Mudas de bananeira – Conto

Mudas de bananeira | Conto

Em cidades do centro-oeste mineiro conta-se uma história com as mais variadas modificações. Sempre lembrada na quaresma. Já é estória conhecida e, quando alguém arrisca contá-la de qualquer jeito, para não perder o costume, algum ouvinte ativo ri e diz: “aí vem o outro e mata o defunto…”. Quer dizer:  lá vem alguém contar história já sabida sem nenhuma novidade antiga.

Nessa última quarta-feira de cinzas do ano de dois mil e dezenove, quem nos alembrou bem dessa estória, na roda de cozinha, foi a Sra. matriarca D. Lúcia:

“…dizem ter acontecido na Leandro Ferreira do Padre Libério. Mas o Sr. Irineu contava que se passou algo parecido também em Martinho Campos, antiga terra dos Kaxixós.

Vinham quatro companheiros carregando o defunto de uma mulher surda-muda, debaixo de chuva, quando um deles disse:

__  Num tempo bão desse, plantando essa muda na terra, ela vai pegar bem pra danar…

Dos outros dois companheiros, um aconselhou em defesa da falecida:

__  Arrepende, moço, da besteira que ocê falou, retira essa palavra; do contrário com pouco vem o seu castigo. Não faz bem ficar zombando da morte dum semelhante.

O moço soltou um ai,ai,ai, ignorando a advertência:

__ Não vejo a hora de beber o defunto lá na venda do Tião. Para aliviar o peso só mesmo u’as pinga da boa!

Passados uns tempos, nenhum castigo veio.

Era um trigueiro cheio de malícia, desafiador. Para ele, juramento, castigo, praga, tudo isso eram besteiras que só servem para pôr medo em criança.

__ Pagar língua!? – ele dizia por lá – isso é trem de besta, sô!..

Então, foi de outra vez que vinham pela estrada uma mulher branca, com duas crianças pequenas, todas três magricelas, anêmicas e sofridas. A criança mais nova vinha no colo, carregada com dificuldades pela fraqueza da mãe; a menina maiorzinha, puxada por outro braço, cambaleava com as perninhas finas e ressecadas.

E outra vez, impiedoso, o moço:

__ Olha só, lá vem um cacho de bananas: amarelas e penduradas…

— Ô sô, pelo leite que ocê bebeu da sua mãe, não brinca com o sofrer dos outros não! …

Veio-lhe mais esse bom conselho aos ouvidos. Entrando num e saindo por outro, não teve nem tempo de parar na consciência do rapaz.

Outros tempos se passaram. O moço perdeu a mocidade, virou homem, arrumou casamento. Tirou a mão de uma mulher muito simples, magra e sem cor. Uma união modesta, sem festa nem lua de mel. Apenas a cerimônia, as alianças e um almoço simplório. Das duas vezes que a mulher engravidou, da primeira o rebento se perdeu. Na segunda vez, a criança nasceu, mas não vingou. Era menino.

O homem foi dali para frente desanimando, entrando na velhice sem muito vigor.

— Não quero saber mais de filho. Se não deu certo até agora é por conta da sorte do destino.

Foram-se os anos, o homem cansado e sem muita força para trabalhar, a mulher embucha e traz à luz u’a menininha. Outra veio logo em seguida. E com a mesma deficiência da irmã, só que com alergia ao leite de vaca. Essa desnutriu-se. Não se soube se foi de nascença, mas enquanto cresciam perceberam que as mocinhas não escutavam bem e menos ainda conseguiam falar direito.

Aqueles tempos foram de muita falta.

__ É só um azar das temporada. Essas precisões vão passar… o homem acalmava a família, acreditando sabe se lá em quê.

A mulher também não acreditava muito no castigo de Deus, mas, ao contrário do homem, era humilde e nunca teve vergonha de pedir ajuda. Até inventou uma toada para ir cantando pelo caminho, puxando as duas crias… uma cantiga de esmola concorrendo com os cantos de venda do padeiro e do leiteiro…

Quem me dera s’eu tivesse

a grande sorte de ganhá

u’a penquinha de banana

e u’a tijela de fubá.

— Lá vem aquela branquela azeda pidona, muitos discriminavam. ”

Ao término da história, D. Lúcia riu um riso sem sal, fechou a cara e olhou para o nada. Nesses tempos de miséria, com gente até cozinhando com água de esgoto lá longe na Venezuela, por exemplo, quase ninguém gosta de ouvir esses casos.

Conseguimos essa versão completa porque insistimos bastante com a Sra. matriarca D. Lúcia. Como ela mesma disse: “…estragamos, por um bom pedaço de hora, a tradicional reunião de cozinha”. Éramos seis? Não. Por volta duns nove rodeando aquela mulher parruda, de conversa vagarosa e firme. Nossa mesa estava farta. E gozávamos perfeitamente de todos os nossos sentidos.

Lopes al’cançado rocha, o Cristiano.

lopeslarocha@gmail.com

Este site pertence ao compositor e escritor Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano. Disponibiliza gratuitamente aos internautas experiências de conhecimento e conteúdo para pesquisa. Clique no link a seguir para saber dos serviços que o autor oferece: https://pingodeouvido.com/cristiano-escritor-e-redator/

Um caso de três tragédias | Conto

Um Caso de três tragédias | Conto

Era início de dezembro do ano de 2018, depois de forte chuva, transbordamento do Onça e do Arrudas, quedas de árvores e de energia…ah bom, a falta de eletricidade obrigou o Sr. Helvécio a pegar o rádio movido à pilha. Lenoxx Sound Rp 60, tablete cinza de alça preta e antena expressiva, elegante no design. E o Sr. Helvécio não perde a oportunidade de sair pelas ruas com o seu Lenoxx, na altivez dum pastor sucedido carregando sua bíblia.

São os homens sociáveis exibindo suas armas de comunicação, ferramentas que alimentam as cabeças; esquentam as conversas e as discussões; apimentam a curiosidade pelas empresas do futebol, fortalecem as opiniões políticas e nutrem as grandes questões morais da sociedade.

– O Du disse que vão vender o goleiro do Atlético para um clube da Arábia. Mas pelo jeito é mentira. Não deu nada disso na Itatiaia.

No começo era só o livro, depois vieram o teatro, o folhetim, os panfletos e cartazes, o rádio, o cinema, as revistas. Por fim a televisão e o computador pessoal. Não cheguemos até os dias de hoje, nos aparelhos de telefones móveis, com tudo aquilo, somando-se aos acessórios e aos vídeos-jogos: essa avalanche perturbadora de informações maçantes, em cadeia e distribuídas em rede.

Já por volta das vinte e duas horas, a lua se expunha no seu quarto crescente, numa noite após à primeira tempestade do mês. Era frio e era calor, a depender da esquina que se curvasse naquele bairro de Stª Efigênia dos Negros e dos Militares.

O Sr. Tarcísio anunciava o fechar das portas, quando olhou para o céu à procura de sinal do tempo, abriu a boca como um animal regido, largou as cadeiras que recolhia – havia sido tomado por alguma lembrança marcante –, e passando para dentro do balcão, começou:

– Rádio é bom que a gente não precisa abrir os olhos. Pode deitar, descansar as vistas e só escutando fica sabendo de tudo. Vai misturando as notícias e as músicas com cochilo – disse isso olhando para o aparelho Lenoxx.

– A gente descansa as vistas das imagens, é isso aí Sr. Tarciso… apoiou um frequentador menos velho, estilo heavy metal.

Respeitemos a preferência do Sr. Helvécio:

– Esses rádios de celular não prestam porque só funcionam com fio de ouvido. O bom mesmo é ouvir as coisas com o rádio solto, de alto-falante livre.

E dito os pitacos dum outro botequeiro qualquer, tratando a todos sempre como “meu amigo”:

– Meu amigo, rádio ainda é bem melhor que aquela bagunça da internet. No rádio é tudo dentro dos horários, não precisa de ficar procurando as coisas; tem lá os programas de piada, o aviso de tempo e do trânsito, os comentários dos jogos, o resultado da loteria e do bicho, as notícias, as horas certas, as músicas…é só ligar nos momentos certos.

– As músicas eu escuto, mas logo fico enjoado da repetição delas – reforçou o Sr. Helvécio.

– É… rapaz – confirmou o Sr. Tarcísio, tomando de volta a vez da fala e emendando mais um de seus casos. Como de sua mania, iniciava a contação já no meio da história – … chamava-se Jocélio, mas o apelido era Churrasco: “ô Churrasco, vem cá!” Ele tinha um violão velho, ficava na cama de colchão de palha, deitado como se fosse sua mulher. “Tenho um ciúme danado dessa bicha”, o Jocélio falava. Ele tinha o violão como viola, sabe? Mas só depois da desgraça toda é que fui saber que’ra violão. Não conhecia essas coisas. Não sabia o que era um ou outra. Tanto violão como viola, para mim, eram uma coisa só.

O Antônio já freava os goles para segurar a dose, saborear o momento trágico e final na última talagada da cachaça.

–  Mas esse tal Churrasco era o que seu? – perguntou o Luizinho.

– Trabalhava para o papai nos roçados. Mas isso não importa. E papai sempre nos ensinava: “só ponha a mão no que é seu, só pega no que é dos outros em último caso, e mesmo assim se for a pedido do próprio dono da coisa, porque se…rã…”

– E o homem era bom na enxada e na viola? Pergunto do Churrasco – insistia o Luizinho.

– Nãnão…ninguém lá tinha mais força no braço pra capina igual eu não, sô…eu via aquela viola e sentia uma vontade de pegar nela. Ver se eu sabia tocar na bicha, sabe? Quer dizer, eu pensava que era viola também, porque o Churrasco tratava como viola. “Essa bicha é como se fosse a mulher do Churrasco”, o povo brincava. Mas era um violão.

