JOÃO, MAIS UM FILHO DE NOSSA ORGULHOSA BAHIA DE SÃO SALVADOR

JOÃO, mais um FILHO de nossa orgulhosa BAHIA de SÃO SALVADOR

Entrevista

por Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano

Em certas rodas aqui por Minas, algumas vozes têm dito que entre os nascidos na Bahia, nenhum outro poeta recente tem se destacado quanto João Fernandes Filho. Os menores no Reino da Poesia conseguem facilmente dele uma entrevista especial, devido sua generosidade. Esse é o nosso caso.

João, conte-nos um pouco da sua infância, sua relação com a família e comunidade, sua região, sua terrinha. O escritor brotou na alma muito cedo, como nós leitores seus fomos informados. Queremos saber mais disso.

Minha infância se passou em Bom Jesus da Lapa, interior da Bahia, e tive o amor, a proteção e a liberdade necessárias dos meus pais para viver uma meninice pobre, mas riquíssima em aventuras – brincar na chuva, brincar de roda, ouvir histórias na noite em frente à casa etc. –, passar as férias na casa do meu avô materno, em cima da serra, a luz era de fifó, e a água no pote buscada na fonte. Na rua Santa Luzia, no Bairro São Miguel, em Bom Jesus da Lapa, não havia calçamento, e, após as chuvas, encontrávamos pequenos cágados nas poças de lama. A mata era próxima, o rio era próximo. Meus pais – seu João Galego e dona Dilza – cuidaram de nós, meus irmãos e eu, com raro amor e responsabilidade. Agora, por meio de sua pergunta, revendo tudo isso, percebo que tive uma infância lendária por ser simplesmente isso – uma infância comum de menino do interior do Brasil na década de 1980.

Quem é João Filho? De onde veio, onde está e para onde pretende ir?

Sou um pecador. Vim da lama, estou tentando ser limpo pelo Cristo; o problema, é claro, não é Ele, mas eu que atrapalho. E, pela misericórdia d’Ele, tenho a esperança de morar nem que seja no último casebre da periferia do Céu. Em termos pedestres, João Filho é poeta e professor, doutorando em literatura portuguesa na USP. 

Como foi a experiência rebelde de escrever letra de canções punk? Como está o letrista João hoje? O que tem ouvido? Qual o conselho que João daria aos letristas iniciantes?

Uma das minhas primeiras experiências literárias foi uma letra que escrevi com um amigo. Se não me engano, acho que com 13, 14 anos. De lá para cá, eu escrevi letras para os ritmos e gêneros mais diferentes, do punk como você indicou até o famigerado arrocha.

Hoje, os parceiros musicais mais constantes são compositores da linha do bom cancioneiro tupiniquim.

Ouço muita coisa. Para ficarmos em dois exemplos do momento: o primeiro disco do Clube da Esquina e Arvo Part.

O conselho é simples, e, acredito, todos os jovens letristas saibam: na letra prevalece a música, mas não deixem jamais de escrever letras belas, boas e verdadeiras.

Essa predileção pelo teatro lido ao assistido, queremos saber.

Na verdade, é uma deficiência minha. Tive, claro, contato com a área, escrevi uma peça – Auto do São Francisco –, mas não sou do métier do teatro. Para mim funciona mais ler a peça do que assisti-la no palco, o que é um contrassenso porque o teatro acontece no palco. Se as declamações forçadas de um poema me aborrecem, assim também as encenações antinaturais (eu sei que o termo é perigoso ao se falar de teatro) me entendiam sobremaneira.    

Genética. Processo de criação. “Faço tudo no facão, depois tomo o estilete”. A fase artesanal ajuda a alma mesmo? Há quem considere que uma coisa é desligada da outra. Explique o seu caso.

Na poesia, eu tento lapidar no momento mesmo da primeira escrita. A cada verso procuro a melhor construção sonora e imagética dentro de um contexto que faça sentido. Claro, que, depois, relendo antes de publicar em livro, eu refaço alguns versos. Tenho um arquivo imenso com poemas que não deram certo, ou que não gostei, ou que ficaram pela metade etc. Aproveito muito desse arquivo. Guardo também imagens, e até mesmo palavras, surgidas ao longo dos anos, e que, algum dia, poderei usar num verso.   

Na prosa é que faço anotações de ideias, cenas, diálogos para somente depois rearrumar, reescrever etc. Ao escrever prosa sempre refaço depois.

Forjar manifestos, escolas, movimentos hoje em dia soa cafona por quê? Para quem?

Não sei se soa cafona, mas os grupos são necessários. Escritores, de alguma maneira, sempre encontram sua “turma” estética mesmo que ideologicamente não se coadunem. Situação cada vez mais rara porque as ideologias têm prevalecido acima de todas as relações humanas. O que é uma coisa miserável. Mas, respondendo sua pergunta: cada poeta, consciente do seu ofício, possui uma cosmovisão, o que quer dizer, em outras palavras, traz escondido um manifesto, uma estética. No atual cenário brasileiro, e vejo também em outros países, a dimensão estética é a mais desprezada nos mais variados gêneros artísticos.

Proseie mais do poeta-balconista, comerciante, atendente, distribuidor de congêneres. Em verso, esse tema econômico e vital interessou bastante ao entrevistador, que defende a Rerum Novarum, o distributivismo justo. “Suum cuique tribuere” 《Dê a cada um o que é seu》》. Uma das unidades da Justiça ensinada por Ulpiano. O poeta Antônio Augusto de Mello Cançado, incansavelmente, reensina-nos até hoje aqui em Minas. (?) 

