmona, vamo pará co essas pedra aí?’

A escritora é bem sociável, aberta aos editores, aos leitores, colegas e familiares. Inclusive testa, de início, algumas de suas produções solicitando dos mais próximos uma primeira leitura e audição para colher opiniões. Até quando essa prática é recomendável a nós, escritores.

Ouvindo opiniões, xingamentos, elogios, a gente vai lá, cara de cachorro na igreja, e melhora, acrescenta, retira do ar o texto. Afinal, se escrever só para mim, será no hospício ou lendo o maravilhoso livro “O Duplo: um estudo Psicanalítico, de Otto Rank.”. Só os leitores nos dizem o que dissemos e deixamos faltoso sobre as coisas. Drummond diz no texto Mundo Grande:

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
 
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.


 

O livro merecidamente premiado “Fantasia” (1992) foi escrito para um público cuja faixa-etária é a mais complexa: a adolescência. Uma fase para qual a seleção de textos é mais difícil, exigindo atenção especial. Seu talento nos permitiu uma obra rica e ao mesmo tempo acessível. Comente um pouco sobre a criação, o prêmio, a publicação e a recepção do “Fantasia”.

Quando escrevi o Fantasia, eu estava lendo tudo sobre Isadora Duncan, a bailarina que dançava descalça enquanto perdia os filhos, o marido, o amante, a própria vida. My Life, seu livro, criou o meu. Era setembro, as cigarras faziam um grande barulho na Universidade. Havia um monte de cascas dessas cantatrizes fabulares pelas árvores, pelo chão. Eu via a dança do vento, as flores, estudava música e ouvia Seu Tãozico, meu pai, com os amigos seu Alencar, na flauta de prata; seu Araripe, no violão (ele enchia os bolsos de bicarbonato por causa da dor de estômago); e Helenice cantando soprano meu pai: Ohhhhh! Romeu. Oh, ciúmes dela. Minha mãe cozinhava e a cigarrita jogava os cachos no violino nosso!

Eu lia tanto sobre balé! Conhecia de cor o nome dos dançarinos russos do Bolshoi. Assistia aos espetáculos em BH. Todos. Clássicos e populares.

Dessa balbúrdia que revira eterna mente o meu viver, surgiu aquela obra.

Pena de jacu sem penas! Reatualizei o livro no ano passado, enviei o novo texto à Editora… que mo devolveu porque… porque…porque…

Mais um pouco sobre o “Fantasia”. É uma história cheia de poesia e notório domínio simbólico. E a meu ver expõe como pano de fundo uma ficção especulativa sobre a condição da mulher nas décadas seguintes. A autora, a narradora e os personagens ainda se conversam?

Depois da sua devolução, talvez porque eu não tenha… não tenha … sei não, abandonei-o às traças. Segundo minha loura Laura, professora atual de Órgão, nós, os caracteres melancólicos, somos assim mesmo. Deixamos de acreditar até na vida depois de uma decepção.

Se me perguntarem quem é Dora, a personagem vencedora do Concurso Nacional de Poesia Infantojuvenil da Fundação Nacional de Cultura e da secretaria de Cultura/1992, (memória fraca, Ana?), digo com Sócrates: Só sei que nada sei. Então, leitor, copiei o endereço na Agenda.

Entretanto, nunca desisto de tentar outras coisas: vou participar de um Concurso de Literatura importante em Portugal neste ano 20, ainda que para dançar um Solo Charleston de melindrosa. Se a gente dança na Arte aqui, aprende outro fado acolá.

Sobre “Canção do Asilo”. É uma obra mais ou menos curta, com bom ritmo e impacto. Foi difícil escrevê-lo?

Havia um Asilo de Velhos perto da E.M. Carlos Lacerda, a primeira em que lecionei, indicada pelo meu mentor/diretor Guilherme Lage. Eu acabara de completar o Curso Normal e passara direto no Vestibular da FALE/UFMG. Meus amores, ele e a esposa, indicaram-me para a Escola, no bairro União, ainda no primeiro ano de faculdade.

Ah, ah! Eu era a menina dos olhos dos idosos, ali, porque levava semanalmente cada uma das turmas para conversar, levar bolos, desenhos, roupas, violão, ao seu pobre lar. Saudade tenho daquela traquinagem apoiada pelos diretores David e Leonardo. Aula de Português, professora? Sim, aula de passear no Asilo com teatro no pátio confecção de murais felizes aniversários de cem anos…

E eu vivenciando aquilo de novo, em 2004, na Clínica onde minha mãe terminava seus dias. Se fôramos oponentes ferrenhas na minha adolescência até nos mínimos detalhes, tornamo-nos, em cerca de dois anos, cúmplices de sonhos, devaneios, memorialismos, pesadelos, unhas pintadas, estórias, remédios alzhêimicos (??). Os doentes pulavam salientes quando eu chegava com doces. ‘Aonde vai, monta um circo’, refletiam seríííssmas  as  eficientes enfermeiras (vizinhas).

Assinamos, mãe e filha, definitivamente, o pacto de paz no Hospital Vila da Serra. Ali, perdi/ganhei mamãe, assistida pelo meu fiim médico, Júnio, e pelas manas Valéria e Regina. Rodrigo, também fiutim, morava na Malásia com a familinda, a serviço da Vale. Aquela Vale dos humanos desastres, maltratada pela Imprensa, pelas gentes, pelos políticos, foi/é/será o encanto de meu viver e dos netinhos. Ainda direi por quê. Agora, falem mal do que afirmei, mas falem bem desse nosso Amor pela Empresa.

Tivemos, nesse ínterim, todos os bichos da terra: o cão Jimi Hendrix, o gato João, as vinte hamsters, a rã Weber (Max e…? Não, mãe, ela coaxa WEBER, WEBER, pra mim.), a cadela Chienne (mamãe e seu Francês…) – que trocou o nome por Suzana, quando a doei, pulguenta, ao pedreiro Malaquias. Peixes? Centenas. Havia aquário de parir, de nascer, de não se suicidar, de brigadores matadores assassinos… todos trazidos pela vovó sempre bem-vinda.

Mamãe se foi em 2016, levando um volume do seu Cancioneiro composto em 2005/6. “Esquecer para lembrar”, sussurrou-me Drummond naquela época. Inventei a asilada Benvinda, e dispus – depondo – aos alunos do Carlos Lacerda, Rodrigo, Jimi, CDA (vários deles), peixes, confusão, todos os elementos passados e assados num redemoinho de ideias literárias.

Na primeira edição da obra, prefaciada pela minha nossa magna Ídala Ilza Matias de Sousa, com orelha de BartoloMEU Queirós, foram vendidos dez mil exemplares para o EJA/Ministério da Cultura pela RHJ/BH. Até baile aconteceu.

Hoje, por onde anda a onda/ A onda do livro aonde anda, Bandeira? Esquecer, Drummond, o esquecido para nem lembrá-lo mais.

Nas circunstâncias em que se encontrava a protagonista, o “ponto de virada” só poderia ser sutil e surpreendente. Como bem sugerem a Ilza Matias de Souza no prefácio e o Bartolomeu de Campos Queirós na 4ª capa, histórias que, partindo de realidade concreta, explora(va)m temas de profundidade: morte, vida, memória, solidão. Canção do Asilo sempre acerta(va) na veia dos leitores de perfis variados. Pelo retorno recebido, quem mais comentou sobre o livro, as crianças, os adolescentes, os adultos ou os da melhor idade?

Recebi muitas cartas pelo livro, cumprimentos, até flores da saudade(vasos de bogaris, violetas, sempre-vivas) durante muito tempo. Viajei, dei cursos, palestras em companhia da colega e amiga Bernadete Patrus Ananias. Os cambau! Recebi homenagens do Asilo existente.

Quem quiser conhecê-lo, a Estante Virtual vende barato. E também a Editora RHJ.

PS: Não sou saudosista. ‘Cê e eu somos musicistas, portanto, melancólicas. Só isso. Miriveja só o Mozart, que melancolia! Os Noturnos de Chopin… As fugas de …” – lacrimeja entre risadas loucas a loura Laura, enquanto me esfola os dedos no Minuet 2, de Bach. Difícil, fessora… Ah, se te pego Johann Sebastian Rios, xará de meu pai!

A prova do vermelho? Leitor adora provas, principalmente Mestres. Então, de raiva, faço respostas para criar perguntas:

R: Acabei de contar um punhado de casos alegres nesta entrevista.

Pergunta do leitor:__________________________________________?

R: Descasei-me, mas juro que casarei um fulano de tal que jura ficar   

sozinho até morrer no mato, antes do final do meu atual romance em Roma com a personagem Mara (digam Mária, segundo Bandeira).

Pergunta do leitor:__________________________________________?

R: Conto piadas calvas e cabeludas que nem o meu amigo (fomos amigos)

Ariano Suaçuna. kkk. (Suaçuna vem do tupi. Dddddeve ser escrito com           Ç.- justificou-se o Aurélio). E ele: …mas vem do bisavô Suassuna, sô!

Pergunta do leitor:__________________________________________?

R: ‘Seu lugar é no picadeiro. Daí o nome Graça’ (vizinha). ‘Saudosista sou eu, dos ex-moradores do 202’.

Pergunta do leitor:__________________________________________?

R: Tenho escrito sobre o futuro num nível de duzentas páginas. Verdade.

Pergunta do leitor:__________________________________________?

PUR HOJE É SÓ Puro gesso.

frame retirado do vídeo “Conhecendo a Biblioteca Comunitária Graça Rios”, disponível no youtube.

Nota: as frases em negrito da entrevistada considerem como na cor vermelha.

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Contra a conspiração da indiferença – epistolografia crítica

Contra a conspiração da indiferença – epistolografia crítica

Para brindar nossa perseverança, partilho com os amigos a carta-resposta do Joaquim Maria ao mestre Alencar, a respeito do seu Castro Alves, quando este último fora recomendado ao primeiro pelo segundo. No próximo 29.02 desse bissexto, nesse século que ainda amanhece, completam-se cento e cinquenta e dois anos do registro que segue. Tão atuais são essas vozes que parecem soprar por cima de nossos ombros.


Era carnaval, também ano bissexto, há 152 anos. Revivamos juntos:

Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1868.

Exmo. Sr. – É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebel-o das mãos de V. Ex., com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz introito na vida litteraria. Abre os olhos em pleno Capitolio. Os seus primeiros cantos obtêm o applauso de um mestre.

Mas se isto me enthusiasma, outra cousa há que me commove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inutil fôra dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Ex. mais do que uma animação generosa.

A tarefa da critica precisa d’estes parabens; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas luctas que impõe, que a palavra eloquente de um chefe é muitas vezes necessaria para reavivar as forças exhaustas e reerguer o animo abatido.

Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de critica, fui movido pela idéa de contribuir com alguma cousa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e effectivamente se perde. Meus limitadissimos esforços não podiam impedir o tremendo desatre. Como impedil-o, se, por influencia irresistivel, o mal vinha de fora, e se impunha ao espirito litterario do paiz, ainda mal formado e quase sem consciencia de si? Era difficil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de litteratura, sem alento nem ideal, falseada e frivola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Ex., sabem exprimir sentimentos e idéas na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam oppôr um dique á torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal.

Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: a este já não era a intelligencia que se expunha, era o caracter. Comprehende V. Ex. que, onde a critica não é instituição formada e assentada, a analyse litteraria tem de luctar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais bellas creanças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se affectos. Desfiguram-se os intentos da critica, attribue-se á inveja o que vem da imparcialidade; chama-se antipathia o que é consciência. Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que elle não pesaria no animo de quem põe acima do interesse pessôal o interesse perpetuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também.

Cançados de ouvir chamar bella á poesia, os novos athenienses resolveram banil-a da republica.

O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veiu sentar-se no santuario e assim generalizou-se uma crise funesta ás lettras. Que enorme Alpheu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias?

Eu bem sei que no Brazil, como fóra d’elle, severos espíritos protestam com o trabalho e a licção contra esse estado de cousas; tal é, porém, a feição geral da situação, ao começar a tarde do seculo. Mas sempre ha de triumphar a vida intelligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel; comtudo, entendia e entendo – adoptando a bella definição do poeta que V.Ex. dá em sua carta – que ha para o cidadão da arte e do bello deveres imprescriptíveis, e que, quando uma tendencia do espirito o impelle para certa ordem de actividade, é sua obrigação prestar esse serviço ás lettras.

Em todo caso não tive imitadores. Tive um antecessor illustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria proseguido no caminho das suas estréas, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as creações que depois nos deu. Será peciso acrescentar que alludo a V. Ex.?

Escolhendo-me para Virgilio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a propria carta de V. Ex. não houvesse aberto ao neophyto as portas da mais vasta publicidade. A analyse póde agora esmerilhar nos escriptos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito.

Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural anciedade que nos produz a noticia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos.

Não tive, como V. Ex., a fortuna de os ouvir deante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes deante de mim: não tinha os pés n’essa formosa Tijuca, que V. Ex. chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara á loucura: estávamos no carnaval.

No meio d’esse tumulto abrimos um Oasis de solidão.

V. Ex. já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou comsigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo publico, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escriptos do poeta.

Não podiam ser melhores as impessões. Achei uma vocação litteraria, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista – no dizer, nas idéas e nas imagens. Copial-as é anullar-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se advinha que a sua escola é a de Victor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irman levou-o a preferir o poeta das Orientaes ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.

Como poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com egual inspiração e methodo idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma fórma esculpida com arte, sentindo-se por baixo d’esses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a fórma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possue; veste as suas idéas com roupas finas e trabalhadas. O receio de cahir em um defeito, não o levará a cahir no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja d’elle. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas bellezas.

O drama esse li-o attentamente; depois de ouvil-o, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada pagina do volume.

O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metaphoras enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sophocles pede as azas a Pindaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o CEO de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.

Esta exhuberancia, que V. Ex. com justa razão attribue á edade, concordo que o poeta ha de reprimil-a com os annos. Então conseguirá separar completamente a língua lyrica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje.

Estreando no theatro com um assumpto histórico, e assumpto de uma revolução infeliz, o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidencia tinham além d’isso a aureola do martyrio. Que melhor assumpto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquella veneração que as raças livres devem aos seus Spartacus. O insucesso fel-os criminosos; a victoria tel-os-hia feito Washingtons. Condemnou-os a justiça legal; rehabilita-os a justiça histórica.

Condensar estas idéas em uma obra dramática, transportar para a scena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objecto do Sr. Castro Alves, e não se póde esquecer que, se o intuito era nobre, o commettimento era grave. O talento do poeta superou a difficuldade; com uma sagacidade, que eu admiro em tão verdes annos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquella o póde accusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Ex., conhecem esta alliança, hão de avaliar esse primeiro mereceimento do drama do Sr. Castro Alves.

A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circumstancia dos seus legendários amores, de que é história aquella famosa Marilia de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circumstancia. Do processo resulta que o cantor de Marilia era tido por chefe da conspiração, em attenção aos seus talentos e lettras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu á conspiração com uma actividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o seu nome ligado ao da tentativa de Minas.

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao theatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em scena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circumstancia foi bem aproveitada pelo auctor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dous sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no teceiro acto, o poeta não hesita em repellir esse recurso, apesar de ser imminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se elle as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a licção do velho Horacio corneiliano; entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.

O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se póde deixar de recorrer á história; supprimir esta condição é expor-se a critica a não entender o poeta.

Que vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquelle conjurador impaciente e activo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e emprehende, que confia mais que todos no successo da causa, e paga emfim as demasias do seu cararcter com a morte na forca e a profanação do cadaver?

E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo alli, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aquelles emigrados do Terror?

Não lhe rola já na cabeça a Idea do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é aquelle o denunciante Silverio, aquelle o Alvarenga, aquelle o padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência litteraria do auctor. A historia nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquella exaggeração artística, necessária ao theatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciaes de uma epocha ou de um acontecimento.

Concordo que a acção parece ás vezes desenvolver-se pelo accidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influencia do principio contrario em toda a peça.

O vigor dos caracteres pedia o vigor da acção; Ella é vigorosa e interessante em todo o livro; pathetica no ultimo acto. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns bellos versos fecham este drama, que póde conter as incertezas de uma talento juvenil, mas que é com certeza uma invejável estréa.

N’esta rápida exposição de minhas impressões, vê V. Ex. que alguma cousa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luiz. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a Idea da abolição. Luiz representa o elemento escravo. Comtudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr n’aquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do escravo pela lucta entre a natureza e o facto social, entre a lei e o coração. Luiz espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha; é a primeira affirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois.

Por isso, quando no terceiro acto Luiz a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluções, o coração chora com elle, e a memória, se a memória póde dominar taes comoções, nos traz aos olhos a bella scena do rei Lear, carregando nos braços Cordelia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem.

Cumpre mencionar outras situações egualmente bellas. Entra n’esse numero a scena da prisão dos conjurados no terceiro acto. As scenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Ex. alludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astucia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnâncias para vencer os obstáculos? Em todo caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.

As scenas amorosas são escriptas com paixão; as palavras sahem naturalmente de uma alma para outra, prorompem de um para outro coração. E que contraste melancholico não é aquelle idyllio ás portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dous amantes!

Dir-se-ha que eu só recommendo bellezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais – duas ou trez imagens que me não parecem felizes; e uma ou outra locução susceptível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da fórma? Que as demasias do estylo, a exhuberancia das metaphoras, o excesso das figuras devem obter a attenção do auctor, é cousa tão segura que eu me limito a mencional-as; mas como não acceitar agradecido esta prodigalidade de hoje, que póde ser a sabia economia de amanhan?

Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só a licção do facto, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessôaes aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caracter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dynastia, apagaram antipathias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.

Taes foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escripto com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do auctor suppre a inexperiência. Estudou e estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a mão na consciencia. Está moço, tem um bello futuro deante de si. Venha desde já alistar-se na fileiras dos que devem trabalhar e restaurar o império das musas.

O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o successo coroará a obra? É um ponto de interrogação que ha de ter surgido no espirito de V. Ex.. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que ha um obstáculo, e V. Ex. o sabe também: é a conspiração da indifferença. – Mas a perseverança não póde vencel-a? Devemos espera que sim.

Quanto a V. Ex., respirando nos degráos da nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vae meditando, sem duvida, em outras obras primas com que nos há de vir surprehender cá em baixo. Deve fazel-o sem temor. Contra a conspiração da indifferença, tem V.Ex. um alliado invencível: é a conspiração da posteridade.


Correio Mercantil, Rio, 1 de março de 1868.

