Eram muitas vezes | Conto de natal

Eram muitas vezes | Conto de natal

Numa dessas grandes casas, num edifício multifamiliar. Abrigava cerca de meia centena de pessoas. Pouquíssimos idosos. Cada unidade de apartamento com seus sete cômodos, esses ligados por um estreito corredor.

Viviam no prédio por volta de vinte e cinco jesuzinhos, a maioria tendo nascida durante a détente da Guerra Fria. E eis que seus pais, roceiros candidatos a operários e mestres, vinham daquela próxima Belo Horizonte, guiados pela estrela da esperança, da prosperidade e do sonho da casa própria.

Casinhas simples e predinhos idênticos em forma de “H”, variando apenas nas cores dos detalhes e saliências das fachadas, bem modestos e humildes, de chapisco e cacos de tijolos cerâmicos. Falamos desses conjuntinhos habitacionais de baixa renda, a que muitos apelidavam pejorativamente de pombais.

— Qual é mesmo o nome do seu pai? Pensei que era Baltazar. Ele tem cara de Baltazar.

— Que Baltazar, ou? Tá doido?

— Um que eu vi na televisão. Parece com seu pai.

(…)

— Te apresento meu amigo.

— Dá onde que ele veio?

— Da terra do além.

— O quê que ele merece?

— Viver sozinho sem ninguém…

— Credo, essa não teve graça, é paia demais.

— O Silvano inventa umas estranhas e sem graça… quem ia ficar vivendo sozinho sem ninguém no mundo? Só se for o próprio ninguém.

— É… é mesmo.

— Quê que ocê vai ganhar de Natal?

— Pedi uma calça jeans manchada e um Redley, pode ser imitação.

Nenhum dos imperadores – Ronaldo ou Constantino – se importaria com esses jesuizinhos tão comuns, diversos, semelhantes, desiguais e alegrados tão-somente pela esperança de crescer.

Aniversariantes esperando seus presentes com expectativas das mais variadas. Aquelas carinhas sorridentes, sapecas e cheias de espertezas inocentes:

— O Alê vai ganhar uma freestyle

— Aquelas de roda estrelada?

— É, toda freestyle tem roda estrelada…

— Não, nem toda…umas são com roda de raios…

— Pois então, o sol tem raios e é chamado de estrela. Toma distraído!!!

No pátio lateral a conversa, sugerida pelo esquentar dos fornos, era mais saborosa ou não era?

— Minha mãe vai assar dois frangos e comprou quatro garrafas de Del Rey.

— Lá em casa vai ter é chester

— Que isso?

— Quase a mesma coisa que peru.

— Não, meu irmão falou que é um frango mais grandão…

E não poderia faltar alguma rebeldia entre os que adolescem sabiamente:

— Onde o senhorzinho estava, hein Tuca? Tá se achando muito com essa idade tão pouca…

— Num esquenta não, mãe, tava ali na rua de trás conversando com meus novos colegas. “Tudo pela orde”, os cara tem “a moral”, eles são “da lei” …

— Gíria cê aprende rapidinho, né?

— Ah mãe, tava dando neles u’as boa ideia. Os caras tão meio que viajando demais na maionese.

Voltemos ao grupinho que, deixando o pátio lateral, caminha para a frente da grande casa de doze famílias:

— Nhuuuu! O céu parece que vai abrir, as nuvens andando com o vento, tipo tapete voador.

— Não vai chover hoje mais não.

— Meu pai vai assar uma leitoa.

— Humm, que delícia. Vou passar na sua casa primeiro quando der a meia-noite e todo mundo começar a dar o Feliz Natal!

— Deixa de ser gulosa, Laíde!

— Que ó!? Só como pra caramba no Natal e no Ano Novo. Tiro a barriga da miséria.

— Enquanto meu pai vai preparando a ceia, minha mãe vai na Missa do Galo com a dona Maria José e elas rezam para nós…

— Seu pai não vai junto com sua mãe não, eu hein!?

— Sua mãe reza para todo mundo mesmo?

— Hanrrã, ela não esquece de ninguém… nem da nossa família nem do pessoal daqui do prédio. Reza até pra algum vizinho que brigou com ela. Porque hoje é Natal. E Jesus não gosta que a gente guarda raiva de ninguém.

— É… meu avô fala que vizinho é o nosso parente mais próximo.

— Ainda bem que sua mãe reza pra mim então. Porque eu não gosto de ir na igreja…e esqueço de rezar quase toda noite.

— Minha mãe vai pedir a Jesus e a Deus que no ano que vem nenhum vizinho brigue por causa de barulho ou por causa de espaço no varal para suspender roupas.

Horas se passavam. Portas se abriam. Músicas invadindo as áreas comuns. Um festival sonoro de gostos variados. Eram sinceros os convites, os aromas se espalhavam pelo ar quente e chuvoso.

E vinham chegando parentes de vários bairros da capital, do São Geraldo, da Floresta, do Saudade, do São João Batista, do Céu Azul. Enchiam mais ainda a grande casa.

— Ano que vem a gente podia fazer um amigo oculto…que tal?