(…)

– “Arrebentou duas cordilha da bicha. Fica essa falha feia no braço e no buraco”. “Pior é as músicas que saem tudo afrouxadas. Foi o Tacinho, esse cabeçudo que mete o dedo onde não deve.” Falavam assim comigo. Foi muito tempo ouvindo essas lamúrias. Era difícil achar alguém para trazer uma corda da cidade. E também era complicado porque cada corda tem uma finura, e nas muitas lojas só vendia o jogo completo das cordas.

– E seu pai?

– Me castigou com uma semana de capina sem ganho.

Depois foi o caso de um relógio – continuava o Sr. Tarcísio- que escorregou da minha mão como peixe e estourou no chão feito goiaba madura. Era do meu primo, mas disso papai nunca ficou sabendo.

Olhando esse radinho do Sr. Helvécio, pior de todos foi o rádio de minha madrinha. Fui na besteira de mexer na coisa e… “A rádia não manda mais notícia porque o Tacinho arrebentou o botão do aparelho”; “Ô meu Deus! Já era de se esperar…” mais essa chuva de lamúrias eu num ía aguentar…

– Já vi muito caso de gente mão-mole, mas no caso do senhor é o contrário.

Risos entre tragadas de cigarros. Ninguém interrompeu, esperando continuidade. E o contador continua:

– Vai escutando: fiquei muito chateado, triste… sabe? Nos dias que não deixei de dormir também almocei mal e nem jantei. De preocupação, de arrependimento. Pêso na consciência. Era mais u’a outra grande tragédia. O conselho do meu pai tintilava na minha idéia como o sino da igreja: “não põe a mão em coisa que não é sua…” Pensei até em pegar o facão…

– Cê num pensou em fazer u’a besteira dessa não, sô!?

– Pensei…ô?? Não só pensei como falei em cortar a mão, mas…

– Mas e aí?

– Mas minha irmã me deu o conselho, lembrando que ia dar mais trabalho ainda para os outros: lambrecar a camionete de sangue. E ainda mais com o pronto socorro naquela distância.

Então…hoje só ponho a mão no dinheiro que vem para ser meu e na mercadoria que vai para ser sua. Só pego na caneta para riscar o pagado e marcar o fiado devido. Faço o cálculo no papel que é meu, para não dar problema.

Quiseram me treinar para calcular em máquina. Falei: “nesse tipo de coisa dos outros eu não ponho a mão; só se um dia eu comprar ou ganhar u’a máquina dessas para mim.”

Das poucas vezes que peguei em aparelho dos outros deu em desgraça feia.

Não tomo nada emprestado. Não pego em nada dos outros para ver como funciona. Nas lojas, escolho a mercadoria sem pegar, olhando tudo no manuseio do vendedor. Depois que’u passo no caixa, aí a coisa já é minha. Se der qualquer quebrado, já paguei e o negócio sendo da minha posse, o prejuízo é meu. Ninguém pode mais falar nas minhas orelhas.

Daí o Sr. Tarcísio tornou a recolher as cadeiras e mesas dobráveis, de ferro, batendo-as com força, decidido, descarregando a raiva contida.

No balcão, o Sr. Helvécio havia desligado o rádio para não atrapalhar a conversa. Acertou a pinga e foi-se despedindo. Ao religar o aparelho – era chegada a hora do programa de piadas- o Lenoxx Sound Rp 60 não funcionou. Então disse baixinho consigo mesmo, conformado, o Sr. Helvécio:

– Acabou a pilha.

E como trovoada, o baixar das portas de aço do bar mercearia cortou o silêncio noturno do quarteirão.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano 181231.

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Eram muitas vezes | Conto de natal

Eram muitas vezes | Conto de natal

Numa dessas grandes casas, num edifício multifamiliar. Abrigava cerca de meia centena de pessoas. Pouquíssimos idosos. Cada unidade de apartamento com seus sete cômodos, esses ligados por um estreito corredor.

Viviam no prédio por volta de vinte e cinco jesuzinhos, a maioria tendo nascida durante a détente da Guerra Fria. E eis que seus pais, roceiros candidatos a operários e mestres, vinham daquela próxima Belo Horizonte, guiados pela estrela da esperança, da prosperidade e do sonho da casa própria.

Casinhas simples e predinhos idênticos em forma de “H”, variando apenas nas cores dos detalhes e saliências das fachadas, bem modestos e humildes, de chapisco e cacos de tijolos cerâmicos. Falamos desses conjuntinhos habitacionais de baixa renda, a que muitos apelidavam pejorativamente de pombais.

— Qual é mesmo o nome do seu pai? Pensei que era Baltazar. Ele tem cara de Baltazar.

— Que Baltazar, ou? Tá doido?

— Um que eu vi na televisão. Parece com seu pai.

(…)

— Te apresento meu amigo.

— Dá onde que ele veio?

— Da terra do além.

— O quê que ele merece?

— Viver sozinho sem ninguém…

— Credo, essa não teve graça, é paia demais.

— O Silvano inventa umas estranhas e sem graça… quem ia ficar vivendo sozinho sem ninguém no mundo? Só se for o próprio ninguém.

— É… é mesmo.

— Quê que ocê vai ganhar de Natal?

— Pedi uma calça jeans manchada e um Redley, pode ser imitação.

Nenhum dos imperadores – Ronaldo ou Constantino – se importaria com esses jesuizinhos tão comuns, diversos, semelhantes, desiguais e alegrados tão-somente pela esperança de crescer.

Aniversariantes esperando seus presentes com expectativas das mais variadas. Aquelas carinhas sorridentes, sapecas e cheias de espertezas inocentes:

— O Alê vai ganhar uma freestyle

— Aquelas de roda estrelada?

— É, toda freestyle tem roda estrelada…

— Não, nem toda…umas são com roda de raios…

— Pois então, o sol tem raios e é chamado de estrela. Toma distraído!!!

No pátio lateral a conversa, sugerida pelo esquentar dos fornos, era mais saborosa ou não era?

— Minha mãe vai assar dois frangos e comprou quatro garrafas de Del Rey.

— Lá em casa vai ter é chester

— Que isso?

— Quase a mesma coisa que peru.

— Não, meu irmão falou que é um frango mais grandão…

E não poderia faltar alguma rebeldia entre os que adolescem sabiamente:

— Onde o senhorzinho estava, hein Tuca? Tá se achando muito com essa idade tão pouca…

— Num esquenta não, mãe, tava ali na rua de trás conversando com meus novos colegas. “Tudo pela orde”, os cara tem “a moral”, eles são “da lei” …

— Gíria cê aprende rapidinho, né?

— Ah mãe, tava dando neles u’as boa ideia. Os caras tão meio que viajando demais na maionese.

Voltemos ao grupinho que, deixando o pátio lateral, caminha para a frente da grande casa de doze famílias:

— Nhuuuu! O céu parece que vai abrir, as nuvens andando com o vento, tipo tapete voador.

— Não vai chover hoje mais não.

— Meu pai vai assar uma leitoa.

— Humm, que delícia. Vou passar na sua casa primeiro quando der a meia-noite e todo mundo começar a dar o Feliz Natal!

— Deixa de ser gulosa, Laíde!

— Que ó!? Só como pra caramba no Natal e no Ano Novo. Tiro a barriga da miséria.

— Enquanto meu pai vai preparando a ceia, minha mãe vai na Missa do Galo com a dona Maria José e elas rezam para nós…

— Seu pai não vai junto com sua mãe não, eu hein!?

— Sua mãe reza para todo mundo mesmo?

— Hanrrã, ela não esquece de ninguém… nem da nossa família nem do pessoal daqui do prédio. Reza até pra algum vizinho que brigou com ela. Porque hoje é Natal. E Jesus não gosta que a gente guarda raiva de ninguém.

— É… meu avô fala que vizinho é o nosso parente mais próximo.

— Ainda bem que sua mãe reza pra mim então. Porque eu não gosto de ir na igreja…e esqueço de rezar quase toda noite.

— Minha mãe vai pedir a Jesus e a Deus que no ano que vem nenhum vizinho brigue por causa de barulho ou por causa de espaço no varal para suspender roupas.

Horas se passavam. Portas se abriam. Músicas invadindo as áreas comuns. Um festival sonoro de gostos variados. Eram sinceros os convites, os aromas se espalhavam pelo ar quente e chuvoso.

E vinham chegando parentes de vários bairros da capital, do São Geraldo, da Floresta, do Saudade, do São João Batista, do Céu Azul. Enchiam mais ainda a grande casa.

— Ano que vem a gente podia fazer um amigo oculto…que tal?

O ano vinha, o próximo Natal chegava. Todo mundo se esquecia da sugestão. Nenhuma brincadeira de troca de presentes era oficializada. 

(…)

Os jesuizinhos trocando chocolates e frutas. E os mais crescidos bicando, às escondidas, cada qual seu copo de vinho. Algum deles brinca mais pesadamente:

— O Papai Noel tem que passar o saco lá na sua casa, véio…já pôs a meia na janela?

— Pára com essas zoeiras, Zé. Opa! Lá vem mamãe e papai…falou, tchau!  Vou vazar. Chegou a hora de ir para o Culto de Natal.

— Ora pra nóis também, hein!?

— Vou orar para você deixar de ser trouxa e respeitar de verdade Jesus e o Natal!

— Ihhh… Zé, num endoida não, é só brincadeira. Deixa de ser prego! Apelou? Perdeu.