ASSIS. Joaquim Maria de; ALECAR, José de. Correspondências. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W.M. Jackson Inc. Editores, 1947.439p.

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ANO VELHO & ANO NOVO [poema

ANO VELHO & ANO NOVO

Edmo Frossard Paixão

ANO VELHO

Trôpegamente com seu passo brando,

Apoiado ao bordão, pelo caminho

O Ano Velho vai, devagarinho,

Um saco às costas de ilusões levando.

§

Borboleteiam pela mente em bando

Os sonhos do passado; e de mansinho

Dos macilentos olhos do velhinho

Rola uma lágrima de quando em quando.

§

Nascera um dia, fôra môço e agora

Desiludido pela vida chora

Enquanto a sós caminha para o além.

§

Quando vier nos procurar a morte

Teremos do Ano Velho a mesma sorte:

De soluçarmos ao partir também…

(…)

ANO NOVO

Ia saindo o Velho, eis senão quando

A deslizar do tempo sobre a estrada

Uma lambreta chega em disparada

O Ano Nôvo, às pressas, transportando.

§

Blusão vermelho e meias combinando

Vem solfejando em cima da almofada

Do “rock and roll” a música adoidada,

Despreocupado feito um Marlon Brando.

§

Ao divisar o Velho no caminho

Todo alquebrado, o frívolo mocinho

Gritou de longe: Vai, meu velho, em paz!

§

O Ano Velho olhou-o tristemente

Como a prever um trágico acidente

E respondeu-lhe: Sê feliz, rapaz!

Da coleção de poesias “Uma lua no céu”, publicado em 1961.

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Roteiro de Natal [poema]

ROTEIRO DE NATAL

anderson braga horta

Memento: Incenso, Ouro e Mirra

Natal

Exultemos: Meninos. Presentes

Alegria

Natal

Oremos: Ceia. Hinos. Unção

Natal

Removamos: miséria, tristeza

Inventemos:   Paz,  Amor

dez. 18.2019

Nota: memento [Do lat. memento, ‘lembra-te’.]

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VULTO LÍRICO, poeta de primeira grandeza e humildade [ensaio

Vulto Lírico, poeta de primeira grandeza e humildade

imagem: lab61

Elogiado por Antônio Olinto, Henriqueta Lisboa, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros consagrados, o autor por quem nos manifestamos é um vulto do pensamento e de nossa literatura; lido, respeitado, conhecido e admirado nos círculos literários de todo o país. Podemos encontrá-lo facilmente nos mares da rede. Há boa quantidade de tributos, citações, entrevistas, conferências, trabalhos acadêmicos. Escritores das mais díspares vertentes debruçam sobre seus escritos. Euler de França Belém afirma sem tremer: “(…) é uma espécie de Otto Maria Carpeaux que ainda não conquistou o Brasil, e com dois detalhes a mais: é excelente tradutor e poeta(…)”

Experimentemos, de entrada, nossa bebida socializadora, variável em cores, tons e intensidade. Assim somos nós brasileiros e brasileiras. Que sommelier não desejaria no seu material de merchant a voluptuosa degustação?

IMPROVISO ESPIRITUOSO

Loura e leve, sutil e deliciosa,

ao teu contacto a inspiração se apruma.

De te beijar a coma vaporosa,

tenho no lábio um mar de doce escuma.

§

Aspiro-te a fragrância capitosa,

sorvo-te as maravilhas, de uma em uma,

e ao fim me tens, rainha caprichosa,

ajoelhado escravo, a mente em bruma.

§

Teu espírito voa, e o meu, na trama

que voluptuosamente lhe entreteces,

voa também, em um céu, um céu reclama!

§

Mas eis sucumbe em sonolência espessa.

É que, gentil cerveja, se me desces

ao coração, tu sobes-me à cabeça.

Brasília, 25.III.1977

Coloquemos, em brevíssima passagem, a vida poética do homem antes do nome.

Um brasileiro nasce em meados dos anos 1930, em Minas Gerais, filho de pais professores e — vejam só! — poetas. Na infância, aproveitando a oportunidade, torna-se devorador de livros e gibis, não menos atento às improvisadas histórias contadas pela mãe educadora à cabeceira da cama. Esse período nutritivo passa-se em Goiânia. Enquanto cresce peregrina com os pais por várias cidades de Minas. Fixa-se em Leopoldina, cidade vizinha à Cataguases do modernismo mineiro. Sob o canto de Castro Alves, parnasianos e simbolistas, o rapaz é chamado a ser poeta.

CIGARRA

Quando à tarde no céu se escuta a prece

que entoa a Criação da Ave-Maria,

canta a cigarra, canta e se estremece:

núncia da noite sepultando o dia.

§

Pobre cigarra! Canta como em prece,

e ninguém, escutando-a, desconfia

que no canto a alma simples lhe estremece

e é o canto o último raio do seu dia.

§

A tanta gente assim como a cigarra

a dor na pálpebra fechada esbarra,

mas— na suave transfiguração

§

que nos redime desta pobre argila—,

se em lágrimas dos olhos não destila,

vem aos lábios em forma de canção.

Leopoldina, 8.X.1950(…)

Pelo que nos parece, travessuras à parte, foi ótimo filho e excelente aluno. Fez e ainda faz jus à sorte do berço e à chance da vida. Trata-se de mais um de nossos cidadãos exemplares que idealizamos para entre nós, artistas de espírito público.

Chega à juventude e muda-se para o litoral. No Rio de Janeiro estuda, escreve, poetiza, dialoga com seu tempo desafiando as “vanguardas” estabanadas e barulhentas:

AO LARGO, OUSADO!

é mister tudo ousar

quebremos os nossos ídolos

depois colaremos os pedacinhos

os velhos

ídolos

caídos

entrecomidos

pelos séculos

o tempo é um gato que nos espreita

pra que chorar

copiemos a sagacidade dos ratos

olhemos com ternura os nossos ídolos

não é preciso quebrá-los

quebremos antes o encanto

Ao largo, ousado!

copiamos sempre alguma coisa de alguém

somos parentes do macaco

os nossos símbolos são sapatos velhos

mais cômodos porém gastos

Ora (direis) somos poços esgotados

pois eu digo enchamo-los de vento

nada mais moderno      abstrato

                                aéreo

altercam lá fora há muito barulho

enquanto isso a palavra vai roendo a poesia

mas o tempo espreita

Rio de janeiro, 17.XII.1957

Em 1960 finca raízes na sonhada Brasília. Nessa época dão-se os últimos graus da fervura ideológica alimentada em décadas anteriores. Tempo de rupturas, dissidências, divergências, interrupções de diálogos, proselitismos. O autor expressa bem o sofrimento nos ambientes socioculturais. Comoventes composições são desse momento difícil, de quando podemos citar: “Incomunicações”, “Babélica”, “O tempo do homem”, “Torres”, “Antipalavra” e “Antibabel”. Desse período, cantemos baixinho a poesia em seu estado de potência, criatura à espera dos movimentos do criador:

APOESE

Mudas, incriadas,

jazem no possível

todas as palavras.

Nesse limbo inscrevem-se

invisivelmente

todos os poemas

ditos, por dizer,

mais os indizíveis.

Nesse limbo se amam,

bicam-se as palavras,

numa intimidade

por nós mal sonhada.

Relações repousam

insolicitadas,

frases adormecem

de desinvocadas,

e afinal se cruzam,

crispam-se, eriçadas

na ânsia de uma língua

—boca, pena, gesto.

Nesse inesgotável

lago das palavras,

onde tudo encontra

seu signo prateado,

mergulhou o Homem

e pescou sofismas,

teses, xingamentos,

jogos, alguns poemas.

Infinito é o Sonho

que, irrealizado,

dorme em apoese

nesse obscuro lago.

Brasília, 31.III.1963

Cultor da língua e das artes, não se rende aos desintegradores da linguagem. Posta-se consciente em defesa do que compreendemos por TRADITIO, o entendimento e a prática de receber, cuidar, trazer e entregar: eis a origem e o sentido amplo da palavra tradição. Nosso artista aperfeiçoa e tradiciona bem. Vejamos o poema abaixo em que o mineiro-candango se autodescreve com base no seu signo do zodíaco. Uma espécie de autorretrato temperamental. São, curiosamente, onze quadras de versos brancos e potentes, em consonância numérica com o mês de novembro do calendário gregoriano. Sem esmorecer o homem-poeta reluta e sonha alto com os pés no chão.

ESCORPIÃO

Metálico, magnético, mirífico,

concreção do mistério em geometrias:

escorpião. Equilíbrio e desengonço.

Tão telúrico bicho e tão dos astros frios.

§

Cauteloso, talvez triste, avança, lança em riste.

Que faz no escuro, no úmido e no mofo

que contradiz o seu perfil mecânico?

Pólo e deserto funde, gelo e cálculo.

§

O escorpião tem reservas de malícia

ocultas sob camadas de silêncio.

Mesmo em repouso, agudo: espinho a proteger-se

Invisível flor de inviso perigo.

§

Por isto o escorpião está sempre em guarda,

dormindo com dois dedos no gatilho.

E de repente, sem nenhuma ofensa aparente,

exorbita-se em fúria vingativa.

§

Uma inveja lhe dói: não se centauro,

não se anfíbio, o peixe-pássaro, ele

que atira os olhos no alto e, em vez de duas asas,

tem oito patas a prendê-lo à terra.

§

Por isto é tão concentrado o seu ódio

e lhe estorva ainda os passos mais serenos.

E para não poluir o sonho de tanto ódio

descarrega em si mesmo o seu veneno.

§

Ridículo animálculo romântico

e parnasiano, síntese grotesca:

sólida, fria construção de engates rígidos

e formas libertando-se dinâmicas;

§

maligno duende, anjo desamparado

das potências na solitária luta,

ferras à terra, em guerra, as possessivas garras

e acima, acima, a chispa metalúrgica!

§

Torturado escorpião, que os astros sondas

e em anfractos arrastas-te, maléfico,

ínfimo na íngreme escarpa evolutiva

marchas— mas que apoplético e perplexo!

§

Bicho da terra, animal metafísico,

os pés na pré-história e um olho no futuro,

passeando o apêndice interrogativo

no círculo de luzes do zodíaco,

§

animal sem presente, entre duas eternidades

sufocando oscilante, entanto lúcido,

oh! Ama este aracnídeo, ávido amante,

que não é Carne ainda e sonha-se Anjo.

Brasília, 24.X.1971

Não sejamos orgulhosos. Não tenhamos receio de afirmar: é vulto! Exerceu jornalismo, magistério e tradução. Fez e continua por fazer incontáveis amizades. Ensina com amor, é generoso com principiantes. Reconhece os talentos dos companheiros de ofício. Sensível, erudito, humilde, solidário. Ama os idiomas e as nações. Entrega-nos bastante de sua experiência humana. Participou e testemunhou boa parte do século XX e praticamente todo esse início de século em matéria de literatura brasileira e um pouco da latina. Entendido de Castro Alves, Bilac, Bandeira, Cruz e Sousa e tantos outros. Em seguida dois ensinamentos a nós aspirantes: a) entrevista concedida a Nelson Hoffmann pelo periódico O Nheçuano e b) poema que segue:

RECEITA

Essencial é não dizer nada,

mas não-o-dizer com toda a classe:

como quem veste a ausência da alma

pondo véus diáfanos na face.

§

Escolha, pois, bem as palavras,

preferindo as simples às raras:

porque, se acintoso o disfarce,

avulta, por contraste, a cara.

§

Combine-as com a harmonia maga

de bem temperada sintaxe:

nem tanto ao mar, nem tanto à praia,

discreto o barco se destaque.

§

E seja o efeito esta onda— vaga,

onde a razão do poema—nada.

Brasília, 25.II.1974

O homem é paciente e operoso, diz acertadamente o seu amigo José Jeronymo Rivera. Faz-se crítico e ensaísta com prosa estilística luminosa, capaz de nos revigorar o esforço pela beleza. E sua poesia ergue-se como um edifício firme, fácil de se captar e reter, justamente pelo equilíbrio entre sentimento, imaginação, técnica e sabedoria. Desfrutemos de mais esse soneto, da coleção dos “visionários”:

PÂNTANOS

Caía o luar nos pântanos tranqüilos.

Um sapo-boi coaxava tristemente.

A sinfonia sem calor dos grilos

enchia o quarto e entrava-me na mente.

§

Pus-me a escutá-los, momentaneamente:

cantavam mal…E eu me cansei de ouvi-los,

metendo o olhar, indagadoramente,

dentro da noite plena de sigilos.

§

Loucas perguntas, que ninguém responde,

em mim ecoavam, como numa furna.

E ébrio de sono e angústia, de repente,

§

julguei que os homens fossem brejos, onde,

regendo a triste orquestração noturna,

um sapo-boi coaxasse gravemente…

Soneto Antigo, p.95

Para revitalização da poesia brasileira faz-se necessário antes divulgarmos o peso dos que não puderam vir à baila numa intensidade compatível com sua grandeza. Precisamos reverberar com prazer máximo os autores que foram astuciosamente postos à margem por certos “movimentos editoriais” e “pactos de leitura”. Nós apreciadores de boa arte, crentes e enfezados na ideia certa de que obras excelentes contribuem para elevação da alma humana, sonhamos com eminente poesia em forte circulação.

A literatura desse vulto – poemas, ensaios, contos, entrevistas, aulas, palestras, traduções – pede por ser lida e ouvida por mais pessoas, mais comentada por nossos críticos e jornalistas culturais. Insistimos não tanto pelo autor, homem moderado e consciente de já ter feito muito da sua parte, mas por solidariedade a nós mesmos, compatriotas e falantes da língua. Que sejam incluídas suas obras nos exames de vestibulares! Dos seus ensaios temos à mão “Testemunho & Participação” e “Do que é feito o poeta”. Há também o “Proclamações” a ser explorado. A respeito do primeiro alguém exclamou: “Como é que obra dessa fica fora de circulação comercial?! Só de dar com os olhos na mina já se encontra inúmeras pepitas…além de agradável leitura, trata-se duma compilação valiosa para estudo e pesquisa em história literária.”

Conselhos editoriais, comissões de vestibulares, institutos, enfim, o mercado de bens simbólicos adiando ou atendendo logo nossa solicitação, uma coisa é certa: Anderson Braga Horta já influencia leitores, escritores e poetas de hoje, bem como influenciará outros muitos de amanhã. Ao lermos seus fragmentos críticos, onde se registra cristalinas reflexões, concluímos definitivamente que o autor está dentre os mais bem estruturados ombros da poesia contemporânea, da língua portuguesa, do florão da América e de todo o continente.

É hora de irmos além da respeitabilidade, do reconhecimento, dos elogios e dos prêmios. É hora de pormos os frutos do lavrador à mesa dos famintos!

Encerramos com…

SONETO DE AMOR ANTIGO

Antes de tu nasceres, eu te amava:

de um amor sem objeto,

de um puro amor à espera:

querendo-amar, nos limbos do intocado.

§

E inda antes de eu nascido, já te amava:

no antegosto secreto

da vida em outra esfera,

na alma anterior ao corpo entressonhado.

§

Eu sempre soube o teu olhar profundo,

antes mesmo dos olhos, num passado

quando eras pura essência, além do mundo.

§

Cerra o tempo as cortinas e as descerra,

e eis-me sempre a teus pés ajoelhado.

Meu amor é antigo como a Terra.

REFERÊNCIAS:

ANE. Associação Nacional de Escritores. Membros. Brasília, 1963. Disponível em:< https://anenet.com.br/> Acesso em 17 novembro de 2019.

ALMEIDA, Pinto J.R. de. Poesia de Brasília: duas tendências. Brasília: Thesaurus, 2002. 136 p.

HORTA, Anderson Braga. Soneto Antigo. Brasília: Thesaurus, 2009. 213 p.

_______. Do que é feito o poeta. Brasília: Thesaurus, 2016. 412 p.

_______. Signo: antologia metapoética. Brasília: Thesaurus,2016. 412 p.

_______. Testemunho & Participação: ensaio e crítica literária. Brasília: Thesaurus, 2005. 375p.

_______. Poeta de primeira grandeza. O Nheçuano, Roque Gonzales – RS- Nº 42, p. 6-8, agosto/setembro. 2019. Entrevista concedida a Nelson Hoffmann.

_______. Encontro de cinco poetas numa não esquina de Brasília. Lab61(uma homenagem ao Brasil) Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=J5Yi7FPiY_Y >. Acesso em 15 julho 2019.

_______. Recebe Condecoração Oficial da Casa del Poeta Peruano. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=gOLBNb8jxMM >. Acesso em 17 setembro 2019.

_______. Lança Livros de Ensaios. Disponível em: <https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/anderson-braga-horta-lanca-livro-de-ensaios-79915/>. Acesso em 17 setembro 2019.

_______. Poeta. Wikipédia, a enciclopédia livre ( Creative Commons – sujeito a condições adicionais). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anderson_Braga_Horta. Acesso em 15 julho 2019.

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O falso seguidor [poema

O falso seguidor

Da pregação nenhum dom tu tens.

Pensas em ao menos o dom de ouvir.

Crês não ser tu quem isso aqui escreve.

Será a Inspiração que se inscreve em ti?!

O verdadeiro Cristo tu imitas mal

e nunca jamais conseguirias Sê-lo.

—É mais um falso! Um falso a mais!

Olhares gritam-te em segredo:

—É mais um louco! Louco, só isso.

Não percam tempo, tempo é dinheiro.

Incompreendido, tu confessas:

—Sou mesmo um dos falsários,

Por nosso Deus, não me sigam!

Encontrem logo o verdadeiro.

Vieste para fazer ferver o frio

coração das pessoas em pedra.

Arrancar das estátuas clamores

entranhados em ocas cabeças de ferro.

É tudo que persegues sem ânsia,

e o muito que queres sem pressa.

Eis o mistério, invisível chave

de quem sonha sempre-quase em silêncio.

Imperceptível algum ouvido alcanças

sem nenhum estrondo nem festa.

L.al'C.R. o Cristiano
contato: lopeslarocha@gmail.com

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Autorretrato [poema]

Autorretrato

Vim à luz em Bhz, foi lá que’u me rebentei

Em julho, setenta e sete, foi bem naquele ano

No Santa Efigência, maternidade d’Otaviano

Vim berrando, preocupando e assim cheguei.

Pequeno, franzino, de coraçãozinho imperfeito

Talvez por não ser menina mi’a mãe ter ganho

Por não atender já na chegada o sonho d’alguém

Mas o estouro vívido firmou: Deus já tinha feito.

Depois de aceito com amor, em Luzia eu cresci

Quando menino, quando jovem aqui me iluminei

Busquei rumos, horizontes e hoje estou aqui.