O ano vinha, o próximo Natal chegava. Todo mundo se esquecia da sugestão. Nenhuma brincadeira de troca de presentes era oficializada. 

(…)

Os jesuizinhos trocando chocolates e frutas. E os mais crescidos bicando, às escondidas, cada qual seu copo de vinho. Algum deles brinca mais pesadamente:

— O Papai Noel tem que passar o saco lá na sua casa, véio…já pôs a meia na janela?

— Pára com essas zoeiras, Zé. Opa! Lá vem mamãe e papai…falou, tchau!  Vou vazar. Chegou a hora de ir para o Culto de Natal.

— Ora pra nóis também, hein!?

— Vou orar para você deixar de ser trouxa e respeitar de verdade Jesus e o Natal!

— Ihhh… Zé, num endoida não, é só brincadeira. Deixa de ser prego! Apelou? Perdeu.

Meia noite em ponto. Estouravam-se os fogos e o céu tremia. Quem não havia ido às igrejas, saía passando pelas portas abertas, distribuindo abraços e saudações: “Feliz Natal!” “Feliz Natal, muita paz e serenidade! ”, desejando paz, perdão, reconciliação. Uns distribuindo cartões; outros petiscando azeitonas, comendo carnes, frutas, bebericando vinhos, champanhes e cervejas.

Na avenida principal os carros passam buzinando. Amigos de outras bandas nos cumprimentam; uns até bicam em nossos copos. Abraços. E seguem se espalhando as saudações natalinas. O mais desejado é saúde para toda família. Sa-ú-de, esse bem valioso, alicerce de todos os outros bens.

No andar do meio, o pastor Alair evangelizando:

— Devemos já estar decididos a respeito do presente que cada um de nós dará ao nosso Salvador Jesus Cristo…

— Dê algum presente para mim, que estarão dando a Jesus. Foi assim mesmo que Ele ensinou: “faça aos pequenos que estarão fazendo a Mim”. Sou uma pequena criança de nove anos. Podem me presentear à vontade – disse o brincalhão do Tuca.

No quintal, cada jesuizinho ia mostrando seus presentes: homenzinhos de guerra, helicópteros, banco imobiliário, bicicletas, aquaplays, bambolês.

Para os adolescentes o pior castigo era passar o Natal vestido de roupas velhas.

As meninas aprincesadas com suas sandálias Melissa, camisas de cores fortes e grandes botões.

— Ó a Janaína, gente!… mostrando relógio novo com pose de mãos na cintura…

Ela mesma, a Janaína – desviando-se do comentário – tapa com as mãos a luz do poste e solicita aos pequeninos:

— Quem aí pode me mostrar onde estão as Três Marias? E o Cruzeiro do Sul?

As nuvens iam-se rasgando e o Céu sorria-se por completo.

— Quê que você ganhou, Zequinha?

— Esse burrinho que carrega troços. Aperta o botão aqui e ó…

 E o burrico dava um pinote, jogando tudo para cima…era o “burrinho de quinquilharias”.

— Ganhei também um kichute.

Kichute é bom para andar no mato, pra quando a gente for pegar goiaba na mata do Picão.

— Credo…essas coisas é presente de menino da roça.

— Vejam só que o burrinho tem u’a cara de aborrecido igual ao Zequinha mesmo…

Os risos já começavam a escapar, ainda sem ritmo.

— Burrinho aborrecido? Hahahahaha

— Burro emburrado aborrecido e feio…

Ninguém mais segurou a explosão. Todo mundo rindo de segurar a barriga. Riam mais da cara do Zequinha do que da gozação mesmo. Gargalhadas altas foram se desafinando em risos, risadinhas, até se amenizarem nos gemidos, nos suspiros de quem não aguenta mais rir…

O Zequinha juntou seu burrinho com as quinquilharias e disparou do pátio para dentro. Entrou correndo, surdo, quase derrubou as bolinhas da árvore natalina. Foi direto para o quarto e bateu a porta. Enterrou o rosto na cama, cobriu a cabeça com travesseiro. Foi soltando de vagar um chôro abafado. Por alguns minutos já estava sendo tomado por um silêncio íntimo. Mas pelo basculante da janela entravam gritos de euforia aos passos de breakdance, vindos de longe. Na sala de estar daquele lar apertado, pela agulha de um Gradiente, tocava Nelson Rufino e Zé Luiz na elegante voz de Roberto Ribeiro, gravada em 1978: “Todo menino é um rei/ eu também já fui rei…”. Do chôro o Zequinha caiu ao cansaço. E dormiu.

Acordando pela madrugada, tudo fechado, apagado e calmo, foi até a sala e viu o pai, com camisa branca, daquelas de pano de saco de açúcar e larga; o pai saudável, sóbrio e salvo; de volta ao lar, reconciliado com a mãe, sentado ao pé da árvore reluzente:

— Não chore meu filho… vem cá no papai, quero lhe dar um novo ensinamento…

lopes al’cançado rocha, o Cristiano, 20181221

contato: lopeslarocha@gmail.com

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