Meia noite em ponto. Estouravam-se os fogos e o céu tremia. Quem não havia ido às igrejas, saía passando pelas portas abertas, distribuindo abraços e saudações: “Feliz Natal!” “Feliz Natal, muita paz e serenidade! ”, desejando paz, perdão, reconciliação. Uns distribuindo cartões; outros petiscando azeitonas, comendo carnes, frutas, bebericando vinhos, champanhes e cervejas.

Na avenida principal os carros passam buzinando. Amigos de outras bandas nos cumprimentam; uns até bicam em nossos copos. Abraços. E seguem se espalhando as saudações natalinas. O mais desejado é saúde para toda família. Sa-ú-de, esse bem valioso, alicerce de todos os outros bens.

No andar do meio, o pastor Alair evangelizando:

— Devemos já estar decididos a respeito do presente que cada um de nós dará ao nosso Salvador Jesus Cristo…

— Dê algum presente para mim, que estarão dando a Jesus. Foi assim mesmo que Ele ensinou: “faça aos pequenos que estarão fazendo a Mim”. Sou uma pequena criança de nove anos. Podem me presentear à vontade – disse o brincalhão do Tuca.

No quintal, cada jesuizinho ia mostrando seus presentes: homenzinhos de guerra, helicópteros, banco imobiliário, bicicletas, aquaplays, bambolês.

Para os adolescentes o pior castigo era passar o Natal vestido de roupas velhas.

As meninas aprincesadas com suas sandálias Melissa, camisas de cores fortes e grandes botões.

— Ó a Janaína, gente!… mostrando relógio novo com pose de mãos na cintura…

Ela mesma, a Janaína – desviando-se do comentário – tapa com as mãos a luz do poste e solicita aos pequeninos:

— Quem aí pode me mostrar onde estão as Três Marias? E o Cruzeiro do Sul?

As nuvens iam-se rasgando e o Céu sorria-se por completo.

— Quê que você ganhou, Zequinha?

— Esse burrinho que carrega troços. Aperta o botão aqui e ó…

 E o burrico dava um pinote, jogando tudo para cima…era o “burrinho de quinquilharias”.

— Ganhei também um kichute.

Kichute é bom para andar no mato, pra quando a gente for pegar goiaba na mata do Picão.

— Credo…essas coisas é presente de menino da roça.

— Vejam só que o burrinho tem u’a cara de aborrecido igual ao Zequinha mesmo…

Os risos já começavam a escapar, ainda sem ritmo.

— Burrinho aborrecido? Hahahahaha

— Burro emburrado aborrecido e feio…

Ninguém mais segurou a explosão. Todo mundo rindo de segurar a barriga. Riam mais da cara do Zequinha do que da gozação mesmo. Gargalhadas altas foram se desafinando em risos, risadinhas, até se amenizarem nos gemidos, nos suspiros de quem não aguenta mais rir…

O Zequinha juntou seu burrinho com as quinquilharias e disparou do pátio para dentro. Entrou correndo, surdo, quase derrubou as bolinhas da árvore natalina. Foi direto para o quarto e bateu a porta. Enterrou o rosto na cama, cobriu a cabeça com travesseiro. Foi soltando de vagar um chôro abafado. Por alguns minutos já estava sendo tomado por um silêncio íntimo. Mas pelo basculante da janela entravam gritos de euforia aos passos de breakdance, vindos de longe. Na sala de estar daquele lar apertado, pela agulha de um Gradiente, tocava Nelson Rufino e Zé Luiz na elegante voz de Roberto Ribeiro, gravada em 1978: “Todo menino é um rei/ eu também já fui rei…”. Do chôro o Zequinha caiu ao cansaço. E dormiu.

Acordando pela madrugada, tudo fechado, apagado e calmo, foi até a sala e viu o pai, com camisa branca, daquelas de pano de saco de açúcar e larga; o pai saudável, sóbrio e salvo; de volta ao lar, reconciliado com a mãe, sentado ao pé da árvore reluzente:

— Não chore meu filho… vem cá no papai, quero lhe dar um novo ensinamento…

lopes al’cançado rocha, o Cristiano, 20181221

contato: lopeslarocha@gmail.com

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Conselho de amigo

Conselho de amigo

Olegário Mariano

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  Portinari – Retrato de Olegário Mariano
                           

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,

Gosto da tua frívola cantiga,

Mas vou dar-te um conselho, rapariga:

Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da Formiga.

Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,

E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,

Pedirás…e é bem triste ser mendiga.

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava

(Quem dá conselhos sempre se consome…)

Continuava cantando, continuava…

Parece que no canto ela dizia:

__ Se eu deixar de cantar, morro de fome…

Que a cantiga é o meu pão de cada dia.

Fonte imagem: https://br.pinterest.com/pin/528961918709064739/?lp=true

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A igreja do Diabo

A igreja do Diabo

Leitura dramática: Marcelo Lima

machado-de-assis-1904
Joaquim Maria  Machado de Assis

CAPÍTULO I

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

__ Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: – Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

II

ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

__ Que me queres tu? perguntou este.

__ Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

__ Explica-te.

__ Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros…

__ Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

__ Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação… Boa idéia, não vos parece?

__ Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

__ Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência… Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

__ Vai !

__ Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

__ Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

__ Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…

__ Velho retórico! murmurou o Senhor.

__ Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, – a indiferença, ao menos, – com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, – ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda… Vou a negócios mais altos…

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

__ Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

__ Já vos disse que não.

__ Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

__ Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

__ Negas esta morte?

__ Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los…

__ Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens… Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

__ Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu…” O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: – Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão dos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

IV

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

__ Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É eterna a contradição humana.

Vocabulário: ______________________________________

Mirífica= Maravilhosa, admirável, extraordinária, excelente.

Cogula= Túnica larga de religiosos.

Prédicas= Sermões, discursos religiosos.

Sulfúreas= da natureza do enxofre.

Esgalgada= magra como um galgo; galgo= cão de pernas longas; esfomeado.

Peleu= da mitologia grega, rei, navegador, amigo de Centauro e de Hércules e pai de Aquiles.

Rabelais= relativo a François Rabelais (1494-1553), escritor renascentista francês; que lembra seu gênero libertino, devasso e licencioso.

Hissope= referência a “O Hissope, de António Diniz da Cruz e Silva” poema heroico e cômico; [De hissopo, por ser com raminhos desta planta que se fazia a bênção.]; Aspersório: instrumento para borrifar (orvalhar) água benta.

Lúculo= Lucius Licinius Lucullus, político e combatente da Republica Romana (118–56 a.C); Indivíduo amante de banquetes suntuosos.

Galiani= Padre Italiano Ferdinando Galiani, sociólogo e economista.

Turbas= multidões.

Insolvável= insolvente.

Muezim= almuadem, entre os muçulmanos, aquele que anuncia, em voz alta, do alto das almádenas, a hora das preces; almádenas= Minarete, torre de mesquita.

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Aurora sem dia – Conto

Aurora sem dia

Joaquim Maria Machado de Assis

Leitura dramática: Marcelo Lima ; música: Sonata para cordas de Carlos Gomes [1894]

machado-de-assis-1904

Naquele tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado igual afeição.

Luís Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã acordou Luís Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera, amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco levou a produção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os pedidos.

Mal dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a noite que precedeu a publicação. A aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou-se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém-nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido.

Não dormiu sobre os louros imaginários. Daí a dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode sentimental em que o poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a amada, e já entrevia no futuro a morte melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou, por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se chegou a suspeitar de inveja dos redatores do Correio Mercantil. A poesia saiu enfim; e tal contentamento produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho a grande revelação.

— Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.

— Homem, tu sabes que eu só lia os jornais no tempo em que era empregado efetivo. Desde que me aposentei não li mais os periódicos…

— Pois é pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.

— E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra coisa.

— Falam de política e publicam versos, porque ambas as coisas têm entrada na imprensa. Quer ler os versos?

— Dá cá.

— Aqui estão.

O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e impossíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.

— Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?

Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo desdém:

— São coisas de poesia que nem todos entendem; esses versos sem graça são meus.

— Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.

— Sim, senhor.

— Pois tu fazes versos?

— Assim dizem.

— Mas quem te ensinou a fazer versos?

— Isto não se aprende; traz-se do berço.

Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava à idéia de poeta a idéia de mendicidade. Tinham-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina, expectorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas-grandes. Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.

— Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.

— Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta?

— Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.

O Dr. Lemos tranqüilizou o homem dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostrou-lhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros, para ser deputado, ministro ou diplomata.

— No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei falar ao Luís; quero ver o que ele tem feito, porque como eu também fui outrora um pouco versejador, posso já saber se o rapaz dá de si.

Luís Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas produções não publicadas. Estas orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões comuns, frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum lampejo que indicava da parte do neófito propensão para o mister; podia ser ao cabo de algum tempo um excelente trovador de salas.

O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza que a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários.

— Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.

— Não me parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar antes algum tempo.

Não é possível descrever o gesto de soberbo desdém, com que Luís Tinoco arrancou os versos ao doutor e lhe disse:

— Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende, traz-se do berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava.

E saiu.

Daí em diante foi impossível ter-lhe mão.

Tinoco entrou a escrever como quem se despedia da vida. Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar. Luís Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do ceticismo byroniano, que tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para ele a vida tinha escrita na porta a inscrição dantesca. A inscrição era citada com as próprias palavras do poeta, sem que aliás Luís Tinoco o tivesse lido nunca. Ele respingava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas de Otelo. Tinha a respeito de biografias ilustres noções extremamente singulares. Uma vez, agastando-se com a sua amada — pessoa que ainda não existia, — aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense podia produzir monstros daquela espécie, do mesmo modo que o sol italiano dourara os cabelos da menina Aspásia. Lera casualmente alguns dos salmos do Padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava mais benevolamente da “Morte de Lindóia”, nome que ele dava ao poema de J. Basílio da Gama, de que só conhecia quatro versos.