Muito na humanidade, canceriano é u’a chatice:

Às vezes fere a amizade querendo fazer o bem

Envelhece na infância e menina-se na velhice.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

Nota: Nasci no inusitado dia 07/07/77, com sôpro inocente no coração, no bairro de Santa Efigênia , em Belo Horizonte. Minha mãe, que na época não acessou ultrassonografia, torcia por menina. Cresci no Conjunto Habitacional Cristina “C”, na parte baixa da cidade histórica de Santa Luzia/MG.

contato: lopeslarocha@gmail.com

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Ama, para que, assim, sejas amado…

José Martins Fontes

Ama, para que, assim, sejas amado…

Se queres ser amado, ama primeiro,

Faze-te amar, amando com ternura,

Pois só merece a graça da ventura

Quem for capaz de um culto verdadeiro.

Sem raízes profundas no canteiro,

Em teu jardim nenhuma flor perdura.

É preciso que a terra seja pura,

Para viçar, florindo, o jasmineiro.

Sob a sideração do amor fulmíneo,

Pode estar crente todo enamorado,

Que há de se realizar seu vaticínio.

Quem for constante, sendo delicado,

Pelo espírito alcança o predomínio,

Sabendo amar, para que seja amado.

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Veterano de Guerra – Poema

Veterano de Guerra

Viajando pela avenida do meu bairro

pombos e pardais d’estalo me reconhecem,

aceno aos amigos qu’inda não se mudaram:

vizinhos de memória que jamais me esquecem.

Um pai de geração: veterano de guerra

à mão e ao colo com dois de seus netos

filhos dos filhos que ainda não se mudaram

ou que se mudaram para ali mais por perto.

Do grande e abençoado céu: lençol azul

sob esse sol que nasce novo ao leste-sul

entrelaçam-se os dons de gerações embaixo

de sol qu’inda se põe velho ao norte-oeste

amam-se, ajudam-se como ensina o Mestre

vidas em família preservando esses laços.

L.al’.R, o Cristiano.

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Mudas de bananeira – Conto

Mudas de bananeira | Conto

Em cidades do centro-oeste mineiro conta-se uma história com as mais variadas modificações. Sempre lembrada na quaresma. Já é estória conhecida e, quando alguém arrisca contá-la de qualquer jeito, para não perder o costume, algum ouvinte ativo ri e diz: “aí vem o outro e mata o defunto…”. Quer dizer:  lá vem alguém contar história já sabida sem nenhuma novidade antiga.

Nessa última quarta-feira de cinzas do ano de dois mil e dezenove, quem nos alembrou bem dessa estória, na roda de cozinha, foi a Sra. matriarca D. Lúcia:

“…dizem ter acontecido na Leandro Ferreira do Padre Libério. Mas o Sr. Irineu contava que se passou algo parecido também em Martinho Campos, antiga terra dos Kaxixós.

Vinham quatro companheiros carregando o defunto de uma mulher surda-muda, debaixo de chuva, quando um deles disse:

__  Num tempo bão desse, plantando essa muda na terra, ela vai pegar bem pra danar…

Dos outros dois companheiros, um aconselhou em defesa da falecida:

__  Arrepende, moço, da besteira que ocê falou, retira essa palavra; do contrário com pouco vem o seu castigo. Não faz bem ficar zombando da morte dum semelhante.

O moço soltou um ai,ai,ai, ignorando a advertência:

__ Não vejo a hora de beber o defunto lá na venda do Tião. Para aliviar o peso só mesmo u’as pinga da boa!

Passados uns tempos, nenhum castigo veio.

Era um trigueiro cheio de malícia, desafiador. Para ele, juramento, castigo, praga, tudo isso eram besteiras que só servem para pôr medo em criança.

__ Pagar língua!? – ele dizia por lá – isso é trem de besta, sô!..

Então, foi de outra vez que vinham pela estrada uma mulher branca, com duas crianças pequenas, todas três magricelas, anêmicas e sofridas. A criança mais nova vinha no colo, carregada com dificuldades pela fraqueza da mãe; a menina maiorzinha, puxada por outro braço, cambaleava com as perninhas finas e ressecadas.

E outra vez, impiedoso, o moço:

__ Olha só, lá vem um cacho de bananas: amarelas e penduradas…

— Ô sô, pelo leite que ocê bebeu da sua mãe, não brinca com o sofrer dos outros não! …

Veio-lhe mais esse bom conselho aos ouvidos. Entrando num e saindo por outro, não teve nem tempo de parar na consciência do rapaz.

Outros tempos se passaram. O moço perdeu a mocidade, virou homem, arrumou casamento. Tirou a mão de uma mulher muito simples, magra e sem cor. Uma união modesta, sem festa nem lua de mel. Apenas a cerimônia, as alianças e um almoço simplório. Das duas vezes que a mulher engravidou, da primeira o rebento se perdeu. Na segunda vez, a criança nasceu, mas não vingou. Era menino.

O homem foi dali para frente desanimando, entrando na velhice sem muito vigor.

— Não quero saber mais de filho. Se não deu certo até agora é por conta da sorte do destino.

Foram-se os anos, o homem cansado e sem muita força para trabalhar, a mulher embucha e traz à luz u’a menininha. Outra veio logo em seguida. E com a mesma deficiência da irmã, só que com alergia ao leite de vaca. Essa desnutriu-se. Não se soube se foi de nascença, mas enquanto cresciam perceberam que as mocinhas não escutavam bem e menos ainda conseguiam falar direito.

Aqueles tempos foram de muita falta.

__ É só um azar das temporada. Essas precisões vão passar… o homem acalmava a família, acreditando sabe se lá em quê.

A mulher também não acreditava muito no castigo de Deus, mas, ao contrário do homem, era humilde e nunca teve vergonha de pedir ajuda. Até inventou uma toada para ir cantando pelo caminho, puxando as duas crias… uma cantiga de esmola concorrendo com os cantos de venda do padeiro e do leiteiro…

Quem me dera s’eu tivesse

a grande sorte de ganhá

u’a penquinha de banana

e u’a tijela de fubá.

— Lá vem aquela branquela azeda pidona, muitos discriminavam. ”

Ao término da história, D. Lúcia riu um riso sem sal, fechou a cara e olhou para o nada. Nesses tempos de miséria, com gente até cozinhando com água de esgoto lá longe na Venezuela, por exemplo, quase ninguém gosta de ouvir esses casos.

Conseguimos essa versão completa porque insistimos bastante com a Sra. matriarca D. Lúcia. Como ela mesma disse: “…estragamos, por um bom pedaço de hora, a tradicional reunião de cozinha”. Éramos seis? Não. Por volta duns nove rodeando aquela mulher parruda, de conversa vagarosa e firme. Nossa mesa estava farta. E gozávamos perfeitamente de todos os nossos sentidos.

Lopes al’cançado rocha, o Cristiano.

lopeslarocha@gmail.com

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Um caso de três tragédias | Conto

Um Caso de três tragédias | Conto

Era início de dezembro do ano de 2018, depois de forte chuva, transbordamento do Onça e do Arrudas, quedas de árvores e de energia…ah bom, a falta de eletricidade obrigou o Sr. Helvécio a pegar o rádio movido à pilha. Lenoxx Sound Rp 60, tablete cinza de alça preta e antena expressiva, elegante no design. E o Sr. Helvécio não perde a oportunidade de sair pelas ruas com o seu Lenoxx, na altivez dum pastor sucedido carregando sua bíblia.

São os homens sociáveis exibindo suas armas de comunicação, ferramentas que alimentam as cabeças; esquentam as conversas e as discussões; apimentam a curiosidade pelas empresas do futebol, fortalecem as opiniões políticas e nutrem as grandes questões morais da sociedade.

– O Du disse que vão vender o goleiro do Atlético para um clube da Arábia. Mas pelo jeito é mentira. Não deu nada disso na Itatiaia.

No começo era só o livro, depois vieram o teatro, o folhetim, os panfletos e cartazes, o rádio, o cinema, as revistas. Por fim a televisão e o computador pessoal. Não cheguemos até os dias de hoje, nos aparelhos de telefones móveis, com tudo aquilo, somando-se aos acessórios e aos vídeos-jogos: essa avalanche perturbadora de informações maçantes, em cadeia e distribuídas em rede.

Já por volta das vinte e duas horas, a lua se expunha no seu quarto crescente, numa noite após à primeira tempestade do mês. Era frio e era calor, a depender da esquina que se curvasse naquele bairro de Stª Efigênia dos Negros e dos Militares.

O Sr. Tarcísio anunciava o fechar das portas, quando olhou para o céu à procura de sinal do tempo, abriu a boca como um animal regido, largou as cadeiras que recolhia – havia sido tomado por alguma lembrança marcante –, e passando para dentro do balcão, começou:

– Rádio é bom que a gente não precisa abrir os olhos. Pode deitar, descansar as vistas e só escutando fica sabendo de tudo. Vai misturando as notícias e as músicas com cochilo – disse isso olhando para o aparelho Lenoxx.

– A gente descansa as vistas das imagens, é isso aí Sr. Tarciso… apoiou um frequentador menos velho, estilo heavy metal.

Respeitemos a preferência do Sr. Helvécio:

– Esses rádios de celular não prestam porque só funcionam com fio de ouvido. O bom mesmo é ouvir as coisas com o rádio solto, de alto-falante livre.

E dito os pitacos dum outro botequeiro qualquer, tratando a todos sempre como “meu amigo”:

– Meu amigo, rádio ainda é bem melhor que aquela bagunça da internet. No rádio é tudo dentro dos horários, não precisa de ficar procurando as coisas; tem lá os programas de piada, o aviso de tempo e do trânsito, os comentários dos jogos, o resultado da loteria e do bicho, as notícias, as horas certas, as músicas…é só ligar nos momentos certos.

– As músicas eu escuto, mas logo fico enjoado da repetição delas – reforçou o Sr. Helvécio.

– É… rapaz – confirmou o Sr. Tarcísio, tomando de volta a vez da fala e emendando mais um de seus casos. Como de sua mania, iniciava a contação já no meio da história – … chamava-se Jocélio, mas o apelido era Churrasco: “ô Churrasco, vem cá!” Ele tinha um violão velho, ficava na cama de colchão de palha, deitado como se fosse sua mulher. “Tenho um ciúme danado dessa bicha”, o Jocélio falava. Ele tinha o violão como viola, sabe? Mas só depois da desgraça toda é que fui saber que’ra violão. Não conhecia essas coisas. Não sabia o que era um ou outra. Tanto violão como viola, para mim, eram uma coisa só.

O Antônio já freava os goles para segurar a dose, saborear o momento trágico e final na última talagada da cachaça.

–  Mas esse tal Churrasco era o que seu? – perguntou o Luizinho.

– Trabalhava para o papai nos roçados. Mas isso não importa. E papai sempre nos ensinava: “só ponha a mão no que é seu, só pega no que é dos outros em último caso, e mesmo assim se for a pedido do próprio dono da coisa, porque se…rã…”

– E o homem era bom na enxada e na viola? Pergunto do Churrasco – insistia o Luizinho.

– Nãnão…ninguém lá tinha mais força no braço pra capina igual eu não, sô…eu via aquela viola e sentia uma vontade de pegar nela. Ver se eu sabia tocar na bicha, sabe? Quer dizer, eu pensava que era viola também, porque o Churrasco tratava como viola. “Essa bicha é como se fosse a mulher do Churrasco”, o povo brincava. Mas era um violão.

(…)

– “Arrebentou duas cordilha da bicha. Fica essa falha feia no braço e no buraco”. “Pior é as músicas que saem tudo afrouxadas. Foi o Tacinho, esse cabeçudo que mete o dedo onde não deve.” Falavam assim comigo. Foi muito tempo ouvindo essas lamúrias. Era difícil achar alguém para trazer uma corda da cidade. E também era complicado porque cada corda tem uma finura, e nas muitas lojas só vendia o jogo completo das cordas.

– E seu pai?

– Me castigou com uma semana de capina sem ganho.

Depois foi o caso de um relógio – continuava o Sr. Tarcísio- que escorregou da minha mão como peixe e estourou no chão feito goiaba madura. Era do meu primo, mas disso papai nunca ficou sabendo.

Olhando esse radinho do Sr. Helvécio, pior de todos foi o rádio de minha madrinha. Fui na besteira de mexer na coisa e… “A rádia não manda mais notícia porque o Tacinho arrebentou o botão do aparelho”; “Ô meu Deus! Já era de se esperar…” mais essa chuva de lamúrias eu num ía aguentar…

– Já vi muito caso de gente mão-mole, mas no caso do senhor é o contrário.

Risos entre tragadas de cigarros. Ninguém interrompeu, esperando continuidade. E o contador continua:

– Vai escutando: fiquei muito chateado, triste… sabe? Nos dias que não deixei de dormir também almocei mal e nem jantei. De preocupação, de arrependimento. Pêso na consciência. Era mais u’a outra grande tragédia. O conselho do meu pai tintilava na minha idéia como o sino da igreja: “não põe a mão em coisa que não é sua…” Pensei até em pegar o facão…

– Cê num pensou em fazer u’a besteira dessa não, sô!?

– Pensei…ô?? Não só pensei como falei em cortar a mão, mas…

– Mas e aí?

– Mas minha irmã me deu o conselho, lembrando que ia dar mais trabalho ainda para os outros: lambrecar a camionete de sangue. E ainda mais com o pronto socorro naquela distância.

Então…hoje só ponho a mão no dinheiro que vem para ser meu e na mercadoria que vai para ser sua. Só pego na caneta para riscar o pagado e marcar o fiado devido. Faço o cálculo no papel que é meu, para não dar problema.

Quiseram me treinar para calcular em máquina. Falei: “nesse tipo de coisa dos outros eu não ponho a mão; só se um dia eu comprar ou ganhar u’a máquina dessas para mim.”

Das poucas vezes que peguei em aparelho dos outros deu em desgraça feia.

Não tomo nada emprestado. Não pego em nada dos outros para ver como funciona. Nas lojas, escolho a mercadoria sem pegar, olhando tudo no manuseio do vendedor. Depois que’u passo no caixa, aí a coisa já é minha. Se der qualquer quebrado, já paguei e o negócio sendo da minha posse, o prejuízo é meu. Ninguém pode mais falar nas minhas orelhas.

Daí o Sr. Tarcísio tornou a recolher as cadeiras e mesas dobráveis, de ferro, batendo-as com força, decidido, descarregando a raiva contida.

No balcão, o Sr. Helvécio havia desligado o rádio para não atrapalhar a conversa. Acertou a pinga e foi-se despedindo. Ao religar o aparelho – era chegada a hora do programa de piadas- o Lenoxx Sound Rp 60 não funcionou. Então disse baixinho consigo mesmo, conformado, o Sr. Helvécio:

– Acabou a pilha.

E como trovoada, o baixar das portas de aço do bar mercearia cortou o silêncio noturno do quarteirão.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano 181231.

lopeslarocha@gmail.com

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Eram muitas vezes | Conto de natal

Eram muitas vezes | Conto de natal

Numa dessas grandes casas, num edifício multifamiliar. Abrigava cerca de meia centena de pessoas. Pouquíssimos idosos. Cada unidade de apartamento com seus sete cômodos, esses ligados por um estreito corredor.

Viviam no prédio por volta de vinte e cinco jesuzinhos, a maioria tendo nascida durante a détente da Guerra Fria. E eis que seus pais, roceiros candidatos a operários e mestres, vinham daquela próxima Belo Horizonte, guiados pela estrela da esperança, da prosperidade e do sonho da casa própria.

Casinhas simples e predinhos idênticos em forma de “H”, variando apenas nas cores dos detalhes e saliências das fachadas, bem modestos e humildes, de chapisco e cacos de tijolos cerâmicos. Falamos desses conjuntinhos habitacionais de baixa renda, a que muitos apelidavam pejorativamente de pombais.

— Qual é mesmo o nome do seu pai? Pensei que era Baltazar. Ele tem cara de Baltazar.

— Que Baltazar, ou? Tá doido?

— Um que eu vi na televisão. Parece com seu pai.

(…)

— Te apresento meu amigo.

— Dá onde que ele veio?

— Da terra do além.

— O quê que ele merece?

— Viver sozinho sem ninguém…

— Credo, essa não teve graça, é paia demais.

— O Silvano inventa umas estranhas e sem graça… quem ia ficar vivendo sozinho sem ninguém no mundo? Só se for o próprio ninguém.

— É… é mesmo.

— Quê que ocê vai ganhar de Natal?

— Pedi uma calça jeans manchada e um Redley, pode ser imitação.

Nenhum dos imperadores – Ronaldo ou Constantino – se importaria com esses jesuizinhos tão comuns, diversos, semelhantes, desiguais e alegrados tão-somente pela esperança de crescer.

Aniversariantes esperando seus presentes com expectativas das mais variadas. Aquelas carinhas sorridentes, sapecas e cheias de espertezas inocentes:

— O Alê vai ganhar uma freestyle

— Aquelas de roda estrelada?

— É, toda freestyle tem roda estrelada…

— Não, nem toda…umas são com roda de raios…

— Pois então, o sol tem raios e é chamado de estrela. Toma distraído!!!

No pátio lateral a conversa, sugerida pelo esquentar dos fornos, era mais saborosa ou não era?

— Minha mãe vai assar dois frangos e comprou quatro garrafas de Del Rey.

— Lá em casa vai ter é chester

— Que isso?

— Quase a mesma coisa que peru.

— Não, meu irmão falou que é um frango mais grandão…

E não poderia faltar alguma rebeldia entre os que adolescem sabiamente:

— Onde o senhorzinho estava, hein Tuca? Tá se achando muito com essa idade tão pouca…

— Num esquenta não, mãe, tava ali na rua de trás conversando com meus novos colegas. “Tudo pela orde”, os cara tem “a moral”, eles são “da lei” …

— Gíria cê aprende rapidinho, né?

— Ah mãe, tava dando neles u’as boa ideia. Os caras tão meio que viajando demais na maionese.

Voltemos ao grupinho que, deixando o pátio lateral, caminha para a frente da grande casa de doze famílias:

— Nhuuuu! O céu parece que vai abrir, as nuvens andando com o vento, tipo tapete voador.

— Não vai chover hoje mais não.

— Meu pai vai assar uma leitoa.

— Humm, que delícia. Vou passar na sua casa primeiro quando der a meia-noite e todo mundo começar a dar o Feliz Natal!

— Deixa de ser gulosa, Laíde!

