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Vulto Lírico, poeta de primeira grandeza e humildade
imagem: lab61
Elogiado por Antônio Olinto, Henriqueta Lisboa, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros consagrados, o autor por quem nos manifestamos é um vulto do pensamento e de nossa literatura; lido, respeitado, conhecido e admirado nos círculos literários de todo o país. Podemos encontrá-lo facilmente nos mares da rede. Há boa quantidade de tributos, citações, entrevistas, conferências, trabalhos acadêmicos. Escritores das mais díspares vertentes debruçam sobre seus escritos. Euler de França Belém afirma sem tremer: “(…) é uma espécie de Otto Maria Carpeaux que ainda não conquistou o Brasil, e com dois detalhes a mais: é excelente tradutor e poeta(…)”
Experimentemos, de entrada, nossa bebida socializadora, variável em cores, tons e intensidade. Assim somos nós brasileiros e brasileiras. Que sommelier não desejaria no seu material de merchant a voluptuosa degustação?
IMPROVISO ESPIRITUOSO
Loura e leve, sutil e deliciosa,
ao teu contacto a inspiração se apruma.
De te beijar a coma vaporosa,
tenho no lábio um mar de doce escuma.
§
Aspiro-te a fragrância capitosa,
sorvo-te as maravilhas, de uma em uma,
e ao fim me tens, rainha caprichosa,
ajoelhado escravo, a mente em bruma.
§
Teu espírito voa, e o meu, na trama
que voluptuosamente lhe entreteces,
voa também, em um céu, um céu reclama!
§
Mas eis sucumbe em sonolência espessa.
É que, gentil cerveja, se me desces
ao coração, tu sobes-me à cabeça.
Brasília, 25.III.1977
Coloquemos, em brevíssima passagem, a vida poética do homem antes do nome.
Um brasileiro nasce em meados dos anos 1930, em Minas Gerais, filho de pais professores e — vejam só! — poetas. Na infância, aproveitando a oportunidade, torna-se devorador de livros e gibis, não menos atento às improvisadas histórias contadas pela mãe educadora à cabeceira da cama. Esse período nutritivo passa-se em Goiânia. Enquanto cresce peregrina com os pais por várias cidades de Minas. Fixa-se em Leopoldina, cidade vizinha à Cataguases do modernismo mineiro. Sob o canto de Castro Alves, parnasianos e simbolistas, o rapaz é chamado a ser poeta.
CIGARRA
Quando à tarde no céu se escuta a prece
que entoa a Criação da Ave-Maria,
canta a cigarra, canta e se estremece:
núncia da noite sepultando o dia.
§
Pobre cigarra! Canta como em prece,
e ninguém, escutando-a, desconfia
que no canto a alma simples lhe estremece
e é o canto o último raio do seu dia.
§
A tanta gente assim como a cigarra
a dor na pálpebra fechada esbarra,
mas— na suave transfiguração
§
que nos redime desta pobre argila—,
se em lágrimas dos olhos não destila,
vem aos lábios em forma de canção.
Leopoldina, 8.X.1950(…)
Pelo que nos parece, travessuras à parte, foi ótimo filho e excelente aluno. Fez e ainda faz jus à sorte do berço e à chance da vida. Trata-se de mais um de nossos cidadãos exemplares que idealizamos para entre nós, artistas de espírito público.
Chega à juventude e muda-se para o litoral. No Rio de Janeiro estuda, escreve, poetiza, dialoga com seu tempo desafiando as “vanguardas” estabanadas e barulhentas:
AO LARGO, OUSADO!
é mister tudo ousar
quebremos os nossos ídolos
depois colaremos os pedacinhos
os velhos
ídolos
caídos
entrecomidos
pelos séculos
o tempo é um gato que nos espreita
pra que chorar
copiemos a sagacidade dos ratos
olhemos com ternura os nossos ídolos
não é preciso quebrá-los
quebremos antes o encanto
Ao largo, ousado!