Ao cabo de cinco meses tinha Luís Tinoco produzido uma quantia razoável de versos, e podia, mediante muitos claros e páginas em branco, dar um volume de cento e oitenta páginas. A idéia de imprimir um livro sorriu-lhe; e daí a pouco era raro passar por uma loja sem ver no mostrador um prospecto assim concebido:

GOIVOS E CAMÉLIAS
POR
LUÍS TINOCO
Um volume de 200 páginas… 2$000 rs.

O Dr. Lemos encontrou-o algumas vezes na rua. Andava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que se supõem apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás.

O Dr. Lemos falou-lhe a terceira vez que o viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não pôde deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns elogios às suas produções. Expandiu-se-lhe o rosto:

— Obrigado, disse ele; esses elogios são o melhor prêmio das minhas fadigas. O povo não está preparado para a poesia: as pessoas inteligentes, como o doutor, podem julgar do merecimento dos outros. Leu a minha “Flor pálida”?

— Uns versos publicados no domingo?

— Sim.

— Li; são galantíssimos.

— E sentimentais. Fiz aquela poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez. Que lhe parecem aqueles esdrúxulos?

— Acho-os esdrúxulos.

— São excelentes. Agora vou levar algumas estrofes que compus ontem. Intitulam-se “À beira de um túmulo”.

— Ah!

— Já assinou o meu livro?

— Ainda não.

— Nem assine. Quero dar-lhe um volume. Sai brevemente. Estou recolhendo as assinaturas. Goivos e camélias; que lhe parece o título?

— Magnífico.

— Achei-o de repente. Lembraram-me outros, mas eram comuns. Goivos e Camélias parece que é um título distinto e original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias.

— Justamente.

Durante esse tempo, ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papéis. Procurava as estrofes de que falara. O Dr. Lemos quis esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço. Ameaçado de ouvir ler os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele.

Foram a um hotel próximo.

— Ah! meu amigo, dizia ele em caminho, não imagina quantos invejosos andam a denegrir o meu nome. O meu talento tem sido o alvo de mil ataques; mas eu já estava disposto a isto. Não me espanto. A enxerga de Camões é um exemplo e uma consolação. Prometeu, atado ao Cáucaso, é o emblema do gênio. A posteridade é a vingança dos que sofrem os desdéns do seu tempo.

No hotel procurou o Dr. Lemos um lugar mais afastado, onde não chamassem muito a atenção das outras pessoas.

— Aqui estão as estrofes, disse Luís Tinoco conseguindo arrancar de um maço de papéis a poesia anunciada.

— Não lhe parece melhor lê-las à sobremesa?

— Como quiser, respondeu ele; tem razão, porque eu também estou com fome.

Luís Tinoco era todo prosa à mesa do jantar; comeu desencadernadamente.

— Não repare, dizia ele de quando em quando; isto é o animal que se está alimentando. O espírito aqui não tem culpa nenhuma.

À sobremesa, estando na sala apenas uns cinco fregueses, desdobrou Luís Tinoco o fatal papel e leu as anunciadas estrofes, com uma melopéia afetada e perfeitamente ridícula. Os versos falavam de tudo, da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério.

Os cinco fregueses jantantes voltaram a cabeça, quando Luís Tinoco começou a recitar os versos; depois começaram a sorrir e a murmurar alguma coisa que os dois não puderam ouvir. Quando o poeta acabou, um dos circunstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luís Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo:

— Não é conosco.

— É, meu amigo, disse ele resignado; mas que lhe havemos de fazer? quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte?

— Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não compreendem o que é um poeta.

— Vamos!

O Dr. Lemos pagou a conta e saiu atrás de Luís Tinoco, que deitou ao rideiro um olhar de desafio.

Luís Tinoco acompanhou-o até à casa. Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de cor. Quando ele se entregava à poesia, não a alheia, que o não preocupava muito, mas a própria, podia-se dizer que tudo mais se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo. O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem suporta a chuva, que não pode impedir.

Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os jornais prometeram analisar mais de espaço.

Dizia o poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte “vir assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas que todo aquele que sentia dentro de si o j’ai quelque chose là, de André Chénier, devia dar à pátria aquilo que a natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os seus verdes anos, e afirmava ao público que não tinha sido “embalado em berços de seda”. Concluía dando a bênção ao livro e chamando a atenção para a lista dos assinantes que vinha no fim.

Esta obra monumental passou despercebida no meio da indiferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao folhetinista.

O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal; só perdeu de vista o homem, porque o poeta de quando em quando lhe aparecia metido em alguma produção literária que o Dr. Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco. Não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene que escapasse à inspiração do fecundo escritor. Como o número de suas idéias fosse mui limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas coisas eram a mesma coisa dita por outro modo. O modo, porém, constituía a originalidade do poeta, originalidade que ele não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com o tempo.

Infelizmente enquanto se entregava com ardor às lides literárias, esquecia-se o poeta das lides forenses, de onde lhe vinha o pão. Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, numa carta que acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez”.

O Dr. Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o espírito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se.

— Ainda bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora, disse ele; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade.

— Tem razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas.

— Li há dias num papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias. Percebi a intenção. Acusava-me de não meter ombros a obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema épico!

“Ai!” disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada do poema.

— Podia mostrar-lhe alguma coisa, continuou Luís Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada.

— Muito bem.

— Tem dez cantos, cerca de 10.000 versos. Mas quer saber a minha desgraça?

— Qual é?

— Estou apaixonado…

— Realmente, é uma desgraça na sua posição.

— Que tem a minha posição?

— Creio que não é excelente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco das suas obrigações do foro, e que brevemente lhe vão tirar o emprego.

— Fui despedido ontem.

— Já?

— É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me.

— Mas… de que viverá agora? seu padrinho não pode, creio eu, com o peso da casa.

— Deus me ajudará. Não tenho eu uma pena na mão? Não recebi do berço um tal ou qual engenho, que já tem dado alguma coisa de si? Até agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras; mas era só amador. Daqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o pão.

A convicção com que Luís Tinoco dizia estas palavras, entristeceu o amigo do padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante alguns segundos — com inveja, talvez, — aquele sonhador incorrigível, tão desapegado da realidade da vida, acreditando não só nos seus grandes destinos, mas também na verossimilhança de fazer da sua pena uma enxada.

— Oh! deixe estar! continuou Luís Tinoco; eu hei de provar-lhes, ao senhor e a meu padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não me falta coragem, doutor; quando me faltasse, há uma estrela…

Luís Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancolicamente para o céu. O Dr. Lemos também olhou para o céu, mas sem melancolia, e perguntou rindo:

— Uma estrela? Ao meio-dia é raro…

— Oh! não falo dessas, interrompeu Luís Tinoco; lá é que ela devia estar, ali no espaço azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ela e menos formosas…

— Uma moça?

— Uma moça, é pouco; diga a mais gentil criatura que o sol ainda alumiou, uma sílfide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura…

— Escusa dizê-lo; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta.

— Meu amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu adoro-a…

— E ela?

— Ela ignora talvez que eu me consumo.

— Isso é mau!

— Que quer? disse Luís Tinoco enxugando com o lenço uma lágrima imaginária; é fado dos poetas arderem por coisas que não podem obter. É esse o pensamento de uns versos que escrevi há oito dias. Publiquei-os no Caramanchão Literário.

— Que diacho é isso?

— É a minha folha, que eu lhe mando de quinze em quinze dias… E diz que lê as minhas obras!

— As obras leio… Agora os títulos podem escapar. Vamos porém ao que importa. Ninguém lhe contesta talento nem inspiração fecunda; mas o senhor ilude-se pensando que pode viver dos versos e dos artigos literários… Note que os seus versos e os seus artigos são muito superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos aceitação.

Este desenganar com as mãos cheias de rosas produziu salutar efeito no ânimo de Luís Tinoco; o poeta não pôde sofrear um sorriso de satisfação e bem-aventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa de um advogado. Luís Tinoco olhou para ele algum tempo sem dizer palavra. Depois:

— Volto ao foro, não? disse ele com a mais melancólica resignação deste mundo. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco de quê? A troco de uns magros mil-réis que eu não tenho e me são necessários para viver. Isto é sociedade, doutor?

— Má sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas não há outra à mão, e a menos de não estar disposto a reformá-la, não tem outro recurso senão tolerá-la e viver.

O poeta deu alguns passos na sala; no fim de dois minutos estendeu a mão ao amigo.

— Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata de meus interesses, sem desconhecer que me oferece um exílio.

— Um exílio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos.

Daí a dias estava o poeta a copiar razões de embargos e de apelação, a lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquele emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O Dr. Lemos não lhe falou durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo poema.

— Está parado, respondeu Luís Tinoco.

— Deixa-o de mão?

— Conclui-lo-ei quando tiver tempo.

— E a folha?

— Deve saber que acabei com ela; não lha mando há muito tempo.

— É verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então acabou o Caramanchão Literário?

— Deixei-o morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta assinantes pagantes…

— Mas então abandona as letras?

— Não, mas… Adeus.

— Adeus.

Pareceu simples tudo aquilo; mas tendo-se ganho alguma coisa, que era empregá-lo, o Dr. Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse anunciar a causa do seu sono literário. Seria o namoro de Laura?

Esta Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos, nome que lhe parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto existiu esse namoro, e em que proporções correspondeu a moça à chama do rapaz? A história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe com certeza é que um dia apareceu um rival no horizonte, tão poeta como o padrinho de Luís Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o redator do Caramanchão Literário, e que de um só lance lhe derrubou todas as esperanças.

Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta florentino. Quando ele a acabou e emendou, releu-a em voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou a harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a sua melhor produção. O Caramanchão Literário ainda existia; Luís Tinoco apressou-se a levar o escrito ao prelo, não sem o ler aos seus colaboradores, cuja opinião foi idêntica à dele. Apesar da dor que o devia consumir, o poeta leu as provas com o maior desvelo e escrúpulo, assistiu à impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante muitos dias releu os versos até cansar. Do que ele menos se lembrava era da perfídia que os inspirou.

Esta porém não era a razão do sono literário de Luís Tinoco. A razão era puramente política. O advogado, cujo escrevente ele era, tinha sido deputado e colaborava numa gazeta política. O seu escritório era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente dos partidos e do governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a indiferença de um deus envolvido no manto da sua imortalidade. Mas a pouco e pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Já lia os discursos parlamentares e os artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo, porque naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou indiferença. Um dia levantou-se com a convicção de que os seus destinos eram políticos.

— A minha carreira literária está feita, disse ele ao Dr. Lemos quando falaram nisto; agora outro campo me chama.

— A política? Parece-lhe que é essa a sua vocação?

— Parece-me que posso fazer alguma coisa.

— Vejo que é modesto, e não duvido que alguma voz interior o esteja convidando a queimar as suas asas de poeta. Mas, cuidado! Há de ter lido Macbeth… Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Há no senhor demasiado sentimento, muita suscetibilidade, e não me parece que…

— Estou disposto a acudir à voz do destino, interrompeu impetuosamente Luís Tinoco. A política chama-me ao seu campo; não posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do poder, as baionetas dos governos imorais e corrompidos, não podem desviar uma grande convicção do caminho que ela mesma escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da verdade. Quem foge à voz da verdade? Os covardes e os ineptos. Não sou inepto nem covarde.

Tal foi a estréia oratória com que ele brindou o Dr. Lemos numa esquina onde felizmente não passava ninguém.

— Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta.

— O que é?

— Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo, e ser seu protegido; é o meu desejo.

O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco. Foi ter com o advogado e recomendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude, mas também sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de São Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguém de aumentar o pessoal militante; recebeu a recomendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia seguinte, disse algumas palavras benévolas ao escrevente, que as ouviu trêmulo de comoção.

— Escreva alguma coisa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe achamos propensão.

Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé. O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez; todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa da publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do protetor.

— Há de perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo aos amigos.

O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado à terra para endireitar os tortos políticos.

Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estréia política do ex-redator do Caramanchão Literário. Era assim:

Releve o poder — hipócrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés, conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela: é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometeu atado ao Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo ao suplício, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos que amam a verdade, o remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo.

Luís Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da estação literária veio a reproduzir-se na estação política; o protetor, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela, produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras — demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.

Algum tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de ficar batido. Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex-deputado Z.?”

Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado, lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena Câmara dos Comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís Tinoco ignorava até aquela data a existência de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e cautela perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico “para refrescar a memória”. O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe idéia dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que era e não era pimpolho.

Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho a grande aprazimento seu e no meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu, e armou-se de paciência para esperar.

Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não conservou levaram o jovem publicista à província natal do seu amigo e protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais. Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as que ali o demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses depois, colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa criou Luís Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar algum tempo. O padrinho já estava morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem família.

A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A idéia de possuir duas armas, brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe idéia crônica, presente, inextinguível. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, teve-a quando se enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe pusesse em dúvida o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe contestavam excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé profunda e intolerante — que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.

Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escritos da província, e contava-lhe singelamente as suas novas esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembléia Provincial era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte trouxe notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos consumados.

A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pôde ter a honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.

A noite foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís Tinoco via-se já troando na Assembléia Provincial, entre os aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloqüência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava mentalmente os gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província.

Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável até, para que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O ex-poeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou cinco daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem, e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do império, e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do comando ministerial.

Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro e o espírito a vagar por esse mundo fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como estava o dele naquela ocasião.

Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava observar, desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava assim:

Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até lá), nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la.

Inauguraram-se enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de falar que, logo nas primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas em que demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar, alçar, cair e bater com a mão direita.

O estilo também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite, a despesa à brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro. Toda a maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante.

Infelizmente os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse:

— Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna. Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da província. Imediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado.

Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.

O SR. LUÍS TINOCO. — O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados).

O orador: — Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camélias. Vejamos um goivo.

A Ela.

Quem és tu que me atormentas
Com teus prazenteiros sorrisos?
Quem és tu que me apontas
As portas dos paraísos?

Imagem do céu és tu?
És filha da divindade?
Ou vens prender em teus cabelos
A minha liberdade?

Vê V. Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembléia tem visto como ele trata as leis do metro.

Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.

Nem por isso Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava.

— Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi… Mas que tem, doutor? está espantado?

O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e camélias, o eloqüente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, — uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.

Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.

— Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos…

— Casado?

— Há vinte meses.

— E não me disse nada!

— Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo… Que duas criancinhas as minhas… lindas como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da província. Oxalá se pareçam também com ela nas qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!…

Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política.

— De vez?

— De vez.

— Mas que motivo? desgostos, naturalmente.

— Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.

— Pois teve ânimo?…

— Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar.

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O Chateado II

 O Chateado

II

 lopes al’Cançado de la rocha, o Cristiano

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Passaram-se dias. Dias reflexivos para um, dias ansiosos, como de costume, para o outro. Este último então, solicitou novamente o aconselhador.

__  Meu amigo, aqui estou de volta. Não estabeleci prazo para lhe deixar à vontade…tenho ciência de como é desagradável importunar os ouvidos de quem conhece bem a si mesmo e aos outros.

O chateado relaxou-se um pouco da ânsia e seu semblante sorriu. O sábio continuou:

__ Enquanto esperava seu chamado fui pensando no seu caso e, se me permite…

O modesto elogio ainda ressoava na atenção do moço que, perdendo-se na conversa, interrompeu:

__ Meu velho, creio finalmente estar diante de alguém que me compreende. Gravei na cabeça parte daquela nossa conversa do outro dia. E isso me fez gerar uma certa preocupação. Receio ter sido contaminado de aporrinhamentos e tenho medo de tornar-me pessoa birrenta, como são as pessoas que me chateiam. Não me lembro se lhe fui maçador daquela vez, mas se fui, peço-lhe desculpas.

O sábio guardou sua fala interrompida e deu sequência:

__  Não há de quê. Não se preocupe, meu amigo. O destino não costuma ser irônico com a sinceridade.

Retraindo-se, fingindo não entender ao certo a última frase do velho, o aconselhado saiu-se com meia concordância:

__  Faz sentido.

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O Chateado I

O Chateado

I

 lopes al’Cançado de la rocha, o Cristiano

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Ao devedor o cobrador é, mais das vezes, chato. O pedinte também se aborrece com quem não lhe efetua nenhuma doação. Já determinado atacante considera muito impertinente o defensor da equipe de futebol adversária. E assim vão se multiplicando as chatices, os chateados e, claro, multiplicam-se também as irritações.

Aconteceu que um dia, um sábio foi solicitado a aconselhar outro sujeito que andava sendo chateado por muitas pessoas. Humilde, educado e prestativo, recebendo a licença, o sabido iniciou a prosa:

___ O mais sensato seria evitar as pessoas que você considera chatas.

___ Mas são muitas…e preciso conviver com algumas delas, respondeu o sujeito.

___ Hum…então evite as que puder evitar e suporte as que precisa suportar. Separe-as conforme sua conveniência.

O chateado, expressando certa impaciência, foi alongando:

___ Mas é o que sempre tento fazer, porém vejo-me logo de saco cheio e, no fim das contas, acabo saindo das relações bastante zangado e dolorido.

O sábio então pensou por alguns instantes. Pensou mais um pouco e… encerrou a conversa:

___ O seu caso é bem específico. Perdoe-me se já lhe causo alguma chateação por aqui. Espero que não se zangue comigo. Jamais terei raiva de sua pessoa. Dê-me mais algum tempo para que eu possa pensar na questão e aí depois voltaremos ao assunto. Até breve.

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Colo inclinado

Colo inclinado

 Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

IMG_2837Imagem coleção lar. Casa Nacional do Livro, anos 60.

Enfiaram-se no meio de passageiros apertados num daqueles ônibus azuizinhos. No meio de gente de toda cor e caráter seguiram rumo ao centro duma Belo Horizonte. E ponto final. Treze de junho de 2017.

No abrigo rodoviário, quase uma tenda de tão vandalizado, peguei o casal no meio da conversa. Com o colo balançando dizia o homem com voz pulante:

___ Não sei de que feriado é depois d’amanhã…

Olhei-os naturalmente e rompi entregando um alegre bom dia. A mulher estranhou e sorriu. Então intrometi de vez:

___ É de Corpus Christi!

___ Aé…coisa de morto, essas coisas de acender vela, né?

___ Celebramos o sacramento do Corpo de Cristo. Feriado do calendário cristão. Dia santo. Vocês não são cristãos?

Nisso o ônibus veio freando para apanhá-los. Trocaram rapidamente a criança de colo…olhando para trás, arregalada, a mulher respondeu apenas por ela:

___ Eu não.

E partiram para o embarque.