— Que ó!? Só como pra caramba no Natal e no Ano Novo. Tiro a barriga da miséria.

— Enquanto meu pai vai preparando a ceia, minha mãe vai na Missa do Galo com a dona Maria José e elas rezam para nós…

— Seu pai não vai junto com sua mãe não, eu hein!?

— Sua mãe reza para todo mundo mesmo?

— Hanrrã, ela não esquece de ninguém… nem da nossa família nem do pessoal daqui do prédio. Reza até pra algum vizinho que brigou com ela. Porque hoje é Natal. E Jesus não gosta que a gente guarda raiva de ninguém.

— É… meu avô fala que vizinho é o nosso parente mais próximo.

— Ainda bem que sua mãe reza pra mim então. Porque eu não gosto de ir na igreja…e esqueço de rezar quase toda noite.

— Minha mãe vai pedir a Jesus e a Deus que no ano que vem nenhum vizinho brigue por causa de barulho ou por causa de espaço no varal para suspender roupas.

Horas se passavam. Portas se abriam. Músicas invadindo as áreas comuns. Um festival sonoro de gostos variados. Eram sinceros os convites, os aromas se espalhavam pelo ar quente e chuvoso.

E vinham chegando parentes de vários bairros da capital, do São Geraldo, da Floresta, do Saudade, do São João Batista, do Céu Azul. Enchiam mais ainda a grande casa.

— Ano que vem a gente podia fazer um amigo oculto…que tal?

O ano vinha, o próximo Natal chegava. Todo mundo se esquecia da sugestão. Nenhuma brincadeira de troca de presentes era oficializada. 

(…)

Os jesuizinhos trocando chocolates e frutas. E os mais crescidos bicando, às escondidas, cada qual seu copo de vinho. Algum deles brinca mais pesadamente:

— O Papai Noel tem que passar o saco lá na sua casa, véio…já pôs a meia na janela?

— Pára com essas zoeiras, Zé. Opa! Lá vem mamãe e papai…falou, tchau!  Vou vazar. Chegou a hora de ir para o Culto de Natal.

— Ora pra nóis também, hein!?

— Vou orar para você deixar de ser trouxa e respeitar de verdade Jesus e o Natal!

— Ihhh… Zé, num endoida não, é só brincadeira. Deixa de ser prego! Apelou? Perdeu.

Meia noite em ponto. Estouravam-se os fogos e o céu tremia. Quem não havia ido às igrejas, saía passando pelas portas abertas, distribuindo abraços e saudações: “Feliz Natal!” “Feliz Natal, muita paz e serenidade! ”, desejando paz, perdão, reconciliação. Uns distribuindo cartões; outros petiscando azeitonas, comendo carnes, frutas, bebericando vinhos, champanhes e cervejas.

Na avenida principal os carros passam buzinando. Amigos de outras bandas nos cumprimentam; uns até bicam em nossos copos. Abraços. E seguem se espalhando as saudações natalinas. O mais desejado é saúde para toda família. Sa-ú-de, esse bem valioso, alicerce de todos os outros bens.

No andar do meio, o pastor Alair evangelizando:

— Devemos já estar decididos a respeito do presente que cada um de nós dará ao nosso Salvador Jesus Cristo…

— Dê algum presente para mim, que estarão dando a Jesus. Foi assim mesmo que Ele ensinou: “faça aos pequenos que estarão fazendo a Mim”. Sou uma pequena criança de nove anos. Podem me presentear à vontade – disse o brincalhão do Tuca.

No quintal, cada jesuizinho ia mostrando seus presentes: homenzinhos de guerra, helicópteros, banco imobiliário, bicicletas, aquaplays, bambolês.

Para os adolescentes o pior castigo era passar o Natal vestido de roupas velhas.

As meninas aprincesadas com suas sandálias Melissa, camisas de cores fortes e grandes botões.

— Ó a Janaína, gente!… mostrando relógio novo com pose de mãos na cintura…

Ela mesma, a Janaína – desviando-se do comentário – tapa com as mãos a luz do poste e solicita aos pequeninos:

— Quem aí pode me mostrar onde estão as Três Marias? E o Cruzeiro do Sul?

As nuvens iam-se rasgando e o Céu sorria-se por completo.

— Quê que você ganhou, Zequinha?

— Esse burrinho que carrega troços. Aperta o botão aqui e ó…

 E o burrico dava um pinote, jogando tudo para cima…era o “burrinho de quinquilharias”.

— Ganhei também um kichute.

Kichute é bom para andar no mato, pra quando a gente for pegar goiaba na mata do Picão.

— Credo…essas coisas é presente de menino da roça.

— Vejam só que o burrinho tem u’a cara de aborrecido igual ao Zequinha mesmo…

Os risos já começavam a escapar, ainda sem ritmo.

— Burrinho aborrecido? Hahahahaha

— Burro emburrado aborrecido e feio…

Ninguém mais segurou a explosão. Todo mundo rindo de segurar a barriga. Riam mais da cara do Zequinha do que da gozação mesmo. Gargalhadas altas foram se desafinando em risos, risadinhas, até se amenizarem nos gemidos, nos suspiros de quem não aguenta mais rir…

O Zequinha juntou seu burrinho com as quinquilharias e disparou do pátio para dentro. Entrou correndo, surdo, quase derrubou as bolinhas da árvore natalina. Foi direto para o quarto e bateu a porta. Enterrou o rosto na cama, cobriu a cabeça com travesseiro. Foi soltando de vagar um chôro abafado. Por alguns minutos já estava sendo tomado por um silêncio íntimo. Mas pelo basculante da janela entravam gritos de euforia aos passos de breakdance, vindos de longe. Na sala de estar daquele lar apertado, pela agulha de um Gradiente, tocava Nelson Rufino e Zé Luiz na elegante voz de Roberto Ribeiro, gravada em 1978: “Todo menino é um rei/ eu também já fui rei…”. Do chôro o Zequinha caiu ao cansaço. E dormiu.

Acordando pela madrugada, tudo fechado, apagado e calmo, foi até a sala e viu o pai, com camisa branca, daquelas de pano de saco de açúcar e larga; o pai saudável, sóbrio e salvo; de volta ao lar, reconciliado com a mãe, sentado ao pé da árvore reluzente:

— Não chore meu filho… vem cá no papai, quero lhe dar um novo ensinamento…

lopes al’cançado rocha, o Cristiano, 20181221

contato: lopeslarocha@gmail.com

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Os grãos da sabedoria & Máximas

Os grãos da sabedoria 

Osvaldo Orico

Quando fala o orgulho, a razão silencia.

§

Não devemos voluntàriamente abrir uma luta; mas obrigatòriamente não podemos fugir a ela.

§

Entre a razão e a fôrça pode-se optar por uma fórmula conciliatória: a fôrça da razão.

§

A maioria das pessoas gosta de ostentar a opulência; o que toda gente esconde como pode é a penúria.

§

A felicidade está sempre ao alcance de nossa mão; apenas nosso braço é muito curto para alcançá-la.

§

Só sentimos o valor da liberdade quando a perdemos.

Máximas,  de Marquês de Maricá

Ler sem refletir é comer sem digerir.

§

A fôrça,que sobeja na língua, falta, de ordinário, no braço.

§

O fogo destrói e consome iluminando.

§

Uma cabeça má arruína o corpo inteiro.

§

Mocidade viciosa faz provisão de achaques para a velhice.

§

A virtude é comunicável, mas o vício é contagioso.

§

A vaidade de muita ciência é prova de pouco saber.

§

A prudência é uma arma defensiva, que supre ou desarma tôdas as outras.

§

A modéstia é a moldura do merecimento, que o guarnece e realça.

§

A realidade nunca dá quanto a imaginação promete.

§

O homem que não é indulgente com os outros, ainda não se conhece a si próprio.

§

                                         Vale mais ser invejado que lastimado.       

§

Os rouxinóis emudecem, quando os jumentos ornejam.

§

Selecionadas pelo professor Osmar Barbosa, 
na coleção“Conheça o seu idioma”, de 1971. 2º e 4º Volumes.

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Aos anjos do Deus Hermes (singularidade e propriedade intelectual) – Crítica

Aos anjos do Deus Hermes
(singularidade e propriedade intelectual)
– Crítica

Lopes al’Cançado rocha, o Cristiano

                                                    fotografia distorcida do autor, nov. 2018.

Ironia séria versus cinismo debochado

O artista e intelectual contemporâneo, sobretudo aquele autônomo e independente, há que ter a consciência de ser substituível, dispensável e até, no mais das vezes, indigno da preciosa atenção de apreciadores tão distintos e exigentes. Com base nessa verdade fática batizei com o nome modesto: Pingo de ouvido.

Mas certos “anjos eleitos, ministros da cultura artística”, de quando em vez, aparecem sugerindo que delimitemos nossas manifestações. Seriam enviados pelo Deus Hermes, a quem dou o meu respeito como adversário. Sentem-se anjos, porém são homens tomados pelos vícios dos mais comuns.

Homens, sintam-se livres e à vontade para inspirar-se, parafrasear, parodiar ou, se quiserem, usar na íntegra com bastante proveito tanto o nome quanto o conteúdo desse projeto! O Pingo de Ouvido já é fonte secundária de pesquisa e inspiração em inúmeros países de língua portuguesa e em alguns grupos de estudos literários de nosso Florão da América,dos Estados Unidos e do Canadá.

Particular e autofinanciado, trata-se duma iniciativa em que republicamos autores e importantes textos de nossa cultura. E claro, alguma manifestação de autoria do escritor-fundador. Jamais será espaço exclusivamente para autopromoção nem veículo interativo instantâneo visando atingir visibilidade superficial ao administrador do site. É genuína contribuição para a história, para a literatura e para a felicidade das pessoas.

O teor de certas mensagens insólitas e enviesadas instigou-me nessa resposta, pois sempre me esforço para ser respeitoso e responsável, inclusive às mensagens cifradas e aos subtendidos. 

Alguns divergentes e adversários meus têm murmurado em rodas de intrigas dando a entender que sou um usurpador de idéias, inspirações, mensagens, dicas, obras e trechos.

Para eles, eu finjo ser um prestador de homenagens, mas na verdade minha intenção é violar direitos autorais, obter vantagens indevidas, enfim, aproveitar do esforço de “mentes mais criativas” do que a minha.

Influências, referências e intercâmbios

Mesmo confessando e assumindo minhas fontes de instrução e referência, o uso que faço dos recursos de intertextualidades, citações indiretas, paráfrases; mesmo se confirmando minha notória inclinação em dialogar com pensadores de outras gerações e linhas de expressão diversas; ainda há quem insinue má fé da minha parte, isso tempos depois de autorizar-me informal e tacitamente a utilização de termos comuns às suas criações.

Alguns desses meus divergentes – notem bem: não somos dissidentes separatistas, pois divergimos em muito desde quando passamos a nos relacionar – por várias vezes, há tempos, me procuravam para trocar idéias em matéria de cultura artística, cultura em geral e certos conhecimentos técnicos.

Mas hoje está chegado o futuro daqueles tempos idos. E falharam muitas das idéias desses tais divergentes meus.

Covardia e Incivilidade

Essa covardia de insinuar que sou um usurpador oportunista só poderia vir de cabeças assombradas por espíritos revolucionários – tanto da doutrina liberal produtivista econômica quanto das doutrinas coletivistas, anarquistas e correntes associativistas autoritárias; doutrinas essas inimigas da liberdade individual, letiva e da coletividade saudável, recíproca –, espíritos perversos que revolvem e invertem as boas intenções em más.

Só me dirigia a essas criaturas quando por elas eu era solicitado. Nunca deixei de lhes estender as mãos, como sempre fiz a todos os meus semelhantes. Sentamos à mesa e às rodas, repartimos o pão, lavamos os pés uns dos outros. Toleraram-me e respeitaram-me até onde puderam e tiraram proveito, aprendemos juntos, cada qual se resguardando com suas crenças e doutrinas.

Quem não via e ainda não vê nesses tipos um perceptível cinismo despeitado querendo se passar por orgulho próprio?Levantam bandeiras suspeitas e ainda pregam adesivos depreciativos nas costas de pobres trabalhadores assalariados. São covardes ou não são? Muito covardes! E perversos! Pérfidos!

Eles com seu bem-estar assegurado, diziam(e ainda dizem) “foda-se” a “todo resto” e “bem-feito” ao sofrimento alheio.Corações sem compaixão!! Aliás, disputam para ver quem sente menos culpa, para ver quem é mais impiedoso. Exaltam a crueldade, riem dos crimes, riem da fome,do desemprego, da desindustrialização; riem da falência dos comércios; debocham das religiões, das mulheres decentes, das pessoas honestas e íntegras.

Gesticulam entre eles que tudo quanto não lhes é parecido seja fingido e interesseiro.

Acreditam eles naquelas mínimas impensadas, totalitárias e incultas de que “toda propriedade é um roubo” ou “tributo é roubo”. Acreditam que “todo” usufrutuário é um opressor e explorador maligno do suor alheio. Partindo dessas premissas estúpidas, instauram-se as guerrilhas e as revoluções permanentes no campo do comportamento, dos costumes e dos gostos.  

Ora, se toda propriedade ou tributo advêm de crime, podemos invalidar as transferências mútuas por livre e espontânea vontade. Invalidemos as trocas, as permutas, as compras e vendas, as heranças, os empréstimos, os comodatos, os aluguéis, as doações por caridade e, claro, podemos invalidar também as contribuições às caixas de associações, os agrados e os regalos.

Vamos viver todos roubando e assaltando uns aos outros!?

Adeus amizades! Adeus amores! Adeus colegas! Adeus networks! Afloremos todos os maus sentimentos: despeito, inveja, ciúmes, ressentimentos, mágoas, complexos de inferioridade, indignações e reivindicações injustas.

O vale das invejas: conspiração, alvo de desprezo e compaixão

As relações passam a ser de grupos contra grupos. Tribos contra tribos. Formam-se as correntes contrárias que se combatem. Conspirações determinam os alvos de desprezo. E os mais rebaixados seguem à risca o surrado mandamento “acuse-a do que ela não faz e chame-a do que ela não é”.

Empreendem-se as diminuições às ocultas, o abafamento das vozes, os julgamentos viciosos; o desbotamento do nome mediante insinuações acusatórias; as interpretações maldosas.

Porém não há um corajoso para se dirigir a mim pessoalmente, sozinho ou junto de um irmão como testemunha, e repreender-me com amor, pedindo-me para retirar dos meus números os trechos que não me são genuínos e não me pertencem como autor (as citações, as paráfrases, as alusões, as intertextualidades, enfim), já que não poderia eu gozar das heranças culturais de nossos criadores do passado, e nem teria eu a altura suficiente para dialogar com os criativos artistas dos Século XXI, que se julgam trans-formadores do mundo e da vida, condutores da história, donos do futuro e do além.

Descrever e explicar a fórmula da mais-valia ninguém se dispõe.

Esses “voluntários fiscais da natureza e do patrimônio imaterial da humanidade”, simpatizantes e colaboradores de instituições poderosíssimas, consideram-se integrantes do mais elevado gênero humano, dotados do mais alto senso de “justiça social” e solidariedade. Inclusive,quem não está por eles e com eles, ou quem deles discorda em alguns pontos já é por natureza injusto, avaro, ganancioso, egoísta e guloso.

Nem precisam mais se encontrarem para combinar suas ações e comportamentos coordenados. São autodirigidos, na acepção de David Riesman. Treinados “em rede” e “em cadeia”. Verdadeiras hordas de autômatos rastejando em círculo na Multidão Solitária. Entoam aquela ladainha dos perdidos: “não sei aonde estou indo/ eu só sei que estou no meu caminho”.

De minha parte, são dignos de muita compaixão.

Quando saem de suas redômas, já estão treinados em seus trejeitos, em suas insinuações enigmáticas, em suas agressões simbólicas, suas mensagens subliminares; treinados nos boicotes, nas sabotagens, nas recomendadas censuras pelo desdém; nas contrapropagandas, nos denuncismos e nas críticas covardemente desleais, destrutivas. Não esqueçamos das companhas difamatórias, dos ataques às escondidas.

Os detalhes chegam ao nosso conhecimento porque são infiéis entre eles mesmos. São cobiçosos, sovinas, invejosos confessos, oportunistas e materialistas dos mais vulgares. Qualquer desagrado entre um e outro, entregam todo diz-que-me-diz. Incapazes de governar suas emoções. E não mudam de máscara para fingir que tudo não passou dum engano; e tapam os ouvidos quando a verdade explode avassaladora, causando-lhes estrago em suas inconsciências doentias.

Uma voz deles, certa vez, contou-me até as manobras de “baixa magia”, as maldições no desejo de que sejamos acometidos por algum câncer ou por algum acidente mortal. Criaturas sem humildade nem coragem! Seres incapazes de respeitar as dores do semelhante…

Em favor deles mesmos, desses seres com suas almas perdidas em doutrinas pôdres e causas totalitárias, qualquer contrafação, pirataria e hipocrisia são válidas.

Reivindicam o monopólio da marginalidade, escondendo que são “filhotinhos de papai” e protegidos do Grande Leviathan. Só a garantia de suas vontades deve ser assegurada. Desesperados inconseqüentes!!

Será que produzem obras singularíssimas e autênticas ? Estamos à espera, dispostos a aplaudir e reconhecer.

contato: lopeslarocha@gmail.com

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Conselho de amigo

Conselho de amigo

Olegário Mariano

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  Portinari – Retrato de Olegário Mariano
                           

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,

Gosto da tua frívola cantiga,

Mas vou dar-te um conselho, rapariga:

Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da Formiga.

Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,

E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,

Pedirás…e é bem triste ser mendiga.

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava

(Quem dá conselhos sempre se consome…)

Continuava cantando, continuava…

Parece que no canto ela dizia:

__ Se eu deixar de cantar, morro de fome…

Que a cantiga é o meu pão de cada dia.

Fonte imagem: https://br.pinterest.com/pin/528961918709064739/?lp=true

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João da Cruz e Sousa

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Leitura: Marcelo Lima

Tasso da Silveira em 1972 – ao organizar e criticar poemas do autor na coleção Nossos Clássicos da Agir Editora – elegeu o presente poema como “talvez o mais belo do idioma”.

 

SORRISO INTERIOR

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranquila

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

 

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Sêde de Deus e de Civilização(comentário crítico sobre o conto “A Igreja do Diabo”)

Sêde de Deus e de Civilização

(comentário crítico sobre o conto “A Igreja do Diabo”)

Imagem_Editora_Argos

Leitores religiosos e mais ingênuos evitariam “A igreja do Diabo” por temor ou por simples repulsa. Os descrentes, na sua vez, esquivam-se do conto talvez por respeito próprio à sua tradição não religiosa. Agora, os apologistas de Satã desejam mesmo é que essa obra seja apagada da História de nossa Literatura.