copiamos sempre alguma coisa de alguém
somos parentes do macaco
os nossos símbolos são sapatos velhos
mais cômodos porém gastos
Ora (direis) somos poços esgotados
pois eu digo enchamo-los de vento
nada mais moderno abstrato
aéreo
altercam lá fora há muito barulho
enquanto isso a palavra vai roendo a poesia
mas o tempo espreita
Rio de janeiro, 17.XII.1957
Em 1960 finca raízes na sonhada Brasília. Nessa época dão-se os últimos graus da fervura ideológica alimentada em décadas anteriores. Tempo de rupturas, dissidências, divergências, interrupções de diálogos, proselitismos. O autor expressa bem o sofrimento nos ambientes socioculturais. Comoventes composições são desse momento difícil, de quando podemos citar: “Incomunicações”, “Babélica”, “O tempo do homem”, “Torres”, “Antipalavra” e “Antibabel”. Desse período, cantemos baixinho a poesia em seu estado de potência, criatura à espera dos movimentos do criador:
APOESE
Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
—boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Brasília, 31.III.1963
Cultor da língua e das artes, não se rende aos desintegradores da linguagem. Posta-se consciente em defesa do que compreendemos por TRADITIO, o entendimento e a prática de receber, cuidar, trazer e entregar: eis a origem e o sentido amplo da palavra tradição. Nosso artista aperfeiçoa e tradiciona bem. Vejamos o poema abaixo em que o mineiro-candango se autodescreve com base no seu signo do zodíaco. Uma espécie de autorretrato temperamental. São, curiosamente, onze quadras de versos brancos e potentes, em consonância numérica com o mês de novembro do calendário gregoriano. Sem esmorecer o homem-poeta reluta e sonha alto com os pés no chão.
ESCORPIÃO
Metálico, magnético, mirífico,
concreção do mistério em geometrias:
escorpião. Equilíbrio e desengonço.
Tão telúrico bicho e tão dos astros frios.
§
Cauteloso, talvez triste, avança, lança em riste.
Que faz no escuro, no úmido e no mofo
que contradiz o seu perfil mecânico?
Pólo e deserto funde, gelo e cálculo.
§
O escorpião tem reservas de malícia
ocultas sob camadas de silêncio.
Mesmo em repouso, agudo: espinho a proteger-se
Invisível flor de inviso perigo.
§
Por isto o escorpião está sempre em guarda,
dormindo com dois dedos no gatilho.
E de repente, sem nenhuma ofensa aparente,
exorbita-se em fúria vingativa.
§
Uma inveja lhe dói: não se centauro,
não se anfíbio, o peixe-pássaro, ele
que atira os olhos no alto e, em vez de duas asas,
tem oito patas a prendê-lo à terra.
§
Por isto é tão concentrado o seu ódio
e lhe estorva ainda os passos mais serenos.
E para não poluir o sonho de tanto ódio
descarrega em si mesmo o seu veneno.
§
Ridículo animálculo romântico
e parnasiano, síntese grotesca:
sólida, fria construção de engates rígidos
e formas libertando-se dinâmicas;
§
maligno duende, anjo desamparado
das potências na solitária luta,
ferras à terra, em guerra, as possessivas garras
e acima, acima, a chispa metalúrgica!
§
Torturado escorpião, que os astros sondas
e em anfractos arrastas-te, maléfico,
ínfimo na íngreme escarpa evolutiva
marchas— mas que apoplético e perplexo!
§
Bicho da terra, animal metafísico,
os pés na pré-história e um olho no futuro,
passeando o apêndice interrogativo
no círculo de luzes do zodíaco,
§
animal sem presente, entre duas eternidades
sufocando oscilante, entanto lúcido,
oh! Ama este aracnídeo, ávido amante,
que não é Carne ainda e sonha-se Anjo.
Brasília, 24.X.1971
Não sejamos orgulhosos. Não tenhamos receio de afirmar: é vulto! Exerceu jornalismo, magistério e tradução. Fez e continua por fazer incontáveis amizades. Ensina com amor, é generoso com principiantes. Reconhece os talentos dos companheiros de ofício. Sensível, erudito, humilde, solidário. Ama os idiomas e as nações. Entrega-nos bastante de sua experiência humana. Participou e testemunhou boa parte do século XX e praticamente todo esse início de século em matéria de literatura brasileira e um pouco da latina. Entendido de Castro Alves, Bilac, Bandeira, Cruz e Sousa e tantos outros. Em seguida dois ensinamentos a nós aspirantes: a) entrevista concedida a Nelson Hoffmann pelo periódico O Nheçuano e b) poema que segue:
O homem é paciente e operoso, diz acertadamente o seu amigo José Jeronymo Rivera. Faz-se crítico e ensaísta com prosa estilística luminosa, capaz de nos revigorar o esforço pela beleza. E sua poesia ergue-se como um edifício firme, fácil de se captar e reter, justamente pelo equilíbrio entre sentimento, imaginação, técnica e sabedoria. Desfrutemos de mais esse soneto, da coleção dos “visionários”:
PÂNTANOS
Caía o luar nos pântanos tranqüilos.
Um sapo-boi coaxava tristemente.