___Vão com Deus __ eu disse.

Ao levantar a perna direita para subir no degrau, o colo inclinou levemente, bateu uma brisa na manta e o rosto da criança se descobriu. Se não era, pareceu-me um menino homem. De olhos fechados, o pequenino abriu-me o semblante e um sorriso. Entendi que havia me respondido:

___Amém. Fique com Deus também.

contato: lopeslarocha@gmail.com


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Conto dos Nupes

O Crânio falante

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Um caçador vai para a mata. Encontra um crânio humano antigo. O caçador pergunta:

__ O que trouxe você aqui?

__ Falar é o que me trouxe aqui __ responde o crânio.

O caçador sai correndo. Vai procurar o rei. Depois de o encontrar, diz:

__ Encontrei um crânio humano na mata. Ele pergunta como estão seu pai e sua mãe.

__ Nunca, desde que minha mãe me deu à luz, ouvi falar de um crânio morto capaz de falar __ diz o rei.

 

O rei manda chamar o álcali, o saba e o degi (juiz muçulmano) e pergunta-lhes se já ouviram falar de algo parecido. Nenhum dos sábios tinha ouvido falar naquilo, e eles resolvem mandar um guarda com o caçador à mata para descobrir se a história era verdadeira e, se fosse, saber qual a explicação para ela. O guarda acompanha o caçador à mata com ordem de mata-lo ali mesmo se tivesse mentido. Os dois encontram o crânio. O caçador dirige-se ao crânio:

__ Fale crânio.

O crânio mantém-se em silêncio. O caçador faz a mesma pergunta de antes:

__ O que trouxe você aqui?

O crânio não responde. Durante todo o dia, o caçador implora ao crânio que fale, mas ele não responde. À noite o guarda pede ao caçador que faça o crânio falar e, como ele não consegue, o mata de acordo com a ordem do rei. Depois que o guarda vai embora, o crânio abre as mandíbulas e pergunta à cabeça do caçador morto:

__  O que trouxe você aqui?

__ Falar é o que me trouxe aqui __ responde a cabeça do caçador morto.

 

Contos Folclóricos Nupes. A Gênese Africana: contos, mitos e lendas da África. Leo Frobenius e Douglas C. Fox. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. SP. Martin Claret, 2010.
 

O Sino de Ouro

O SINO DE OURO

Júlia Lopes de Almeida

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Maria Matilde tinha um sonho: fazer construir rente à baía de São Marcos, na sua linda cidade de São Luís do Maranhão, uma torre alta, muito alta, encimada por um enorme sino de ouro com os nomes de todos os Estados do Brasil, formados com pedras preciosas. Quando o sino badalasse, reboaria na atmosfera as suas sonoridades, acompanhadas pelo ritmo das ondas, e, quando os astros o iluminassem, rutilaria no espaço esplendidamente.

Mas a velha parecia não ter um vintém de seu.

Morava num casebre em ruínas, vestia-se de trapos imundos, comia só raízes e ervas do mato e bebia água na concha da mão encarquilhada e ossuda. Não tinha dinheiro para as necessidades da vida, porque, se lhe davam uma esmola, ela corria a escondê-la para __o sino de ouro__, e ia iludir a fome com os sobejos atirados pela caridade, ou um rabo de peixe chupado à porta de um pescador. Ninguém o sabia, mas o seu colchão estava já tão cheio de moedas que lhe magoava o corpo miserável, a ponto de preferir estender-se no chão duro, sobre uma esteira esgarçada.

Já tinha a sua idéia fixa, e para realizá-la seria precisa uma fortuna! A sua tôrre de ouro, com um sino cravejado de pedras preciosas, maravilharia o mundo inteiro…. Em casa ou na rua a visionária falava só, gesticulando, movendo no ar os dedos nodosos, de unhas grandes.

As crianças fugiam atropeladamente ao ver-lhe, de longe, o busto esguio; os adultos afastavam-se daquela imundície, e ela, passava sem ver ninguém, resmungando: — Quando o sino de ouro fizer: Ba-ba-la-ão! Ba-ba-la-ão! todo mundo dirá: “É o coração do Brasil que está batendo… Que lindo é e como bate bem!” E ela ria-se, sacudindo os longos braços magros, a repetir pelas ruas sossegadas: — O coração do Brasil está parado…. Quero fazê-lo palpitar com força… Ba-ba-la-ão! Dão! Dão!

Na noite de chuva e de relâmpagos, Maria Matilde chegou encharcada e tremendo com o frio da febre à sua choça; mas, logo ao entrar, esbarrou com uma pobre rapariga da vizinhança, que se ajoelhou chorando a seus pés!

Qual não foi o seu espanto! Se ninguém a procurava nunca…. Uns tinham medo da sua morada de louca, supunham-na outros feiticeira, o diabo em pessoa.

Ela parou no umbral, estarrecida; a outra exclamou de mãos postas:

— Maria Matilde, tem dó de mim! Minha madrasta, aquela má mulher, expulsou-me de casa e aos meus irmãozinhos, que foram mendigar por essas ruas quase nus…. É por eles que eu choro. Dá-me um filtro, Maria Matilde, para abrandar o coração de minha madrasta e fazer que meu pai abra a sua porta aos filhos pequeninos, que são inocentes e estão passando fome, sofrendo frio, com medo do escuro, por essas praias.
Se for preciso o meu sangue para salvar os anjinhos, toma-o! Abre-me as veias, aqui tens o meu corpo!

E a moça desnudava-se oferecendo os pulsos e o colo sùplicemente.

Maria Matilde, de olhos arregalados, dobrou-se toda sobre a linda cabeça da moça:
— Darás a vida por teus irmãos?
— Darei a vida!
— Jura?

— Juro! Aqui me tens, mata-me, se para bem deles a minha morte for precisa. Dizem que és feiticeira, mas o que tu és é surda! Não prolongues a agonia de meus irmãos, Maria Matilde! Aqui me tens!

A velha considerou a rapariga com espanto, depois, rapidamente, correu ao catre, sumiu as mãos trigueiras nos rasgões da enxêrga e atirou punhados de moedas, vertiginosamente, para o regaço da moça estupefata.

— Teus irmãos estão nus? Toma, vai comprar agasalho para eles! Têm fome? Dá-lhes pão…muito pão…. Toma! Toma! Toma! Vai para junto deles, boa irmã, vai com Deus!

A moça aparava aquelas moedas inesperadas num delírio de felicidade. A velha deu-lhe tudo, tudo, depois empurrou-a violentamente pela porta fora, fechou-se por dentro e desatou a chorar.

Como haveria ela agora de comprar o sino de ouro e construir a sua alta torre rutilante? Teria de recomeçar pelo primeiro vintém, e as costas doíam-lhe tanto… tanto! Ao menos nessa noite poderia dormir sobre o seu colchão… O que a fazia tremer eram aquelas cobrinhas de gelo que andavam a passear pela sua espinha… A cabeça estava-lhe girando…

Era a febre! Maria Matilde debateu-se toda a santa noite, com os lábios secos, os olhos em fogo, as roupas unidas aos membros doloridos.

Pela madrugada serenou e rompia a manhã gloriosa, quando ela ouviu a voz dulcíssima de um anjo dizer-lhe à cabeceira:

— Construíste esta noite a tua torre e por ela subirás ao céu!
Maria Matilde atirou para fora do catre as pernas finas, aconchegou aos rins os molambos da saia, aos ombros os farrapos de um xale e correu ansiosa para a praia.

A cidade dormia ainda; só os passarinhos despertavam cantando. No largo mar azul o sol nascente espelhava uma coluna de ouro tão larga e tão longa que ninguém poderia calcular-lhe as dimensões.

No ar voavam gaivotas até além, às nuvens de ametistas e de rubis, que engrinaldavam no horizonte a torre deslumbrante. Era a pedraria do sino que reluzia! Sumindo nela os olhos felizes e fascinados, Maria Matilde sacudiu os longos braços, gritando vitoriosa, antes de cair redondamente na areia fria:

— Ba-ba-la-ão! Ba-ba-la-ão! Dão… Da…dão…

Quando a miragem do sol se desfez, já a louca tinha subido pela torre de ouro até o céu!

Vocabulário

Encarquilhada (adj.): enrugada
Sobejo (s.m): resto
Nodoso (adj.): cheio de nós, proeminente
Esguio (adj.): alto e delgado; comprido e delgado
Filtro (s.m): beberagem de fins supersticiosos
Catre (s.m): leito tôsco e pobre
Trigueiro (adj.): moreno
Enxêrga (s.m): colchão de palha muito estreito
Regaço (s.m): colo
Estupefato (adj.): espantado, admirado
Ametista (s.f): pedra semipreciosa

Versão retirada da obra Conheça o seu Idioma, de Osmar Barbosa. CIL. SP. 1971. P. 123.

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Maracujá, flôr da Paixão

Maracujá, flôr da Paixão

Flor da paixão

Além de sua família, vovó adora também plantas, animais, crianças e poesia. Na verdade, ela adora tudo o que é bonito, ela diz que é “fã da beleza”, seja a beleza material, seja a espiritual. Ela é capaz de ficar horas e horas admirando uma flor, olhando para o céu estrelado ou ouvindo o canto de um pássaro, como é capaz também de chorar de pura emoção ao ouvir contar de um gesto nobre, de um esforço sincero ou de um gesto de amor ou de perdão.

Agora, o que ela gosta mais do que tudo é de escrever, contar estórias, e principalmente, de fazer poesias. Todos os netos já têm uma poesia sua. No fundo do quintal há um grande caramanchão de palha por onde sobe um lindo pé de maracujá. Uma vez, quando ele estava todo em flor, vovó mostrou essa flor, também chamada “flor da Paixão”, é estranha e linda. Ela dá na época da Quaresma, é roxa como a Paixão, e tem todos os símbolos do sofrimento de Cristo: a coroa de espinhos, a cruz, os cravos com que ele foi pregado e a lança que abriu seu lado esquerdo. É uma verdadeira jóia da natureza.