Estamos diante duma obra-prima da Literatura Universal, cuja personagem principal é a entidade arquetípica, real para uns, mitológica para outros. O anjo caído, o anjo rebelde, tomado por despeito, ódio, vingança e inveja: Lúcifer!

Algum monge divinamente inspirado da ordem de São Bento teria testemunhado a história, deixando-a em manuscrito para os homens comuns, caindo então aos olhos do leitor-narrador-escritor. O que move a história é uma idéia extraordinária ocorrida ao anjo, durante suas reflexões no inferno. Decide ele fundar uma Igreja Única e Global, enquanto se combatem entre si as religiões. O plano nasce da clássica e totalitária percepção diabólica de que tudo entre os seres é vaidade. Vanitas vanitatum et omnia vanitas! Para o desafiador de Deus, as virtudes buscadas pelos homens têm por motivo o orgulho. Pervertendo as virtudes e resumindo-as em um só vício, o mirabolante levanta uma comparação entre elas e a vestimenta distintiva da realeza. A capa – o manto de reis, rainhas, príncipes e princesas – traz na sua essência o tecido e na forma a destacada franja. Esta última, naturalmente, trata-se de guarnição, enfeite. No argumento satânico, a franja é algo que ao mesmo tempo embeleza e esconde, tampa alguma verdade ou vergonha. Isto é, por detrás das virtudes que se vê está escondida a Senhora Vaidade. Com base nessa tese, e impiedoso com os pecadores, o pai da negação e do “moralismo mundano” condena a todos negando qualquer possibilidade de salvação.

Quanto aos tecidos. Podemos traçar um paralelo com os lugares onde se passa a história: o algodão, hipoalergênico, com sua brancura e maciez simbolizaria o Céu; o veludo por sua exuberância, propenso à irritabilidade e dupla possibilidade (pode ser ele fiado com algodão ou seda) seria a vida na Terra; por fim a seda com seu brilho reluzente e sua luxúria infernal “das províncias do abismo”.

Para o Diabo, um fiel modesto e sensato que dá sua vida para salvar outras duas não passa de um misantropo fingindo caridade. Os crentes, para ele, são invejosos; enquanto que as forças infernais vestem-se de justa indignação. Ele goza de amor próprio diante de um Deus vencido; os pobres fiéis não, esses se movem por vanglórias. O Diabo é eloqüente, sedutor e deseja disputar o rebanho das almas até que sua igreja seja a única. Ataca o livre arbítrio dos profetas e do reformador. Abala toda a harmonia angélica. Pretende eliminar a variedade de religiões e doutrinas. Trabalha negando a decência, o arrependimento, a culpa, a piedade e a reconciliação, “cortando por toda a solidariedade humana”. Tudo pode ser vendido e adulterado. O simples fato dum fiel arrumar-se para ir ao templo é, na lógica diabólica, ostentação. Revolve-se o quadro gradual aristotélico dos bons e maus hábitos.

Para concluir sua instituição, precisa ele estabelecer uma Grande Ordem Nova e Insana das coisas, com a força das multidões e legiões de seguidores. Ele mesmo se autodenomina Legião. Sua Igreja é a instauração da barbárie. Que é a barbárie? Trata-se da reversão das civilizações em selvas, os homens tornados animais irracionais em ambientes inseguros, cercados de ruínas e abismos. Instaurada essa barbárie horrenda e dolorosa, os demonizados então praticarão suas virtudes por detrás das aparências pecaminosas e demoníacas. Aparências essas que são as franjas de seda. O homem, seco por dentro, voltará a ter sede de Deus e de Civilização. Após a sofrida experiência das tentações e reconquistados os bons hábitos, necessário se faz banhá-los de humildade para superarmos as renovadas estratégias do Diabo.

O bom escritor deve ser, antes de tudo, um atento ouvidor das tradições, histórias clássicas e alheias, bem como um colecionador de acontecimentos, fatos, lugares e tempos. Personagens e ações se repetem e se atualizam. O rico repertório de citações do contador nos traz saudades ao tempo em que nos empurra para a esperança.

 Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano.

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A igreja do Diabo

A igreja do Diabo

Leitura dramática: Marcelo Lima

machado-de-assis-1904
Joaquim Maria  Machado de Assis

CAPÍTULO I

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

__ Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: – Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

II

ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

__ Que me queres tu? perguntou este.

__ Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

__ Explica-te.

__ Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros…

__ Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

__ Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação… Boa idéia, não vos parece?

__ Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

__ Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência… Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

__ Vai !

__ Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

__ Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

__ Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…

__ Velho retórico! murmurou o Senhor.

__ Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, – a indiferença, ao menos, – com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, – ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda… Vou a negócios mais altos…

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

__ Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

__ Já vos disse que não.

__ Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

__ Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

__ Negas esta morte?

__ Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los…

__ Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens… Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

__ Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu…” O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: – Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão dos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

IV

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

__ Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É eterna a contradição humana.

Vocabulário: ______________________________________

Mirífica= Maravilhosa, admirável, extraordinária, excelente.

Cogula= Túnica larga de religiosos.

Prédicas= Sermões, discursos religiosos.

Sulfúreas= da natureza do enxofre.

Esgalgada= magra como um galgo; galgo= cão de pernas longas; esfomeado.

Peleu= da mitologia grega, rei, navegador, amigo de Centauro e de Hércules e pai de Aquiles.

Rabelais= relativo a François Rabelais (1494-1553), escritor renascentista francês; que lembra seu gênero libertino, devasso e licencioso.

Hissope= referência a “O Hissope, de António Diniz da Cruz e Silva” poema heroico e cômico; [De hissopo, por ser com raminhos desta planta que se fazia a bênção.]; Aspersório: instrumento para borrifar (orvalhar) água benta.

Lúculo= Lucius Licinius Lucullus, político e combatente da Republica Romana (118–56 a.C); Indivíduo amante de banquetes suntuosos.

Galiani= Padre Italiano Ferdinando Galiani, sociólogo e economista.

Turbas= multidões.

Insolvável= insolvente.

Muezim= almuadem, entre os muçulmanos, aquele que anuncia, em voz alta, do alto das almádenas, a hora das preces; almádenas= Minarete, torre de mesquita.

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|Música: a arte primeira na sua origem

|Música: a arte primeira na sua origem

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

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A fala e a cala constituem o diálogo – ou o monólogo –,  a prosa, porque são impressivos, arrítmicos e horizontais. São mais da razão e da externalidade comunicativa. A fala, imagética na memória, é exposição, explicação; a cala, por sua vez, é compreensão na escuta e incompreensão na surdez.

O diálogo (ou monólogo) e a prosa são menos etéreos do que o chôro, do que o gemido e o riso, e são mais visuais e plásticos; mais humanos, são a civilização. Só o homem – esse animal que ocupa o primeiro lugar na escala zoológica – consegue contar histórias. Enquanto que o restante da natureza só pode rir, chorar e cantar.

A prosa se manifesta após o nascimento, durante a vigília e mediante a imaginação. A fala e a cala, civilizatórios que são, compõem os dramas e as tragédias.

Quando vai se formando o ser humano, no ventre materno, é que se dá o primeiro contato sensitivo com as formas de sentimentos expressivos e impressivos e, por conseguinte, com a arte – isto é, com as expressões situadas no tempo, no espaço e na memória.

O chôro e o riso são as primeiras expressões organizadas sentidas pelo feto. São como se fossem poesia e música, porque têm ritmo e são mais expressivos, verticais. E ambos são mais do coração: o chôro é lamento e o riso é júbilo, ensaios para o clamor e louvor.

A poesia e a música, mais sonoras, mais íntimas e emotivas, inclinam-se para o sono e para o sonho durante a gestação. O lamento e o júbilo são líricos, da natureza. Os pássaros cantam, as águas riem, os animais irracionais choram. Choram os cavacos, choram as cuícas, riem-se as violas.

Portanto, o ser humano no período de sua gestação só poderá ter contato com apenas uma forma de arte, que é sonora, emotiva, íntima, lírica, sonhadora e rítmica. Ela germina do chôro e do riso, evoluindo para os cânticos de ninar ouvidos pela criança recém-nascida. Das cantigas de ninar abrem-se as portas para a arte segunda, que é a dança, cujo contato se inicia nos gestos de embalo dos pais quando tomam seus filhos no colo.

 
Inspirado em diversos textos e obras, sobretudo em “A Origem Da Linguagem”, de Eugen RosenstockHuessy.
Fonte imagem: música na gravidez. Confissões maternas.link: http://thalinelivia.blogspot.com/2010/11/musica-na-gravidez-solta-o-som-que-faz.html

contato: lopeslarocha@gmail.com

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O Chateado II

 O Chateado

II

 lopes al’Cançado de la rocha, o Cristiano

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Passaram-se dias. Dias reflexivos para um, dias ansiosos, como de costume, para o outro. Este último então, solicitou novamente o aconselhador.

__  Meu amigo, aqui estou de volta. Não estabeleci prazo para lhe deixar à vontade…tenho ciência de como é desagradável importunar os ouvidos de quem conhece bem a si mesmo e aos outros.

O chateado relaxou-se um pouco da ânsia e seu semblante sorriu. O sábio continuou:

__ Enquanto esperava seu chamado fui pensando no seu caso e, se me permite…

O modesto elogio ainda ressoava na atenção do moço que, perdendo-se na conversa, interrompeu:

__ Meu velho, creio finalmente estar diante de alguém que me compreende. Gravei na cabeça parte daquela nossa conversa do outro dia. E isso me fez gerar uma certa preocupação. Receio ter sido contaminado de aporrinhamentos e tenho medo de tornar-me pessoa birrenta, como são as pessoas que me chateiam. Não me lembro se lhe fui maçador daquela vez, mas se fui, peço-lhe desculpas.

O sábio guardou sua fala interrompida e deu sequência:

__  Não há de quê. Não se preocupe, meu amigo. O destino não costuma ser irônico com a sinceridade.

Retraindo-se, fingindo não entender ao certo a última frase do velho, o aconselhado saiu-se com meia concordância:

__  Faz sentido.

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O Chateado I

O Chateado

I

 lopes al’Cançado de la rocha, o Cristiano

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Ao devedor o cobrador é, mais das vezes, chato. O pedinte também se aborrece com quem não lhe efetua nenhuma doação. Já determinado atacante considera muito impertinente o defensor da equipe de futebol adversária. E assim vão se multiplicando as chatices, os chateados e, claro, multiplicam-se também as irritações.

Aconteceu que um dia, um sábio foi solicitado a aconselhar outro sujeito que andava sendo chateado por muitas pessoas. Humilde, educado e prestativo, recebendo a licença, o sabido iniciou a prosa:

___ O mais sensato seria evitar as pessoas que você considera chatas.

___ Mas são muitas…e preciso conviver com algumas delas, respondeu o sujeito.

___ Hum…então evite as que puder evitar e suporte as que precisa suportar. Separe-as conforme sua conveniência.

O chateado, expressando certa impaciência, foi alongando:

___ Mas é o que sempre tento fazer, porém vejo-me logo de saco cheio e, no fim das contas, acabo saindo das relações bastante zangado e dolorido.

O sábio então pensou por alguns instantes. Pensou mais um pouco e… encerrou a conversa:

___ O seu caso é bem específico. Perdoe-me se já lhe causo alguma chateação por aqui. Espero que não se zangue comigo. Jamais terei raiva de sua pessoa. Dê-me mais algum tempo para que eu possa pensar na questão e aí depois voltaremos ao assunto. Até breve.

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PSICOLOGIA DA MULHER ELEGANTE, O LEQUE

(…) O nosso Manfredo de hoje veste o seu talmá, acende o seu havana, e vai para o Club, ou para o café, jogar sua partida de bilhar, e maldizer a sociedade, à qual ele dá a honra de fazer parte.

Foi um dos indivíduos dessa família que me fez presente do livro de que vos falei: o autor conservou o incógnito, e não quis fazer, como hoje se costuma, um brasão de títulos da sua primeira página.

Intitulou a obra Psicologia da mulher elegante, e dividiu-a em diversos capítulos, todos interessantes, senão pela forma e pelo estilo, ao menos pela originalidade.

O capítulo que vou ler tem por título O leque: é um estudo psicológico que o autor faz sobre este objeto de luxo, que serve de cetro às rainhas da moda.

Há, como estes, muitos outros capítulos a respeito do bouquet, do mantelete, do lenço, das fitas, das botinas, etc.

Mas prefiro o leque porque, estando no verão, tem a sua atualidade.

Portanto, se estais disposta a ouvir, abro o meu livro, e começo a leitura do meu capítulo.

Aí tendes:

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PSICOLOGIA DA MULHER ELEGANTE

CAPÍTULO ÚNICO

O LEQUE

I

As moças têm um companheiro fiel, confidente dos seus menores segredos.

É o leque.

À primeira vista parece um simples objeto de luxo; mas se ele pudesse contar o que viu e ouviu!…

Quando o rubor vem colorir uma bela face, aí está o leque para disfarçar e encobrir aos olhos profanos esse misteriozinho do pudor.

Um leque serve também de pretexto para baixar os olhos, e ocultar a vista que anda passeando pelo salão.

Se uma amiga quer dizer um segredo ao ouvido de outra, estende o seu leque aberto, e por sobre a madrepérola dourada deslizam essas palavras que, por saírem de lábios mimosos, não deixam de ser bem venenosas.

São como os espinhos que se escondem entre as folhas das rosas, com o fel que destila o cálice de uma flor alva e pura.

Por mim, apenas descubro um leque naquela posição temível de pára-raio, vou quebrando à direita, e colocando-me em respeitosa distância: uma das cousas que mais temo neste mundo é ver-me reduzido a passar da boca de uma moça ao ouvido de outra por entre as aspas de um leque.

Preferia passar por baixo das forças-caudinas, ou ser passado a fio de espada; porque duvido que haja ferro que doa mais do que aquelas tenazes de madrepérola dourada, quando são vibradas por uma mãozinha que calça luva de Jovin letra A.

Outra posição respeitável do leque é quando ele move-se com extrema rapidez ou abre-se e fecha-se com um certo trilho sonoro, porém de mau agouro.

Se reparardes bem, vereis que a mãozinha que lhe imprime este movimento está crispada por uma convulsão nervosa; é um sinal certo de mau humor, e bom será que não vos aproximeis neste momento.

Dizem alguns fisiologistas experientes que nesta ocasião a rapidez do movimento do leque é um termômetro exato da rapidez da circulação do sangue.

Não sou fisiologista; mas basta-me ver de longe um leque fazendo ziguezague, para compreender o que se passa na alma de uma moça, e para sentir-me tomado de dó e de compaixão pelo sujeito ameaçado por esta inocente arma de guerra feminina.

II

O leque tem a sua linguagem, como as flores linguagem telegráfica, (sic) um pouco simbólica, que os profanos nunca poderão entender; só os iniciados nos mistérios da vida elegante é que sabem interpretar os seus menores movimentos.

Não há fio elétrico, não há sinais de repercussão que transmitam o pensamento com mais rapidez e mais clareza, do que um leque na mão de uma moça; é de tal forma, que alguns homens peritos governam-se por ele no meio do salão, como o marinheiro no oceano por meio de uma boa agulha de marear.

Uma mãozinha que se estende indolentemente, e deixa cair a ponta do leque sobre a palhinha de uma cadeira, diz ao escravo submisso que “venha sentar-se ali”.

Quando o leque descreve um semicírculo, ou faz um movimento de retração, o sujeito de longe traduz imediatamente o gesto ao pé da letra: ___ “Passe para o outro lado” ___ ou ___ “aproxime-se”.

Se o escravo é um pouco rebelde, e não obedece sem hesitar, vereis o leque duas pancadinhas, uma após outra, sobre o espaldar da cadeira: isto em linguagem cabalística vale o mesmo que um ukase do sultão, ou uma sentença sem apelação nem agravo. Em linguagem profana significa simplesmente: Quero, quero já.

Entretanto o leque tem um momento delicioso; é quando se agita indolentemente sobre o seio, com o movimento suave das asas do cisne que se revê na flor do lago.

Então a sua linda senhora está em uma de suas horas de embevecimento; tudo nela respira a felicidade e o prazer.

Os olhos meio cerrados têm um requebro lânguido; um sopro ligeiro agita as rendas do seu vestido ou as fitas dos seus cabelos; e as sombras escassas que passam e repassam sobre o colo acetinado, dão-lhe umas ondulações voluptuosas, capazes de enlouquecer um pobre homem que tem olhos para ver todas estas cousas.

Então que segredos não ouve ele no palpitar desse seio mimoso, no bafejo dessa boca delicada que o perfuma com seu hálito de rosas?

Se o leque fosse uma cousa animada, eu diria que é o momento em que ele sorri; porque na sua linguagem misteriosa diz àquele por quem se agita: “Eu te olho, eu te amo, e sou feliz”.

Tenho visto muitos homens brincarem com o leque que alguma senhora deixa por acaso sobre a cadeira, como se fosse um objeto qualquer de luxo.

Eu não sou assim: para mim o leque é um livro de páginas douradas, um álbum de seda e de penas, em que a mulher guarda todos os seus segredos.

Por isso, quando alguma senhora me dá o seu leque a guardar, recebo-o com o mesmo respeito com que receberia o autógrafo de um romance de Alexandre Dumas, ou de uma poesia de Victor Hugo.

III

Para concluir este estudo fisiológico do leque, acrescentarei algumas observações sobre a sua história.

O leque é para a mulher o que a bengala é para o homem; na sua origem ambos estes objetos foram uma arma de defesa, mas a civilização, de transformação em transformação, reduziu-os a um traste de luxo, que às vezes ainda no fundo revelam o que foram.

A bengala na sua primitiva forma não era mais do que uma clava, um bastão ou um cajado; depois transformou-se em lança, adaga, espada ou florete; e finalmente no século XIX chegou ao seu estado de perfeição, que é a bengalinha de junco ou a chibatinha de barbatana.

Hércules, Abraão e Diógenes trouxeram a clava, o cajado e o bastão; César, Carlos Magno, Henrique IV e Turenne usaram da lança, da adaga, da espada; Napoleão tinha o seu sabre; Murat o seu chicotinho; Nicolau da Rússia andava de bengala: está pois bem próxima a época em que o cetro dos reis será uma chibatinha de unicórnio, com castão de coralina.

O leque passou com poucas diferenças pelas mesmas transformações que a bengala.