A sinfonia sem calor dos grilos
enchia o quarto e entrava-me na mente.
§
Pus-me a escutá-los, momentaneamente:
cantavam mal…E eu me cansei de ouvi-los,
metendo o olhar, indagadoramente,
dentro da noite plena de sigilos.
§
Loucas perguntas, que ninguém responde,
em mim ecoavam, como numa furna.
E ébrio de sono e angústia, de repente,
§
julguei que os homens fossem brejos, onde,
regendo a triste orquestração noturna,
um sapo-boi coaxasse gravemente…
Soneto Antigo, p.95
Para revitalização da poesia brasileira faz-se necessário antes divulgarmos o peso dos que não puderam vir à baila numa intensidade compatível com sua grandeza. Precisamos reverberar com prazer máximo os autores que foram astuciosamente postos à margem por certos “movimentos editoriais” e “pactos de leitura”. Nós apreciadores de boa arte, crentes e enfezados na ideia certa de que obras excelentes contribuem para elevação da alma humana, sonhamos com eminente poesia em forte circulação.
A literatura desse vulto – poemas, ensaios, contos, entrevistas, aulas, palestras, traduções – pede por ser lida e ouvida por mais pessoas, mais comentada por nossos críticos e jornalistas culturais. Insistimos não tanto pelo autor, homem moderado e consciente de já ter feito muito da sua parte, mas por solidariedade a nós mesmos, compatriotas e falantes da língua. Que sejam incluídas suas obras nos exames de vestibulares! Dos seus ensaios temos àmão “Testemunho & Participação” e “Do que é feito o poeta”. Há também o “Proclamações” a ser explorado. A respeito do primeiro alguém exclamou: “Como é que obra dessa fica fora de circulação comercial?! Só de dar com os olhos na mina já se encontra inúmeras pepitas…além de agradável leitura, trata-se duma compilação valiosa para estudo e pesquisa em história literária.”
Conselhos editoriais, comissões de vestibulares, institutos, enfim, o mercado de bens simbólicos adiando ou atendendo logo nossa solicitação, uma coisa é certa: Anderson Braga Horta já influencia leitores, escritores e poetas de hoje, bem como influenciará outros muitos de amanhã. Ao lermos seus fragmentos críticos, onde se registra cristalinas reflexões, concluímos definitivamente que o autor está dentre os mais bem estruturados ombros da poesia contemporânea, da língua portuguesa, do florão da América e de todo o continente.
É hora de irmos além da respeitabilidade, do reconhecimento, dos elogios e dos prêmios. É hora de pormos os frutos do lavrador à mesa dos famintos!
Encerramos com…
SONETO DE AMOR ANTIGO
Antes de tu nasceres, eu te amava:
de um amor sem objeto,
de um puro amor à espera:
querendo-amar, nos limbos do intocado.
§
E inda antes de eu nascido, já te amava:
no antegosto secreto
da vida em outra esfera,
na alma anterior ao corpo entressonhado.
§
Eu sempre soube o teu olhar profundo,
antes mesmo dos olhos, num passado
quando eras pura essência, além do mundo.
§
Cerra o tempo as cortinas e as descerra,
e eis-me sempre a teus pés ajoelhado.
Meu amor é antigo como a Terra.
REFERÊNCIAS:
ANE. Associação Nacional de Escritores. Membros. Brasília, 1963. Disponível em:< https://anenet.com.br/> Acesso em 17 novembro de 2019.
ALMEIDA, Pinto J.R. de. Poesia de Brasília: duas tendências. Brasília: Thesaurus, 2002. 136 p.
HORTA, Anderson Braga. Soneto Antigo. Brasília: Thesaurus, 2009. 213 p.
_______. Do que é feito o poeta. Brasília: Thesaurus, 2016. 412 p.
_______. Signo: antologia metapoética. Brasília: Thesaurus,2016. 412 p.
_______. Poeta de primeira grandeza. O Nheçuano, Roque Gonzales – RS- Nº 42, p. 6-8, agosto/setembro. 2019. Entrevista concedida a Nelson Hoffmann.
_______. Encontro de cinco poetas numa não esquina de Brasília. Lab61(uma homenagem ao Brasil) Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=J5Yi7FPiY_Y >. Acesso em 15 julho 2019.
Este site pertence ao compositor e escritor Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano. Disponibiliza gratuitamente aos internautas experiências de conhecimento e conteúdo para pesquisa. Clique no link a seguir para saber dos serviços que o autor oferece: https://pingodeouvido.com/cristiano-escritor-e-redator/
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