Lá nesse caramanchão, de vez em quando, vovó gosta de reunir os netos e contar-lhes estórias; às vezes são estórias de imaginação e fantasia, com aventuras de fadas e bruxas, outras são estórias verdadeiras, “casos” acontecidos de verdade, que são igualmente interessantes. Aliás, ela diz que a verdade é mais extraordinária que a ficção, que as coisas mais assombrosas e mais incríveis não são tiradas da fantasia e, sim, da realidade…

Maria Alice Penna de Azevedo, “Domingo é dia de folclore”. Introdução. Sobre Vovó Lita. P.6. Editora Paulinas. 1988.

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A alma du’a mulher na beira do rio

A alma du’a mulher na beira do rio

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História contada por habitantes da cidade de Leandro Ferreira/MG, numa região próxima à fazenda conhecida como “Fazenda do Souza”, isso por volta de 1955. Voz da gravação: Dulce Francisca Lopes Cançado Lobato.

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Coração de pai | Apólogo

Coração de pai | apólogo

Lopes al’Cançado rocha, o Cristiano

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CERTA feita, um texto meu foi criando rabo. Eu fiquei meio sem saber o que fazer. Deixei-o dentro dum caderno, sob outros cadernos, livros e apostilas. Com o correr do tempo, resolvi procurá-lo. Achei. Havia já perdido o rabo e criado pernas. Aquilo me estarreceu completamente. Assombrado deveras fiquei quando me percebi focado por um punhado de olhinhos. Cada letra “o” era um. Aspas eram cílios. O diabinho desgramou a pirraçar. “Contraíra doença de livros”, pensei, “ e agora?”

Patinhas como as dos antiquíssimos peixes não se demoraram. Teve a quem puxar quanto as orelhas. Eram idênticas às das minhas agendas; e quão idênticas! Testa quadrada, estilo margem superior de papel almaço; e a pele meio que com rugas de papel reciclado artesanalmente.

Verdadeiro espetáculo da evolução gráfica. Seu engatinhar era a coisa mais linda, a vontade de caminhar nem me falo: passos trêmulos sobre a pauta. “Que lindinho!”, diria algum tio solteirão.

Fez golfar alguma tinta. Pirraça. Fez sem vontade, quase não fazendo, e disparou – ao que me pareceu – a rezar idéias. “Donde vêm suas prévias concepções?”, perguntei-me. “Donde vêm? Poucos objetos ao seu dispor, quase nada familiarizado com sons ou sinais, nem tampouco com arranjos e convenções. Como pode isso gente?!”. Não era possível. Não poderia haver naquela criatura nenhum pensamento. Talvez alguma longínqua memória de outras encarnações, isto é, “encadernações”.

Veio à hora em que ele se atreveu. Deu para falar – pelas entrelinhas – disparates jamais ensinados por mim. O bichinho foi crescendo e a coisa se complicando.

Deixei aquelas jabuticabinhas mágicas me olharem por algumas noites. Não conseguia acreditar no que tinha inventado ou no que havia permitido inventar-se. E a cria foi necessitando criação, correção e, é claro, outros companheiros textuais. Pedia argumentos contrários a fim de se debater, de se repensar. Repetia em defeituosa dicção e de maneira infeliz: “_Sinto-me inadequado, principalmente quando sonho com meus antepassados. Fico sem assunto às vezes.”

Senti o amor e a compaixão entre pai e filho. Tinha a obrigação de recuperar a dignidade do meu rebento.

Desesperado, eu recorria aos esquemas e mecanismos e técnicas. Ordenava ao tubo cilíndrico da caneta, contudo não havia mais carga. Em pouco, a esfera não deslizava ao campo branco. Eu chacoalhava, esquentava o acrílico e nada; e soprava pela tampa, e outra vez nada. Cheguei a ver, mediante a translucidez do tubo, algum vestígio de letras. Pura ilusão! É essa coisa do operário ver no instrumento alguma esperança de trabalho.

O filhote me dizia: “Eu não pedi pra nascer!”. Eu respondia de chapa: “Não valeu à pena trazer-lhe à luz da página! ”. Passamos a andar a tapas e aos cuspes. Teria eu de parar por ali mesmo. Então eu disse por fim:

“Respeita seu pai, menino! É uma coisa ou outra: ou você volta para entre os maços da gaveta, ou vai morar na rua! ”

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O caso da ferramenta

O caso da ferramenta

Lopes al’Cançado rocha, o CristianoFoto0538

Peça rara é um desses senhores joviais disputado por solteironas na mesa do bar. É o sô Germano.

Ele tem seu jeito saboroso de contar histórias fazendo boca boa cheia d’água, pausando quando uma buzina rompe a conversa, pedindo aos ouvintes para ajudá-lo a retomar o ponto em que parou e, como se exige dum bom contador, dando a merecida importância ao passado e às vidas que já se foram. Sem pressa e bem compassado. É o porto seguro aos nossos ouvidos, pois pouco se diz do presente e menos ainda do futuro.

Nessa última noite de São João, o sô Germano nos contou um caso para aquietar os que não suportam desaforados prejuízos de forma alguma. Adiante as palavras são dele:

Em 1980 ganhei uma ferramenta não sei se alemã ou dos Estados Unidos. Só sei que…algum dos meninos lá de casa a emprestou para outro alguém da vizinhança e se esqueceu. O tomador também não se alembrou de devolver e assim ficou. Como dizia mamãe lá na época da roça: “quando é assim, amarra no rabo do capeta e esquece”. Foi o que eu fiz.

Depois duns mais ou menos quinze anos eu precisei duma chave para sanar um vazamento lá em casa. Comentei da precisão e uma vizinha ouviu. Ela entrou correndo para casa dela…, mas correndo mesmo como quem corre para socorrer. E voltou com a cara meio que indecisa ou até meio arrependida. E alguma coisa na mão. “Olha essa daqui sô Germano, vê se essa te serve”. Era, por essa luz que me ilumina, a chave que eu tinha ganhado em 1980.Tanto era que estava lá no cabo a marca dum desgaste provando ser mais minha ainda. “Mas vou dizer uma coisa”, continuou ela, “empresto só porque é para o senhor; se fosse para outro, jamais. Só peço, se o senhor não se importa senhor Germano, que tenha muito cuidado no uso”, disse a dona com aquela mais pura inocência e verdadeiramente sentida, sabe? “ Porque essa ferramenta é a coisa que mais me faz lembrar do meu filho. Deus o tenha…” e olhou para o chão ao invés de olhar para o céu.

Então eu disse: “não dona…, não quero incomodar preocupando a senhora, deixa que arrumo um jeito ali com fulano e coisa e tal”…né? A dona, mesmo assim, insistiu que eu tomasse emprestado dizendo inclusive que se seu filho estivesse vivo seria eu a única pessoa da rua a quem ele emprestaria. E por fim pediu, quase que se humilhando, que eu aceitasse a ajuda por consideração à família, meio que em memória do falecido.

Fiquei tão desapontado que peguei a ferramenta já agradecendo de antemão, fiz o reparo mais que depressa e devolvi antes do almoço, agradecendo também no ato da devolução. À noite rezei três vezes a Ave Maria e cinco vezes o Pai Nosso pela alma do filho e pela bondade da mãe.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano é escritor e compositor de Santa Luzia,MG, Brasil. Publicou “poemas e canções” em 2001 (independente e auto-financiado), “à espreita da aurora” em 2014 (coleção de canções na internet ) e  atualmente trabalha em dois projetos artísticos: finalização de seu 2º álbum virtual de canções e manutenção desse site.

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Página 101 – Conto

Página 101

 lopes al’Cançado rocha, o Cristiano

fotografia: Charles Tôrres Charles_Tôrres_fotografia

Havia sonhado com a ressurreição de Cristo. Às 06:45 da manhã tomou o ônibus, debitou o valor da passagem no cartão magnético, passou pela roleta e sentou-se num dos bancos que deixa passageiros uns de frente para os outros. Batom rosa e leve maquiagem. Mas o franzido na testa não conseguiu tirar. Carregava também na cabeça um programa policial de televisão que seus familiares assistiam. Encaixou o fone no ouvido e o rádio sintonizou aleatoriamente uma estação de noticiário alvissareiro. Procurou músicas, mas a conversação dos passageiros e o barulho do trânsito impediam a audição. Cumprimentava os conhecidos com um sorriso brando, tímido. Tirou o livro da bolsa e abriu na página 101. Tentou ler e não conseguiu. Fechou o livro. Fechou também os olhos e se pôs a pescar um cochilo. Acabou pescando, em seu rio de preocupações sonolentas, a pura realidade. Chovia já por semanas. O vidro sujo da janela do ônibus embaçado e manchas de imagens lá fora. As janelas fechadas, um braseiro. O ônibus era uma imensa lata velha de sardinha aquecida. A tarifa havia sido aumentada em 5,17% dias atrás.

Em sua pescaria de realidade e falas cruzadas dos outros, o rosto envelhecido de uma senhora, vociferando não só com a boca banguela, mas também com os ombros: “por mais que você goste de alguém, não dê a ninguém a sua vida.” A velha falava e fazia caretas. Sem muita demora, uma freada brusca interrompeu o instante. Um grito de filho da puta motorista despertou o cochilo. Outra frase, “ô motorista, cê num tá carregando cavalo não sô, cê tá carregando é gente” trouxe por fim a sensação de alerta. Ela se recompôs. Abriu melhor os olhos e reconheceu onde estava. Estava em mais uma viagem de casa para o trabalho, uma hora e meia de viagem, viagem que fazia desde seus 15 anos, quando começou a trabalhar como office-girl. Já fazia 16 verões de muita trabalheira, aquele percurso diário, de segunda a sábado.