Nos tempos heróicos teve a forma de um punhal ou estilete; tornou-se depois um fuso, e afinal, com a descoberta do caminho da Índia, metamorfoseou-se no que é atualmente.

Sarah, Norma, Abigail e Medéia traziam à cinta o seu punhal; a rainha D. Sancha e as castelãs da Idade Média manejavam a roca e o fuso: a moça elegante do nosso tempo abana-se indolentemente com o seu leque dourado.

Passo por alto algumas outras transformações, verdadeiras aberrações, como por exemplo: o estilete que há bem pouco tempo usavam as andaluzas, e o fato da padeira de Aljubarrota, cujo leque foi uma pá de forno.

IV

Agora podem os meus leitores conhecer a razão por que ainda hoje o leque conserva alguma cousa da sua primitiva origem: apesar de toda a indolência e o capricho que lhe deu o gênio voluptuoso da Índia, é sempre a mesma arma terrível da mulher.

Sob as duas penas de Marabout, entre as aspas delicadas, a vista não vê, mas o coração do homem ainda sente o estilete de Norma, que a vingança muitas vezes estorce, como uma víbora no seio das flores.

Judith com o seu punhal cortou a cabeça de Holofernes e exultou pelo seu ato de coragem e de bravura; a Judith de luvas e mantelete dos nossos tempos, com o seu leque, esmaga, sorrindo, o coração dos Holofernes de casaca, e saboreia lentamente o prazer da tortura e do martírio que impõe à sua vítima; uma é pois digna da outra.

Ainda um paralelo:

Lucrécia para defender a sua honra serviu-se do seu leque, isto é, do seu punhal, e a ele deveu conservar-se pura e casta; a Lucrécia moderna, para defender o seu pudor, serve-se do seu punhal, isto é, do seu leque, e a ele confia a guarda do seu pejo.

A primeira, estando só e não podendo defender-se, apunhalou-se e morreu; a segunda, estando no meio do salão, e levando o vestido decotado, oculta o seio com o leque, e sorri.

Aqui infelizmente já a Lucrécia moderna não é nem a sombra da esposa romana; o que é que degenerou, foi a honra ou foi a mulher?

Deve ter sido a honra, porque a mulher é a mesma em todos os tempos: criai um paraíso, deitai nele um Adão, e achareis mil Evas ao alcance do braço.

Agora, meus leitores, inclinai a cabeça, chegai o ouvido, que vos quero dizer uma cousa em muito segredo.

É um conselho.

Se desejais viver tranquilos e felizes, quando virdes um leque fugi dele como de uma pistola carregada.

Talvez penseis que me contradigo; mas refleti que há pouco falava para o público, e especialmente para as senhoras; e agora falo-vos ao ouvido, e em confidência. Virgílio, descrevendo a verdadeira felicidade e a doce tranqülidade da vida campestre, disse: – Felix, qui procul negotiis , etc.

Se ele vivesse hoje, e vos falasse em meu lugar; se quisesse convidar-vos ao sossego e aos calmos prazeres do lar doméstico, em vez daquelas palavras, escreveria pouco mais ou menos estas: – Felix, qui procul lequis, etc.

Antigamente os cavalheiros ilustres, depois de uma vida de feitos brilhantes, guardavam a sua espada, como uma relíquia sagrada, que entregavam ao seu primogênito no dia que ele partia para a primeira campanha.

Talvez as mulheres elegantes façam o mesmo, e dêem às filhas, no dia da sua primeira entrada nos salões, o leque, troféu glorioso de suas conquistas.

Fui estudantinho, estudante vadio; entretanto nunca a férula do meu mestre del latim me meteu tanto medo como esse brinquedo das mulheres à moda.

Se eu governasse algum país, para conservar a paz do meu povo não consentiria no fabrico de leques; classificaria isto entre as indústrias proibidas, como a pólvora e os foguetes a congreve.

Mas não sou governo, e por isso a única esperança que me resta é que o Sr. Sampaio Vianna fará apreender como contrabando todos os leques que entrarem na alfândega, como já fez com pentes de tartaruga.

E assim fico um pouco tranquilo, confiando na sabedoria do nosso inspetor, a quem está reservada a glória de salvar o país, apreendendo os leques e os pentes.

Aqui termina o capítulo, minhas leitoras, e aqui termino eu igualmente.

O livro, como já vos disse, é anônimo, porém, se vos interessais muito em conhecer o autor, vou ensinar-vos a maneira de conseguir.

Deitai a costura sobre a banquinha, chegai depressa à janela, olhai para a rua, e o primeiro homem de bom senso que passar é o indivíduo que desejais conhecer.

Podeis escrever-lhe o nome no fim do capítulo, que eu servirei de testemunha, e assinarei depois dele.

José Martiniano de Alencar, Folhas soltas, 6/mar./1856

Fonte secundária das imagens:http://www.omundodegogoia.com.br/historia-do-leque/

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A Religião de Cristo

A Religião de Cristo

José de Alencar, ao correr da pena, 07/out./1855.

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Felizmente todo o deserto tem seus oásis, nos quais a natureza por um faceiro capricho parece esmerar-se em criar um pequeno berço de flores e de verdura, concentrando nesses cantinhos de terra toda a força de seiva necessária para fecundar as vastas planícies.

Assim nesta quadra de amarguras e sofrimentos, encontram-se de espaço a espaço alguns corações ricos de virtudes e de sentimento; são os oásis deste tempo.

Aí sim; aí há flores; não as rosas brilhantes de outrora ou as camélias aveludadas dos salões; mas as flores modestas, filhas da sombra e do retiro, as flores do ___ sentimento, as violetas.

Vós minhas leitoras, que sabeis sentir, bem compreendeis o que são estas violetas de que falo; são as flores singelas de vossa alma ___ a caridade, a beneficência, o zelo e a abnegação.

Também me compreendem os pobres e infelizes, que tantas vezes durante estes tempos de provação têm sentido os perfumes suaves, a fragrância consoladora dessas flores do coração, ___ flores que desabrocham orvalhadas com as lágrimas da desgraça e do sofrimento.

E sobre tudo isto, há ainda a religião, ___ a nossa bela religião de Cristo, ___ mãe extremosa de todos os órfãos, ___ a irmã desvelada de todos os infelizes, ___ a amiga e companheira fiel dos pobres, ___ a consoladora de todas as misérias, e todas as aflições.

É ela que nos há de dar força e coragem para atravessarmos com resignação esses dias de atribulação, que felizmente parece irão pouco a pouco se acalmando, até nos deixarem aquela serenidade dos belos tempos de que hoje temos tanta saudade.

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A véspera de Natal

A véspera de Natal

José de Alencar, ao correr da pena, 24/dez./1854.

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Estamos na véspera do Natal.

À meia-noite começa esta festa campestre, a mais linda e a mais graciosa da religião cristã. Vítor Hugo confessa que não há nada tão poético como esta legenda das Mil e Uma noites escrita no Evangelho.

Com efeito, tudo é encantador nesta solenidade da Igreja, nesses símbolos que comemoram a poética tradição do nascimento de um menino sobre a palha de uma manjedoura. A missa do galo à meia-noite, os presepes de Belém, as cantigas singelas que dizem a história desse nascimento humilde e obscuro, tudo isto desperta no espírito uma idéia ao mesmo tempo risonha e grave.

Não é, porém, na cidade que se pode gozar deste idílio suave da nossa religião. Censurem-me embora de um lirismo exagerado; mas afinal de contas hão de confessar comigo que no meio do prosaísmo clássico da cidade, entre essas ruas enlameadas, de envolta com o rumor das seges e das carroças, a festa perde todo o seu encanto, todo esse misterioso recolhimento que inspira a legenda bíblica.

É no campo, no silêncio das horas mortas, quando as auras apenas suspiram entre as folhas das árvores, quando a natureza respira o hálito perfumado das flores, que o coração estremece docemente, ouvindo ao longe o tanger alegre de um sinozinho de aldeia, que vem quebrar a calada da noite.

Daí a pouco, luz das estrelas, no meio dessa sombra mal esclarecida, distinguem-se os ranchos de moças, que se encaminham para a igrejinha rindo, gracejando, cochichando, bisbilhotando, como um bando de passarinhos a chilrear em tarde de outono.

A porta da capelinha está aberta de par em par; e a luz avermelhada dos círios, os vapores perfumados do incenso, os sons plangentes do órgão, o murmúrio das preces recitadas à meia voz, enchem todo o corpo do templo. De vez em quando um rumor do campo, o esvoaçar de alguma andorinha despertada de sobressalto pela claridade, vêm interromper alegremente a calma e placidez da festa.

Se quereis tomar o meu conselho, minha amável leitora, não vades à missa do galo nas igrejas da cidade. Escolhei alguma capelinha dos arrabaldes, à beira do mar, como a de São Cristóvão, cercada de árvores, como a do Engenho Velho, ou colocada nalguma eminência, como a igrejinha de Nossa Senhora da Glória, tão linda com suas arcadas e o seu vasto terraço.

Ouvi a vossa missa devotamente, isto é, olhando apenas uma meia dúzia de vezes para os lados, e estou certo que voltareis com a alma cheia das mais suaves e mais risonhas inspirações. Sentireis que o culto da religião, quando verdadeiro e sincero, é uma fonte rica de emoções doces, e não traz os dissabores deste outro culto do amor, no qual vós sois algumas vezes o anjo, e muitas a serpente do paraíso.

Bem entendido, se vos dou este conselho, é persuadida que não aspirais aos foros da alta fashion, porque caso deveis ficar na cidade e ir ouvir missa nalguma igreja bem quente e bem abafada, para pilhardes uma boa constipação na saída.

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A religião e a comemoração dos mortos

A religião e a comemoração dos mortos

José de Alencar, ao correr da pena, 05/nov./1854.

Leitura matinal espontânea em 02.11.2018

I

Lacrimae Rerum…

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A religião, essa sublime epopeia do coração humano, tem um símbolo para cada sentimento, uma imagem para todos os acidentes da nossa existência.

É aos pés do altar que o homem vê abrir-se para ele a fonte de todas as supremas venturas deste mundo ___ a família; e, quando o sopro da desgraça vai desfolhando uma a uma as flores da vida, é ainda aos pés do altar que achamos o consolo para as grandes dores, a esperança nos maiores infortúnios.

É que nesta breve romaria que fazemos pelo mundo, a religião nos acompanha como esses guias mudos do deserto, apontando-nos umas vezes o nada de onde partimos, outras a eternidade para onde caminhamos, e mostrando-nos a espaços com um aceno a linha negra que prognostica o simoun, ou os rastos dos animais que anunciam o oásis no meio das vastas sáfaras de areia.

Quantas vezes no seio das alegrias e dos prazeres, quando nossos olhos vêem tudo cor-de-rosa, quando o ar que respiramos parece vir perfumado dos bafejos da ventura, não sentimos de chofre o coração apertar-se como tomado por um doloroso pressentimento, e a alma confranger-se numa angústia pungente?

O deslumbramento passa rápido como o pensamento que o produziu. Mas dir-se-ia que o coração, comprimindo-se, como que vertera na taça do prazer uma gota de fel, e que entre o rumor da festa e os sons alegres da música, viera ferir-nos os ouvidos um eco surdo das lamentações de Jó: Memento quia pulvis es!…

Também às vezes a fortuna nos embala docemente, e a ambição nos empresta suas asas de ouro, ao passo que a glória envolve-nos com a sua auréola brilhante. Então o homem caminha com os olhos fitos na sua estrela, e com a cabeça alta passa sem perceber as misérias do mundo. Sublimi feriam sidera vertice.

Mas lá vem um dia, uma hora, um instante em que o corpo verga com o peso de tanta grandeza, e a cabeça acurva-se para a terra. Os olhos que mediam o espaço vacilam; a vista que dilatava pelos horizontes e ousava sondar os arcanos do futuro quebra-se de encontro a uma lousa, a um rosto, onde a pá do coveiro traçou num estreito quadrado e com um pouco de terra revolvida o emblema daquela sentença do Eclesiástico: Vanitas vanitatum et omnia vanitas!

Se, porém, a religião é severa nos seus conselhos, se durante os dias de paz e de ventura fortifica o homem por meio da tristeza, na dor ao contrário é de uma bondade inefável.

Nem uma fibra palpita no corpo humano, nem uma pulsação abala o coração, nem um soluço arqueja num peito quebrado pelo sofrimento, que não ache nela um eco, uma voz que responda.

Nesse grande livro da fé e da esperança, neste sublime diálogo entre Deus e o homem, todas as lágrimas têm uma palavra, todos os gemidos têm uma frase, todas as dores uma prece, todos os infortúnios uma história.

A vida humana se resume na religião; nela se acha a essência de todos os grandes sentimentos do homem e de todas as grandes coisas do mundo.

Tem a severidade e o respeito que inspira a paternidade e ao mesmo tempo todos os zelos da maternidade. Aconselha como um pai, quando fala pelos lábios do sacerdote; é a mãe que se multiplica para seus filhos, quando abriga no seu seio todos os infelizes.

Mas, quando se folheia este livro da vida, e que se chega à última página ___ à morte ___ quando a alma, em face do nada sente-se tomada desta grande e assombrosa ameaça do completo aniquilamento, é que se sente quanto há de consolador na religião.

Entre as sombras da dúvida, entre o vago do infinito, a eternidade surge para nossa alma como uma dessas estrelas furtivas que brilham entre o cris negro da tempestade, e que guiam o nauta perdido na vasta amplidão dos mares.

Se quereis ler a legenda desta crença sublime de todos os povos e de todos os tempos, ide no dia 2 de novembro, dia que a igreja destinou à comemoração dos finados, fazer uma visita aos nossos cemitérios.

Haveis de sentir calar-vos dentro d’alma um eflúvio consolador, quando virdes toda aquela piedosa romaria que percorre as aléias formadas pelos túmulos, relendo entre pranto as letras de um epitáfio singelo, e espargindo sobre a lousa algumas flores misturadas de lágrimas e preces.

Este aspecto de uma multidão forte e cheia de vida prostrada ante as cinzas de alguns mortos não exprime alguma coisa de misterioso, alguma coisa de incompreensível, que decerto se prende a esse religioso culto dos túmulos sempre venerado por todos os povos?

Para que o homem venha assim cada ano avivar uma dor quase extinta e ver refletir-se na lousa da campa os transes acerbos de uma triste provança já acalmada pelo correr dos tempos, é necessário a força irresistível da verdade revelada pelos impulsos do coração.

Sem isto, não é possível compreender o respeito que votamos aos mortos, nem essa melancólica poesia da saudade que inspira a religião dos túmulos.

Se nestas campas que há anos se abriram para receber um corpo houvesse apenas um pouco de terra e alguns vermes, o homem que se prostrasse em face delas não cometeria uma profanação? Ajoelhando à beira da lousa e sangrando um culto ao pó, não rebaixaríamos a dignidade de um ser moral, escravizando a razão à matéria, a vida ao nada? Se outra coisa mais forte do que a recordação não nos impelisse a estes espetáculos de luto e de tristeza, não daríamos uma mesquinha idéia da natureza humana?

É verdade; mas os restos dos mortos encerram de envolta com as recordações deste mundo as esperanças de outra vida. É por isso que no meio das preces, e das lágrimas e flores que vem depor ao pé da campa a mão amiga, a cruz singela se ergue como símbolo da fé e da religião.

Os nossos cemitérios, criados há bem pouco tempo, ainda não apresentam este aspecto grave e imponente que ressumbra ordinariamente no campo dos mortos.

Ainda não há aí essas longas sombrias alamedas de árvores, essas bancadas de relva onde se destaca uma lousa branca, nem esses ciprestes e chorões plantados à beira de uma sepultura simbolizando no seu aspecto triste e melancólico a oração que se eleva ao céu, ou as lágrimas que se desfiam a tombar sobre a terra.

A nudez do campo quase despido de árvores, o desabrigo das lousas sobre cujas pedras brancas o sol bate constantemente, punge o coração, e como que torna acre e acerba aquela mágoa da saudade, que a religião repassa de tanta doçura e de tanto alívio. Naquelas quadras descampadas a morte não tem sombra, a dor não tem ecos e a religião não tem mistérios.

Entretanto este ano, cumpre dizer em honra do espírito religioso da nossa população, empregaram-se todos os esforços para fazer desaparecer aquele aspecto de nudez, e a romaria foi talvez mais numerosa do que nos anos anteriores.

O cemitério de São João Batista sobretudo estava preparado da melhor maneira possível; e, além do arranjo devido aos esforços do administrador, podia-se admirar alguns monumentos funerários de uma singela e de um gosto perfeito.

Sinto que não me seja possível copiar aqui algumas inscrições, cheias dessa simplicidade e dessa unção que respira uma dor verdadeiramente sentida; mas vós que lá fostes deveis tê-la lido, embora uma mão desconhecida não houvesse aí gravado aquele epitáfio antigo: Sta, viator!


Lacrimae Rerum: sunt lacrimae rerum: Existem as lágrimas das coisas. Expressão de Virgílio (Eneida, I).
Memento quia pulvis es!: de “ memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”: Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás. Palavras pronunciadas pelo sacerdote enquanto impõe cinza na cabeça de cada fiel, na quarta-feira de cinzas.
Sublimi feriam sidera vertice: Horácio, primeiro livro das Odes: Quod si me lyricis vatibus inseres, sublimi feriam sidera vértice: Mas se você vai me inserir entre os poetas líricos, a altura do topo das estrelas, eu vou fazer uma.
Vanitas vanitatum et omnia vanitas! Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!
Sta, viator! : D. 0. M. Sta Viator Sepulchrum ne tangito: “Não toque no Traveler, é o sepulcro de D. 0. M.: Levanta-te”; Treveler= viajante.

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Rascunho, um dedo na ferida

Rascunho, um dedo na ferida

 lopes al’Cançado de la rocha, o Cristiano

Lápis_2

O lápis __ a lapiseira é a sua versão mais aperfeiçoada e conveniente __ é um estilete, um instrumento cilíndrico de duas camadas. Na camada inferior está o material chamado mina, que produz marcas com grafita. A grafita vem misturada com argila fina, cera e outras substâncias. A parte exterior do lápis consiste num invólucro de madeira. Através desse instrumento registra-se todo um manancial de traços, códigos, signos e sinais.

Para gravar imagens, símbolos, letras e números nas superfícies (papeis, madeiras) com o lápis realizamos semi perfuração, isto é, perfuração rasa, fácil de ser cicatrizada, apagada, corrigida.

Mesmo em tempos digitais e de telas sensíveis ao toque, o lápis __ ou lapiseira para os mais elegantes __ é o instrumento portátil mais apropriado para o rascunho. Ele e sua companheira, a borracha, são mais econômicos e menos tóxicos do que o outro casal: caneta e corretor líquido ou de fita. O número de lápis vendidos a cada ano é aproximadamente o dobro do de todos os outros instrumentos para escrita e desenho.

Muito comum entre os aprendizes, escriturários, redatores, desenhistas, entre os que necessitam e valorizam o esboço é o lápis. Aliás, esboçar é prática frequente dos que se consideram eternos aprendizes e dos que resistem à “ditadura do agora é para já”, velocidade ilusória e degradante.

Quanto mais se emprega tempo e cuidado num texto, num desenho, num trabalho gráfico, mais satisfação ele nos traz. Porque o labor com zelo se torna mais relevante, menos passageiro. É inegável que a rapidez, sobretudo das coisas boas, o imediatismo, a exigência veloz e impensada torna a vida menos saborosa.

O refazer nos dá ânimo à vida. No entanto, não podemos nos esquecer do lado precário da sobrevivência que nos faz agir, muitas vezes, com certa urgência. Mas urgência e emergência são sempre circunstanciais…

Continuemos pela Wikipedia com informações interessantíssimas sobre essa nossa antiga e atual tecnologia que é o lápis:

“O precursor mais remoto do lápis talvez seja identificado como sendo as varas queimadas cujas pontas foram utilizadas pelos primitivos hominídeos para gravar inscrições nas cavernas, as famosas pinturas rupestres. Há cerca de 3.500 anos, na sociedade egípcia, as ‘varas’ de rabiscar evoluíram para pequenos pinceis capazes de produzir linhas finas e escuras nas superfícies.

Há cerca de 1.500 anos, os gregos e romanos perceberam que estiletes metálicos serviam igualmente bem ou mesmo melhor ao propósito de registrar dados em superfícies. Por suas qualidades, o chumbo passou a ser amplamente empregado com tal fim.

O verdadeiro antepassado do lápis talvez seja o seu equivalente romano, o stylus; que consistia num pedaço de metal fino, normalmente chumbo revestido com alguma proteção (usualmente madeira) para evitar que os dedos se sujassem. O stylus era utilizados para escreverem-se os papiros.

Os primeiros lápis livres de chumbo datam do século XVI. Neste século foi descoberta, perto de BorrowdaleCúmbriaInglaterra, uma grande jazida de um material bastante puro e sólido, hoje reconhecido como o estado alotrópico mais comum do carbono, a grafite. À época nomeava-se tal elemento ‘chumbo negro’ em alusão direta ao elemento concorrente e suas aplicações; e os habitantes locais descobriram rapidamente que o “chumbo negro” era muito útil para marcarem-se as ovelhas. Atando-se a grafite a varas de madeira, rapidamente surgiram os lápis rústicos, já livres de chumbo e parecidos aos que conhecemos hoje.” […]

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Resposta de Quintino Bocayuva.

Resposta de Quintino Bocayuva.

Resposta_imagem_2-1

Machado de Assis. ___ Respondo á tua carta. Pouco preciso dizer-te. Fazes bem em dar ao prelo os teus primeiros ensaios dramaticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma reponsabilidade para com o publico. E o publico tem o direito de ser exigente comtigo. És moço, e foste dotado pela Providencia com um bello talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéa é uma força. Inoculal-a no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da regeneração moral. O homem que se civiliza, christianisa-se. Quem se illustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumia a consciencia. Quem aspira a ser grande, não póde deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza d’este mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, n’essa obra de cultivo litterario ha uma obra de edificação moral. Das muitas e variadas formas litterarias que existem e que se prestam ao conseguimento d’esse fim, escolheste a fórma dramatica. Acertaste. O drama é a fórma mais popular, a que mais recursos possue para actuar sobre o espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre seu coração. ___ Quando assim me exprimo, é claro que me refiro ás tuas comedias, acceitando-as como ellas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma gymnastica de estylo. ___ A minha franqueza e a lealdade que devo á estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em publico o que já te disse em particular. As tuas duas comedias, modeladas ao gosto dos proverbios francezes, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espirito, a profusa riqueza do teu estylo. Não inspiram nada mais do que sympathia e consideração por um talento que se amaneira a todas as fórmas da cancepção. ___ Como lhes falta a idéa, falta-lhes a base. São belas porque são bem escriptas. São valiosas, como artefactos litterarios, mas até onde a minha vaidosa presumpção critica póde ser tolerada, devo declarar-te que ellas são frias e insensiveis, como todo sujeito sem alma. ___ Debaixo d’este ponto de vista, respondendo a uma interrogação directa que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresental-as ao publico sobre a rampa da scena do que ha em offerecel-as á leitura calma e reflectida. O que no theatro podia servir de obstaculo á apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comedias são para serem lidas e não representadas. Como ellas são um brinco do espirito, podem distrahir o espirito. Como não têm coração, não podem pretender sensibilizar a ninguem. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom criterio comsigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os auctores. O que desejo, o que te peço, é que apresentes n’esse mesmo genero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te á grande pintura. ___ Posso garantir-te que conquistarás applausos mais convencidos e mais duradouros. ___ Em todo o caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te á critica de todos, para que possas dirigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretencioso, colherás o fructo são da tua modestia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em sympathia toda a consideração que me impõe a tua joven e vigorosa intelligencia. ___ Teu ___ Q. Bocayuva.

W.M. Jackson Inc. Editores: Rio de Janeiro, São Paulo e Pôrto Alegre ___ 1947 ____ .

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Correspondência: de Machado de Assis A Quintino Bocayuva

Correspondência:

de Machado de Assis a Quintino Bocayuva

Quintino e machado-1

Meu amigo. ___ Vou publicar as minhas duas comedias de estréa (1); e não quero fazel-o sem o conselho de tua competência. ___ Já uma crítica benevola e carinhosa, em que tomaste parte, consagrou a estas duas composições palavras de louvor e animação. ___ Sou immensamente reconhecido, por tal, aos meus colegas da imprensa. ___ Mas o que recebeu na scena o baptismo do applauso póde sem inconveniente, ser trasladado para o papel? A diferença entre os dous meios de publicação não modifica o juízo, não altera o valor da obra? ___ É para a solução d’estas duvidas que recorro á sua autoridade litteraria. ___ O juízo da imprensa via n’estas duas comedias__ simples tentativas de autor timido e receoso. Se a minha affirmação  não envolve suspeitas de vaidade disfarçada e mal cabida, declaro que nenhuma outra ambição levo n’esses trabalhos. Tenho o theatro por cousa mais séria e as minhas forças por cousa muito insufficiente; penso que as qualidades necessarias ao auctor dramatico desenvolvem-se e apuram-se com o trabalho; cuido que é melhor tactear para achar; é o que procurei e procuro fazer. ___ Caminhar d’estes simples grupos de scenas á comedia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento pratico das condições do genero ___ eis uma ambição própria de animo juvenil e que eu tenho a immodestia de confessar. __ E tão certo estou da magnitude da conquista que me não dissimulo o longo estadio que ha percorrer para alcançal-a. E mais. Tão difícil me parece este genero litterario que, sob as difficuldades apparentes, se me afigura que outras haverá, menos superaveis e tão subtis, que ainda as não posso ver. ___Até onde vae a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança? Eis o que espero saber de ti. ___ E dirijo-me a ti, entre outras razões, por mais duas, que me parecem excellentes: razão de estima litteraria e razão de estima pessoal. Em respeito á tua modéstia, calo o que te devo de admiração e reconhecimento. ___ O que nos honra, a mim e a ti, é o que a tua imparcialidade suspeita. Serás justo e eu docil; terás ainda por isso o meu reconhecimento; e eu escapo a esta terrivel sentença de um escriptor: Les amitiés, qui ne résistent pas à la franchise, valent-elles um regret? ___ Teu amigo e colega __ Machado de Assis.


(1) O caminho da porta e O Protocollo, comédias publicadas em 1863.

W.M Jackson Inc. Editores, Porto Alegre (1947).

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Casa do homem – poema

CASA DO HOMEM

 lopes al’Cançado rocha, o Cristiano

Casa_do_mundo

Todo santo dia nalguma hora me levanto

Não sei se muito tarde ou muito cedo

Pois nem lua nem sol sequer desponta

Nem um galo errado nos avisa com seu canto.

Planto os pés no chão frio do meu quarto

Miro o corredor, crio coragem e ando

Urino, agora, com muito alívio no banheiro

Abro os olhos, penteio-me, lavo a boca e o rosto.

Sorrio-me de frente ao espelho.

Passo pela cozinha e pelo serviço

Já da porta para o quintal avisto meu poço

Aproximo, puxo a tampa e inclino-me com a cabeça

E sopro bastante. Tão leve e suave sôpro

Que apenas a mim mesmo ouço.

Uma vez ou outra; muito de vez em quando

Um eco lá do fundo me responde:

“Por Deus e por amor… não me esqueça,

Socorro! ”

contato: lopeslarocha@gmail.com

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Poemas e Canções

__Poemas_e_Canções_2001_e_2017

__Capa_Poemas_e_Canções

ÍNDICE

Prefácio, 03

Sobre o autor, 04

Dedicatórias 1ª edição, 05

Notas do autor e agradecimentos 1ª edição, 06

Poemas

Herança & Arteiros, 07

Santa Luzia de todo o mundo, 08

Da região metropolitana, 08

Resposta, 09

Homemgasto, 10

“Psicológico”, 10

Canção para crise, 11

Etária com ombro, 11

Violoncelo, 12

Sem título e Ficar, 13

2º plano, 14

Meus poemas e canção poesia, 15

Metalinguística, 16

Canções

Nos sinais e Temorte (na sua área), 18

Zumzumzum zimzimzim e Ô Bach, 19

Não há um violão e Avião de Luxo, 20

Do apá virado e Fili, 21

Culpa e Narua, 22

Cata-vento, 23

Neanderthal, 24

 Notas, 25

Créditos 1º edição

Informações 2ª Edição, canais e contato, 25

 

Prefácio

Quando chegamos ao ano de 2000, eu colecionava poemas curtos motivados pelas aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, bem como pela leitura de nossos poetas modernistas. Apanhei um acerto de contas dum emprego e resolvi publicar parte dos escritos no ano seguinte. Em termos de suporte (formato) escolhi o livro com cd, pois aproveitei para distribuir doze faixas de canções gravadas com voz e violão. Era novidade oferecer ao público conteúdos em livro e compact disc audio.

Em brochura grampeada, com sobras de papel da gráfica, de corte torto, capa feia e improvisada, saiu uma edição tôsca e pobre, não só pelo fato de ser independente e autofinanciada, mas também por incompetência de todos nós, autor-editor, diagramador, gráfica impressora etc.

A intenção era demonstrar a importância com que sempre tratei a Literatura e expor um estilo individual eclético, no intuito de agradar o maior número possível de leitores e ouvintes. Os poemas foram divididos em quatro partes: a) memória pessoal; b) temas políticos e socioeconômicos; c) experiências com namoros e d) metalinguística. Quanto às canções, selecionei as que eu julgava serem as melhores na época.

Quis modéstia no título e pus “Poemas e Canções”, pois admitia minha imaturidade pessoal e artística. Agora nessa segunda distribuição há um novo intuito: retomar esse marco de minha trajetória.

Obra de jovem estreante, percebe-se marcante cadência típica do letrista, rimas imperfeitas, versos livres a procura de certa harmonia assimétrica; um tom de fala ao mesmo tempo memorialístico e confessional. Artes e pecados da infância, paixões juvenis com influência de Adelino Moreira, o espaço semi-urbano, os sonhos e as aflições próprias dos que trabalham em reflexão e contemplação em meio as urgências da vida, das tragédias humanas e sociais. Veremos esses últimos cenários, por exemplo, em “psicológico” (página 10), “temorte (na sua área) ” e “Nos sinais” (página 18).

Nas duas últimas canções (Cata-vento e Neandertlhal) teremos canto à liberdade e um lamentoso apelo.  É que antes de nos apresentarmos como escritores, antes mesmo de declararmos a primeira estrofe, àquela época já percebíamos o desprezo e a indiferença para com os novatos. No geral, quando se falava em arte, só se pensava em reconhecimento, exposição, fama, carreira profissional e vida pública luxuosa. Esquecia-se dos artistas como exemplos à sociedade, como cidadãos influentes na ética e moral de um povo. Hoje, porém, sabemos que a fria educação pela pedra de um João Cabral de Mello Neto norteou o senso de um Ministro da Fazenda Antônio Palocci; e que aquele Glauber Rocha animou o coração e a mente dum poeta e Presidente da República José Sarney. Um simples estribilho pode, na sua devida proporção, influir na história de várias gerações.

Hoje o desprezo, a indiferença e o ato de recusar contribuições literárias e artísticas em geral são efeitos de várias causas, e dentre elas podemos citar o declínio do ensino e aprendizado, o desamor pelo idioma, a imposição do entretenimento e do lazer prazeroso, a anulação da atividade crítica e a intensificação das degradantes guerrilhas culturais e espirituais. Vejo as forças criativas perderem sua fecundidade e segregarem-se em ilhas tribais fervidas por conspirações, estratégias, táticas, agendas e atitudes que, às vezes, culminam em histerias coletivistas ou até em campanhas de reivindicações hostis e ódio. Essas vias obscuras em muito nos entristecem.

Os critérios norteadores do fazer literário deixaram de ser a beleza, o amadurecimento da escrita, a riqueza de conteúdo, a força das expressões, a hombridade ética e estética do autor. Vieses ideológicos, de crenças ou descrenças são fatores determinantes para fazer repercutir ou não a voz dum pobre sujeito. Serão forças suficientes para calar algum filho de Deus capaz apenas de honrar seus próprios ombros? Só Ele pode nos responder, e a resposta virá certamente no Tempo Dele.

A presente reedição, com prefácio e informações complementares confirma minha escolha desde o início: o caminho da arte livre, consciente, independente, sóbria, responsável, baseada na razão, no sentimento e na compaixão. Esse pequeno percurso me impulsiona e me alimenta na missão de alcançar o máximo de pessoas dispostas a apreciarem Língua Portuguesa do Brasil, Literatura Brasileira, poesia inspirada e letra de música.

Belo Horizonte, 07 de julho de 2017.

Sobre o autor

Filho de José Maria Rocha, bombeiro hidráulico e Dulce Francisca Lopes Cançado, do lar, nasci em 07 de julho de 1977 em Belo Horizonte. Meus pais, nessa época, moravam no bairro de Santa Efigênia. Em dezembro de 1981, movidos pelo sonho da casa própria, mudamos para o Conjunto Habitacional de Interesse Social (Cohab-MG), mais conhecido como Conj. Cristina, próximo ao bairro São Benedito, na cidade de Santa Luzia.

Estudei o primário na E.E Jacinta Enéas Orzil, onde iniciei meus primeiros escritos, estimulado pelas aulas de comunicação e por canções que ouvia na voz de minha mãe. As demais séries do primeiro e segundo graus cursei na E. E Raul Teixeira da Costa Sobrinho já compondo uma variedade de letras, poemas e demonstrando notório interesse por nossa Literatura Brasileira. Dentre as funções que exerci estão: vendedor ambulante, balconista, empacotador de compras em supermercado, repositor, office-boy, auxiliar de escritório e leiturista em relógios medidores de energia elétrica.

A partir de 2002 trabalhei como balconista novamente, auxiliar de tesouraria, carteiro, professor de violão, músico de bar, auxiliar de serviços gerais. Colaborei voluntariamente em duas associações culturais luzienses. Idealizei e concretizei dois periódicos literários: Cabeça de Papel (2002) e Pingo de Ouvido (2015). Em 2006 integrei o curso de crisma do método da Catequese Narrativa, na comunidade Santo Inácio entre os cristinenses; crismei, batizei e, sendo já cristão, firmei publicamente minha Fé Católica. Estudei um período de administração em 2007. Dediquei-me em dois cursos técnicos e vários outros profissionalizantes no período de 2009 a 2014. Apresentei-me em alguns festivais de música, mostras e recitais. Publiquei dois álbuns musicais nas plataformas Onerpm e Youtube. Até meados da década de 2000 almejava profissionalizar-me inteiramente nas atividades artísticas, até que em 2005 decidi por me tornar, antes de qualquer desejo profissionalizante, um artista de testemunho e obra. Trabalho, atualmente, como assistente administrativo e estudo várias disciplinas de forma autônoma. Conquistei amores e desafetos, como é natural com todo ser humano. Ganhei um filho amoroso. Nos últimos anos venho me reaproximando das origens familiares, curtindo tias-avós, tios, primos, primas, padrinho, madrinha. Ouvindo deliciosas histórias como nunca. Ganhei também duas afilhadas, quatro cachorrinhas lindas e a família só lá vai crescendo…

Hoje, sob as mais variadas influências, tanto da arte como das diversas convivências… “ao contrário dos que escrevem e rasgam, mando meu timbre não por vaidade; é para desafiar esse instrumento de infinitas faces, comprometedor e bambo que é a palavra. Contudo, lembro que não deixo apenas palavras, lanço também a minha unidade e um pedacinho do meu universo. Quando me ponho a liberar o que me borbulha aqui dentro, a letra e o som são os códigos de que disponho… um violão de estudo e u’a máquina de escrever, isso é tudo, tudo que eu tenho. Dependendo do estado em que me encontro, eles se entrelaçam ou pouco se aproximam. Cabe a mim então a paciência… esperar para ver ‘quem’ é que vai ficar só e ‘quem’ é que vai ficar junto. Isto é, a Inspiração Divina é quem determina se o texto permanece poema lírico ou se converte em letra musical, canção”.

Eis, junto dos poemas, algumas composições do período de 1997 a 2001, quando passei a compor com maior frequência e a realizar estudos autônomos em música.

Santa Luzia, 09 a 15 de maio de 2001.

Com informações complementares em 07 de julho de 2017.

a toda minha família

e amigos

a vin car lag, “cum panis

inseparável nessa

trilha

a Sebastião Villas Boas

por todo apoio

e pelas primeiras afinações

(em memória)

[2001].

 

“… numa transa com os nervos, a música instigando o ser e dando-lhe a insistência para falar de si, de seu meio, de seus atos.

Mais pela vontade de desengavetar, registrar e fazer repercutir. Já que todos nós sabemos de nossas dificuldades – e não somente no plano artístico –, deixo aqui aos leitores e ouvintes uma enorme consideração. ”

Parte_1

Agradeço a:

Deus, Mamãe, Alexandre (irmão), todos os meus professores, todas as pessoas que trabalharam comigo, meus amigos, colegas músicos e artistas, apoiadores e apreciadores. Flávio Aguiari (em especial) e a uma pessoa que, sem ela, esse trabalho não se concretizaria: Raquel Rezende.