Apesar dos sustos das freadas e dos gritos, ela conseguiu segurar o enunciado na mente. “Por mais que você goste de alguém, não dê a ninguém sua vida”. Foi repetindo no pensamento até desembarcar no centro da cidade.

No centro de BH, tudo lhe passava rápido e assustador. Os vendedores ambulantes, os vendedores nas portas das lojas e suas cantadas grosseiras: “nossa que trem gostoso; oi morena, tá delícia hein?” O cheiro de maconha na porta do café Nice. As mulheres penduradas em bolsas, os carros acelerando e freando no asfalto como se lutassem num tatame, os aposentados jogando xadrez, os batedores de carteira, os estelionatários, pregadores protestantes, tudo lhe queria desviar para outros mundos, explodindo em seus ouvidos que a vida seria mais difícil ainda.

Mas aquele imperativo de não dar sua vida a ninguém chegou tarde. Ela já tinha se entregado a ele. Casados já havia cinco anos. Um casamento frio sem traição nem filhos. E nos seus 34 anos ela sempre ouvia dele que não queria filhos. E seio sem filho seca. No entanto, ele uma vez e outra dizia que já tinha o carro, e que era como ter um casal de filhos, em termos de despesas. Ele dizia isso sem se dar conta da alma materna dela, igualando criança a carro em tom humorístico, achando-se criativo até. Nos finais de semana ele só fazia lavar o carro, dar uma voltinha no bairro, bater uma peladinha, tomar uma cerveja com os amigos, almoçar, cochilar, assistir futebol e dormir. No boteco perguntavam: “não vai arrumar um meleque não, véi?” “…que isso, nêgo, agora não posso arranjar outro menino, já tenho o Pretinho que me dá muito gasto”, ele respondia apontando para o Uno preto 4 portas.

O carro estava no nome dele, só ele dirigia. Porém custava mais a ela. A esposa era quem pagava as prestações e o seguro. Afinal ganhava quase três vezes mais do que o marido. Ela ia trabalhar todos os dias de ônibus. Ele ia com o carro. Não dava para levá-la ao serviço, pois a empresa em que ele trabalhava era do lado oposto ao centro da cidade.

Ela cansada daquele desânimo maquinal e automático. Uma vida sem viagem de lazer, sem clube nem festas, sem “um pulinho de cerca”, sem pimenta, e o pior de tudo: sem filhos. Estava cansada e insatisfeita, mas não dizia a ninguém, não desabafava, e o pior de tudo é que ninguém reparava na situação. Ninguém, nem seus pais, irmãos, amigas, colegas de trabalho, o marido muito menos.

Quando ia à casa de seus pais, só ouvia conversas sobre dinheiro, ganhar dinheiro, conseguir comprar isso e aquilo, adquirir, investir. A economia do país estava forte. Prosperava até o mercado de venda de cofres caseiros contra as instituições bancárias. E ele, o marido, entrava na roda e debatia com os cunhados sobre o mercado de veículos, sobre salários e classes, “quanto ganha um motorista de ônibus, quanto ganha um corretor de imóveis, um pedreiro autônomo etc.”. Ela ficava na cozinha com a mãe. As duas tão atarefadas que nem tinham tempo de falar sobre a vida. Ela sentia-se com sua vida entregue. Com sua vida, seu suor e seu corpo entregues. Só lhe restou, por inteiro, a alma, onde guardava às escondidas todo seu sofrimento. Pensava ter cometido o pior erro do mundo, como disse a velha loira desdentada durante a viagem dentro do ônibus.

Ele ia poupando seu salário, planejando trocar de carro pelo menos de dois em dois anos; ela seguia sustentando a casa e engolindo a seco o resto de vidinha que lhe sobrava. O salário dele era só dele, mas o dela era dos dois: eis o mais valioso segredo da intimidade do casal. Autêntica sociedade conjugal por detrás das cortinas da formalidade. Ela não desabafava com ninguém. Não por medo ou insegurança, mas porque não era mesmo de conversa. Além de tudo detestava alugar os ouvidos dos outros. Tinha preguiça de enfrentar a cara de desdém das amigas e ao final ouvir o vago conselho de “pede o divórcio ou mete um chifre nele”. Se elas soubessem o quanto ele cozinhava não diriam para acabar o casamento. Na verdade, tinha preguiça — e não medo — de chutar o balde e ter de criar asas, achar novos ares, construir novo ninho e buscar felicidade. E como se não bastasse, foi ela quem entregou a mão em casamento, antes mesmo de o noivo pedir. Desmanchar casamento é fácil, difícil é recomeçar sozinha uma vida de divorciada, ela pensava cautelosamente.

Morria de inveja de Josiane, sua amiga. Josiane era mãe solteira, viajava, deixava o filho com os avós e curtia a vida. Vestia Índia, fazia quantas tatuagens vinham-lhe na cabeça, trocava de ficante quando lhe convinha. Brincava com o corpo e com o coração, praticava Kama Sutra (sem cama). Foi Josiane quem lhe aplicou a linha do pensamento da “Biografia Humana”, uma forma de compreender a vida com base no passar de 7 em 7 anos. E ela se aproximava dos 35: cinco vezes o sete.

Era muita coincidência. Aos sete anos foi adotada, aos 14 perdeu a virgindade, aos 21 deu o primeiro verdadeiro beijo. Aos 28 se casou. Aos trinta e cinco aconteceria um novo marco.

Nessas alturas, naquele secreto e inconfidente desconforto, ela carregava um desejo macabro. Uma saída vinda dos desígnios do destino: ficar viúva por uma fatalidade. Ficar viúva lhe seria uma salvação sem culpa. Desejava que ele morresse e assim poderia recomeçar a vida, recuperar sua liberdade com mais alívio, pois a alma do marido estaria no além, sem lhe perturbar, sem lhe causar remoço. Mas ao mesmo tempo em que pensava e desenhava esse desejo esquisitão, algum arrependimento vinha na fantasia. Por mais que ele fosse superficial e estúpido, era carinhoso, meio meninão mimado, mas de atitude, muitas vezes prestativo e um bobão alegre que valesse à pena. Tinha um coração egoísta, porém atitudes de pai protetor.

O mais doído era quando ouvia a gratidão da sogra: “graças a Deus meu filho achou você, uma mulher certa, que cuida dele melhor do que eu”.

Chegou finalmente o dia. Ele se acidentou quando dirigia seu carro-xodó. O veículo se perdeu totalmente e por azar o seguro tinha acabado de vencer; estavam para renovar, mas não deu tempo. O prejuízo foi grande. Permaneceu o motorista por 20 dias na UTI. Ficou naquele vai ou não vai. Morre ou não morre. Ela andava pelos corredores do hospital entre cigarros e cafés, pensando em sua liberdade sem culpas, olhando a dor da família do marido, ouvindo as rezas, calculando o custo do velório, sofrendo antecipadamente o luto e gozando mais à frente sua viuvez desimpedida, depois de passado a dor da perda.

Então veio o pior. O homem sobreviveu, e paraplégico. Para todos foi uma dádiva das graças de Deus. As próximas palavras da sogra lhe cairiam como um fardo muito maior: “agora, minha filha, ele vai precisar de você como nunca, por tudo que ele te fez, eu peço que tenha paciência e perseverança para redobrar os cuidados com meu filho que sempre lhe foi um bom marido”. “Bom marido o quê, esse filho da puta me explorou o tempo todo; o tanto de bom que ele me foi era para ganhar de volta o meu suor”, ela cuspiu na mente.

Dali para frente ela passou a ser — a um tempo só — esposa sem filhos, mulher sem sexo, dona de casa, arrimo de família e enfermeira. Carregava-o até o banheiro, empurrava o cadeirante, acalmava os pesadelos. Ouvia as injúrias do injustiçado nos seus momentos de mal com Deus. Uma hora e outra a incapacidade do infeliz o fazia revoltado e desgostado da vida.

Foi um dia, numa daquelas suas viagens de ônibus do trabalho para a casa que ela retomou a página 101 do livro que havia fechado há tempos. Na décima quarta linha da página lia-se uma frase que ela guardou para si e não confessou nem mesmo ao mais íntimo pensamento. A frase morreu no silêncio de sua leitura…

Dias depois, num tempo nublado, quando os dois passeavam pelo parque municipal, ele colheu uma flor. Entregou a ela junto de um beijo na testa. Os dois choraram ali uma chuva de emoções que até mudou o tom do canto dos passarinhos, se abraçaram e continuaram juntos e tristes. Nasceu ali um novo casamento.

Até que depois de algum tempo a morte dela, por estafa, os separou aqui neste mundo. Ele viveu mais uma semana antes de também falecer. Alguma vizinha espalhou a superstição de que ele, mais veloz do que seu carro-xodó, voou atrás da alma da esposa. Uma senhorinha mais entendida atrapalhou o mistério: “…nada boba, morreu atrás por causa de desgosto mesmo. Essa coisa de dizer que uma alma persegue outra é imaginação que o povo toma emprestado dos livros.”

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano é escritor e compositor de Santa Luzia/MG. Publicou “poemas e canções” em 2001 (independente e auto-financiado), “à espreita da aurora” em 2014 (coleção de canções na internet ); EP-Cristiano em 2016, [Epopéia do Cidadão Geral e Cancioneiro Urbano Montanhês] em 2017 e  atualmente publica textos e edita o Pingo de ouvido: Literatura Brasileira e Memória Cultural.

Visite o site do fotógrafo Charles Tôrres : http://www.bhumafotopordia.com/

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Uma fábula e um conto que apanhei na porta da galeria

Cabeçalho_ouvidor

História_1
Fábula
História_2
Conto

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