[2001].

POEMAS

Como quem herda não furta

herdei de meus pais

coração e alma

De minhas mães

valentia e vigor

e isto me basta

me farta.

[1994], herança

Arteiros

Posso ovi de longe

ela cantando meu nome

Mamãe t’chamando

arruma essa franja

os canto da boca

tá sujo de manga

óia lá

não vai falá da chácara

nem do tiro de chumbim.

Dentre minhas espadas

não, não tive espadas

tampouco revólveres

E fui ladrão

de um brinco

e um litro de leite

Não possuía spray

mas fui vândalo

em minha escola

Dividi uma bola

um lance

sonhei como todos

hoje sou poeta e estudante.

[1999].

Santa Luzia de todo o mundo

Beco do Brasil,

da África.

Rua Japão, Israel,

Rússia.

Avenida States,

Das Indústrias.

Estrada velha asfaltada

Barrenta cheirando à cachaça

Trem trilho

mel milho

estribo, extravagante

esterco

Trem trilho

mel milho

casas casarões

barracos.

[2000].

Da região metropolitana

Coitada da gravata

que para meu pescoço não foi párea

conheço enxada mas nunca usei

e não me lembro de ter decepado capim

Tenho uma máquina sim

Gosto de cavalos, porém

tenho medo de montar

de gado nada sei mas,

quando trêbado

puxo os rabo das vaca

E a boca da calça

anda borrada de batom vermelho

das poças de água

Coitada da gravata

que para meu pescoço não foi párea.

Resposta

Ninguém saberá

sobre os quilômetros que ando

do peso que carrego

dos quilos que perco

Os números?

Sei apenas lê-los

Perdão se gesto

palavra

espaço

tempo

ação

não meço

Deixo de lado

até mesmo o sucesso

mas o espírito-paixão

não desprezo.

Parte_2

Homemgasto

Como seria o sentido da vida

para aquele homem que me oferece café?

aquele homem que mata minha sede com sua água

Agachado ali na rampa da entrada

misturando gíria com dialetos da roça

Qual é, para ele, o sentido da música

que vara o portão e cadencia meus passos?

O que pensa ele, ao olhar-me com os olhos

de minha gente, sobre o trabalho que faço?

Posso é somente imaginar

o que o trabalho fez com a vida

desse Homemgasto

“Psicológico”

O frio é psicológico

assim como é da psicologia

a alergia de lã

e a dor que a medicina

estampa no seu nome

A fome e a seca

são psicológicos quanto o medo

É psicológico o atrito

entre o religioso e o cientista

o refúgio de Kosovo[1]

a corrida armamentista

a ignorância do povo

os alunos assassinos

e todos os versos acima.

Canção para crise

As bolsas cheias de nenê e xistose

A miséria e a corda no pescoço do pai

Quem promete a melhora

tem moeda no bolso

E nós? Misericórdia Senhor!

Misericórdia de nós!

Batendo na bunda de quem passa

Quem passa leva um tapa no bolso detrás

É pobre, é pobre também!

Vá roubar, vagabundo, de quem tem

O bolso cheio de poesia em pó

A viola atira som que não mata ninguém

Boca manda palavras que não saram

Sarin: paralisia da massa.

Etária com ombro

Olha lá a ciência presumindo as batidas

durante a vida, uma vida qualquer.

Pegada a cambalear, fungar entrecortado

Soando em seu terreno, longe da teconoavançada

Tem sangue vermelho, corpo sem orifícios de borracha,

sem canudos – enfermo. Tem sete vidas.

Nasce e renasce das cinzas mais rápido do que humano

do que o tempo ou qualquer ação física,

Mistura-se com a terra

Fica pardo, forte, rico

Encorpado de raças

civilizações e ritos.

Prossegue…

Socorre-se de água, comida,

descanso e abrigo

Combate: famintos tigres

Suporta: carregadas nuvens

Degusta: delicadamente

Súbitos lagos límpidos.[2]

Parte_3

Violoncelo

Som de berrante rouco

Urro de boi quase morto

Quando o tocador acelera

arrepio

Belo brio!

Revanche!

Cai a velocidade

volto a amar a derrota

Corto a noite em versos

Morro!

Pela manhã é violão

à tarde,

violoncelo.

 

Sem título

o poema que plantei

em seu nome

ela não me devolve mesmo

muito eu gostaria

de extrair da mente

uma estrofe

…mas a memória salva-me um verso:

“amar em pé de igualdade.”

[março de 2001].

Ficar

Devo a você

letras de ouro,

devido ao poder

que arrumei nos dedos

ao tocar seus cachos dourados.

Contudo, ofereço-lhe

estas perplexas aqui,

pois bobelado fiquei

da surpresa de lhe conhecer

assim… tão pouco e de súbito

Meus olhos apuram

estas linhas

torcendo por um

daqueles nossos

encontros fortuitos.

Segundo Plano

Sonhei os mil elogios

que saem dos seus olhos

e com o brilho

que parte de seu sorriso.

Seus lindos pés maternos

ao suportarem dois corpos,

de longe me fascinam

De perto?

eliminam todo o nosso primeiro plano.

Ai! Vontade de usar de cafajeste

em vez de força-bruta-coração!

Então surgem retas, círculos

quase que em forma de coraçõezinhos.

Rolam gestos, palavras surpresas,

possíveis trocas de objetos

e mais reciprocidades

… e aí eu paro por aqui,

Pois já não mais consigo

expressar-me através de

tais códigos.

Parte_4

Meus poemas

Simples poemas

Tortos e destinados

ao matadouro

Que nasçam meus poemas

Que nasçam

Esse é o único voto

de um orgulhoso pai

semi-analfabeto.

[novembro de 1999].

Canção-poesia

O gosto da lágrima nasal,

o sal, a articulação da língua,

a insônia estão aqui na minha poesia

Será lida como anúncio de jornal

Única, sincera e fiel

faz soar falsos “que legal!”

A noite, o dia, a madrugada

num mês nasce pelo menos

um verso

Sorte é que tenho cabeça,

escola, tinta, estante,

papel-pautado-moeda suporte.

O gosto da lágrima nasal,

o sal, a articulação dos sons,

a insônia estão aqui na minha canção

Será ouvida como barulho infernal

Única, sincera e fiel

faz soar falsos “que legal!”

A noite, o dia, a madrugada

num mês nasce pelo menos

uma melodia

Sorte é que tenho cabeça,

escola, tinta, estante,

papel-pautado-moeda suporte.

ESTUDO DACTILOGRAFÔNICO[3]

vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô  vê sô   verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  verso  pois é pois é  pois é pois é  pois é pois é  pois é pois é  pois é pois é  poisé  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia  poesia po

Babacanetababa

Babapelomenos

Babacanetababa

SoutristepremiadoDesgraçadofeliz

                                             Poetizo

[4]

Pentagrama

Sobre poesia

aprendi com um amigo-vizinho

conversar fiado sozinho…

Canções

CANÇÕES

Nos sinais

Deus branco nu olhando por uma criança negra

e uma branca fugindo de um demônio vestido de capa preta

Tv a teleguiar os olhos negros de uma índia

e uma daquelas amarelas trocando um chip

Uma ele, uma ela

de barriga cheia esperando mais crianças

sem barriga, sem pança

das que cansam de esperar a hora

das que jogam pedra, fumam pedra, jogam bola, dão bola

cheiram à fralda, cheiram coca, cola

das que correm, dormem, morrem, pedem, roubam

pé-de-cana, mão-de-caneca, pé-de-erva

das que não pedem para nascer

Maria que não queria família com filhos filhas

ouvindo: quem não crer, não quer criar, que não dê cria

Eu vi nos sinais sem tempos verbais

Quem é que vai relar cabeça coração e coragem?

cabeça coração e coragem.

Quem é que vai acionar cabeça coração e coragem?

cabeça coração e coragem.

Temorte (na sua área)

Mataram um cara na sua área, meu irmão

E eu nem sei bem se vi ou se ouvi falar

Só sei que a cena tá aqui no meu inculcar

O revólver cuspindo, a bala entrando

O corpo caindo, meu xará

O ferro cuspindo, a azeitona entrando

O presunto caindo, meu xará

E antes da polícia, a família da vítima a chegar

O chôro da mãe, a careta do pai

Desespero da irmã do rapaz

E isso num dia cinzento

Chapiscado com chuvisco

E o povo a comprar pro Natal

Não é época de se indignar

Além do mais, também, aliás

Isso tudo é “normal”.

 

Zumzumzum Zimzimzim[5]

Toda noite pousa um mosquitinho aqui

Em cima da minha folha e dança

Sobre a pauta, breca na pausa

Valsa em volta de mim

Zumzumzum zimzimzim

Zumzumzum zimzimzim

Ouve-me até o fim

Como quem pensa

Entende o meu lance

Compreende a maior

A menor frequência

De todos os ângulos:

Tarraxa de baixo

De cima do braço

Voando, montado

A cavalete

Oh! Deus, vigie essa criatura minúscula

Dá a todas as vidas o imenso prazer da música.

 

Ô Bach

Ô Bach! Eu vou roubar tuas notas

Quando baixares em mim

Mozart! O teu olhar agora é meu

Os dois acordes que eu tenho aqui

São repetidos e sempre se repetirão

Porque a música, Bach

Porque a música, Mozart

É uma mentira!

Ô Bach!

Pede a Deus que me ouça!

E mande um raio na caixa de som

Mozart!

Manda um anjo cortar minas mãos!

Porque o músico, Bach

Porque o músico, Mozart

É uma mentira!

Me tira, me tira, me tira daqui!

Todas as notas são repetidas, todos os textos…

Todas as frases e melodias, todos os caprichos…

Todos os ritmos e arranjos, todos os trechos…

 

 

Não há um violão

Não, não há um violão, não há

Que substitua u’a mulher que saiba amar

Não, não há um violão, não há

Que substitua u’a mulher

Amei e quando desamei

Corri pr’esse braço só

Compensação: uma voz polifônica

E muito mais polida que meu coração

Confesso sim

Não converso sozinho não

Mas não há… volto ao refrão

Não, não há um violão, não há

Que substitua u’a mulher que saiba amar

Não, não há um violão, não há

Que substitua u’a mulher.

Avião de luxo

Aquele avião de guerra que voava

Sobre a Rua Ituverava, procurava

U’a mulher que era faxineira dum

Supermercado bacana

Uma fita adesiva serviu-lhe de cinturão

Para sair carregada de batom, shampoo

Creme rinse e creme para as mãos

Na meia soquete balas e chicletes

Para um irmão mais novo

Em casa ela só tem arroz e feijão

Óleo e macarrão, manteiga e pão murcho

Ainda há quem diga que o que ela queria era luxo

Pois aquele avião de luxo que voava

Sobre a Rua Ituverava…

Ele vai achá-la lá na Praça Sete

Ela vai picá-lo lo todo no canivete.

 

Do apá virado

Me disseram que você já passara do ponto

Eu fui com o trigo e você voltou com o pão

Eu fingi amigo e ganhei um beijo na escuridão

Já ouvi falar, já ouvi falar

Da sua fama na Rua João de Sá

Já ouvi falar da sua fama

Na Avenida Joaquim

Agora diga:

Se realmente tem algum amor por mim

Se realmente tem algum amor por mim.

Fili

Dispare o tiro, toque o sino

Com licença tio, com licença tia

Mamãe postiça me chama

Dispersando canja no ar

Ar livre, ar leve, me livre, me leve

Me faça pole position

Lá fora se a fila não dobra a esquina

É por sorteio

Deputado reivindica

Saúde internada, ensino em tenda

Clientes da reforma no PROCON

Agricultor descadastrado

Clim’eaça a safra e as nuvens que pas’são

De famintos gafanhotos

Eu digo põe, põe, pois…

fili mãe tem cartão credi-canja master-sopa[6]

na mão

Até mãe, tenho de ir embora

Amanhã é dia de Vietnã

Já deu a minha hora, a do meu país eu não sei

A mãe terra gera seus filhos e é morta

Filhos sem mãe, órfãos de guerra.

 

Culpa

Bum! Que bomba

Trá! Que estrago

Ai! Que dor

Injeção de tais palavras

Fonadas no ouvido

Algemou-me, debruçou-me na mesa

Como explicar pro lápis

Preso em margens, perdido em linhas

Desapontado, pálido e incolor

Bum! Que bomba

Trá! Que estrago

Ai! Que dor

Quando fecha, incha e seca

Quando abre, rega e aflora

Se se zanga, embica

Bum! Que bomba

Trá! Que estrago

Ai! Que dor

Como dizer dos meus ditos

Pros escritos que escrevi pra ti?

Narua

Tamba tambor, vira violão

Cava cavaco, arrota trovão!

Na rua eu posso cantar

Na rua eu posso dançar

Na rua eu posso namorar

Na rua eu posso beijar

Porque a rua, a rua não é sua!

É o puro caminho de quem quer se expressar

Um mar de quarteirões onde navegam guardas e vilões

E seu filho beco, bequim; e seu filho corgo, corguim

Conhece? Não, não recebem sermões

A rua, minha senhora, não é moça

Moça não, é dona!

A rua, meu senhor, é rapaz que não precisa de zona

Na rua eu posso cantar

Na rua eu posso dançar

Na rua eu posso reclamar

Na rua eu posso esbravejar

Porque a rua, a rua não é sua!

A rua, a ruinha, a ruaça

A rua, a ruinha, arruaça

Tamba tambor, vira violão

Cava cavaco, cospe vulcão!

Cata-vento[7]

É que sou pipa, mutuca

Em mãos desconhecidas

Taquara de meio, vareta de enverga

Sou pipa, papagaio

Empinado com linha de aço

Cerol nenhum me corta

Ou rasga minha barbela

Quero me mandar daqui

Ficar perto do sol

Sei que corro o risco

De acabar ao chão, ao chão

Soltar da manivela

Remexer rabiola

Voar e voar

Me embolar nos ventos.

 

 

Neanderthal

Eu quero uma chance, ninguém me dá

Eu quero cantar, dizem que não sei

Cabelo dispara a crescer: animal!

As unhas, perguntam: pra quê?

E o tamanho dos olhos? E da boca?

Lobo mau! Lobo mau!

Meu objeto é mexer

Com sua alma um pouco

Essa é a idéia de cor

Não arrancar seu suor

Nem lhe jogar no forno

Eu quero tocar corações

Me chamam de homem do mau

E meu instrumento de pau

Neanderthal! Neanderthal!

Chega mais

Não pego, não mordo

Sou racional

Carne, osso

Açúcar, fel

Limão e sal

Pode vir

Não tenha medo

Não me faça mito

Sou desse mundo

Tá legal? Tá legal?

Notas

[1] Página 10. Referência ao conflito étnico-cultural entre albaneses e sérvios na região de Kosovo.

[2] Página 12. Estrofe utilizada posteriormente na canção “à espreita da aurora”, disponível em youtube.com/user/Lopesdelarocha.

[3] Página 16. Jogo fônico-formal. Só depois descobri que o Décio Pignatari tem algo parecido composto em 1977. É de fato influência dos concretistas por meio de livros didáticos de Língua e Literatura da década de 1990. Poema composto durante exercícios do curso de datilografia.

[4] Página 16. Grupo fônico da frase no pentagrama. Clave substituída pelo emblema do movimento anarquista. Frase expletiva exprimindo afirmação dúbia.

[5] Página 19. Esta canção inspirou uma outra intitulada “Tatame”, que integra o álbum “à espreita da aurora” de 2014.

[6] Página 21. “Credi-canja Master-Sopa” é expressão criada por Eder Jack de Andrade Silva na fila para servir a merenda da E.E Raul Teixeira da Costa Sobrinho, também em meados dos anos 90.

[7] Página 23. Letra da canção Cata-vento foi musicada e cantada por Flávio Aguiari na primeira edição em 2001.

Créditos

(Poemas e canções)

172.199.289-345 FBN

4124-105-030 E.M.D.A

C.I Nº 408 FBN

Capa e ilustrações 1º edição: Lopes C. de la rocha

Ilustração nº 03: Raquel Rezende

Voz e violão: Lopes C. de la rocha

Voz em ‘Cata-vento’ (Part. Especial): Flávio Aguiari

Gravado do Studio Plug-In em 09 e 15 de maio de 2001

CD reproduzido por Studio R&T

Impressão 1º edição em 2001

Edição independente e autofinanciada

2º Edição em pdf: Pingo de Ouvido. 07/07/17

Santa Luzia & Belo Horizonte, Brasil.

Canais do autor:

www.pingodeouvido.com.br

www.youtube.com/user/Lopesdelarocha

Contato:

lopeslarocha@gmail.com

Este site pertence ao compositor e escritor Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano. Disponibiliza gratuitamente aos internautas experiências de conhecimento e conteúdo para pesquisa. Clique no link a seguir para saber dos serviços que o autor oferece: https://pingodeouvido.com/cristiano-escritor-e-redator/

 

Colo inclinado

Colo inclinado

 Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

IMG_2837Imagem coleção lar. Casa Nacional do Livro, anos 60.

Enfiaram-se no meio de passageiros apertados num daqueles ônibus azuizinhos. No meio de gente de toda cor e caráter seguiram rumo ao centro duma Belo Horizonte. E ponto final. Treze de junho de 2017.

No abrigo rodoviário, quase uma tenda de tão vandalizado, peguei o casal no meio da conversa. Com o colo balançando dizia o homem com voz pulante:

___ Não sei de que feriado é depois d’amanhã…

Olhei-os naturalmente e rompi entregando um alegre bom dia. A mulher estranhou e sorriu. Então intrometi de vez:

___ É de Corpus Christi!

___ Aé…coisa de morto, essas coisas de acender vela, né?

___ Celebramos o sacramento do Corpo de Cristo. Feriado do calendário cristão. Dia santo. Vocês não são cristãos?

Nisso o ônibus veio freando para apanhá-los. Trocaram rapidamente a criança de colo…olhando para trás, arregalada, a mulher respondeu apenas por ela:

___ Eu não.

E partiram para o embarque.

___Vão com Deus __ eu disse.

Ao levantar a perna direita para subir no degrau, o colo inclinou levemente, bateu uma brisa na manta e o rosto da criança se descobriu. Se não era, pareceu-me um menino homem. De olhos fechados, o pequenino abriu-me o semblante e um sorriso. Entendi que havia me respondido:

___Amém. Fique com Deus também.

contato: lopeslarocha@gmail.com


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