A Venda do meu pai, João Galego, é um dos meus lugares míticos. Fui criado dentro da Venda (sempre com inicial maiúscula). Quando me perguntam das minhas influências literárias, eu uso a figura do poeta-balconista que sempre rouba um pouco de cada freguês-escritor que aparece no balcão da Venda. Escrevi muitos poemas que falam ou fazem referência à Venda e ao seu universo, mas há um que não posso ler em público porque não seguro as lágrimas, é o “A Venda por dentro”, do livro Auto da Romaria. O poeta-balconista, em outra perspectiva, é também um atendente que procura servir caridosamente os seus leitores. Um leitor é o maior presente para um poeta. Ninguém é obrigado a ler o que escrevemos, a comprar o livro que publicamos; devemos conquistar esse leitor com uma escrita que contenha algo daqueles versos de don Antonio Machado: “umas poucas palavras verdadeiras.”

Colecionamos muita poesia dos anos 60, 70, 80, 90 e da dita “Poesia da Era-Lula”. Nesta última, gargalos das anteriores, a meu ver, predominou as forças demasiadamente sensitivas, engajadas no coletivismo autoritário, utopia do socialismo-XXI. Em seu livro-balancete “Dez anos que encolheram o mundo (2001-2010)”, Piza aponta a migração e o exílio como temas repisados na prosa. Incrível como as 《《editorias enviesadas e dirigidas 》》de literatura antecipam os efeitos e consequências das sementes ideológicas. Hoje vemos os venezuelanos, os nossos exilados políticos, as perseguições e as injustiças. Na poesia (2001-2010), Daniel destaca Ferreira Gullar e Fabrício Carpinejar apenas. Qual sua opinião sobre esse balanço do jornalista?

Não li o livro do Daniel Piza. Mas concordo com o resumo que você faz. Direi o óbvio (cada vez mais é vital ser dito): literatura é a arte da linguagem trabalhada artisticamente. É preciso distinguir que linguagem nesse sentido não é beletrismo, e nem o seu contrário – o desleixo. É necessário equilibrar três pilares muito bem compilados por Bruno Tolentino: abrangência, profundidade e feeling (sentimento e sinceridade). Sustentados por esses três pilares a linguagem engendra a forma. A forma é a alma da obra (forma e não fôrma). Sem isso não há obra de arte em gênero algum. A melhor poesia moderna ou pós-moderna não fugiu desse caminho.  

Não concordo com Daniel Piza no destaque de dois poetas apenas nesse período de 2001 a 2010. Entre os mais velhos, a grupo de 1965 de Pernambuco estava atuando e com renome nacional – Alberto da Cunha Melo, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly etc. Entre os mais jovens – Érico Nogueira, Astier Basílio, Mariana Ianelli etc. Cito apenas alguns nomes de destaque nacional.

Daniel Piza incomodou muitos “coletivildos tirânicos”, pelo que sei. Mas nesse caso somos dois na discordância. Serão procurados e lidos seus autores citados. Vamos falar um pouco de crítica literária. Em 2005 o Sr. Wilson Martins disse no Caderno Idéias do Jornal do Brasil: “só sou conservador na medida que a literatura é conservadora. Não se pode revolucionar a literatura todos os dias.” Comente, por favor.

Grande Wilson Martins! Em alguns pontos de vista (por sinal, é o nome da coleção em vários volumes de sua crítica que abarca de 1954 até 2000), eu não concordo com ele, um exemplo entre tantos: sua leitura historicista da obra de Cecília Meireles. Contudo, Wilson Martins foi um gigante da crítica brasileira e não apenas literária. Estou de acordo com o comentário que você destaca do escritor paranaense. Revolucionar a literatura todos os dias é tentar recriar a roda, esquecer a imensa história da literatura que nos antecede, de Homero para cá são mais de três mil anos de escrita literária! Há que se ter um mínimo de noção e humildade com esse quase infindável acervo. O surgimento de um James Joyce, de um Guimarães Rosa (cito os grandes revolucionários) é o ápice de um período que, por acúmulo e verticalização, radicalizou os experimentos na arte romanesca. E como disse o grande mineiro é no “mais mesmo da mesmice que vem a novidade.” Sei, claro, as formas literárias caducam, precisam ser renovadas, mas, antes, é a sensibilidade nova que pede formas novas, novos caminhos. E sensibilidade não é feito a moda que muda toda semana. Desse modo, as tais revoluções da literatura apregoadas todos os anos não passam de repetições mecânicas. Quem revoluciona o tempo todo não percebe paradoxalmente a imobilidade cadavérica do seu estado.

O escritor Douglas Lobo frisa sobre “a ingênua expectativa” do Afrânio Coutinho a respeito da atividade crítica migrar dos periódicos para as universidades; já outros autores se entusiasmaram pelo fato da crítica migrar das universidades para as redes de internet. No primeiro caso, teríamos um aperfeiçoamento do gênero; no segundo, por sua vez, ganharíamos mais liberdade e acessibilidade.  Como o senhor vê esses fenômenos relacionados a suportes, ambientes, jargões etc.?

Vale deixar registrado aqui um livro que mapeia essa mudança – da chamada crítica impressionista (termo pejorativo cunhado por Afrânio Coutinho) para a crítica universitária – Crítica literária em busca do tempo perdido? De João Cezar de Castro Rocha.  

Outro registro que acho necessário: é um abuso tratar como diletantes críticos da excelência de Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Sergio Milliet, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Eugênio Gomes, Brito Broca, Fausto Nilo etc. Pois foi isso que fez uma boa parte da crítica universitária. Esta, no entanto, não pode ser ignorada, porque há material de altíssimo nível.   

Com a mudança do suporte deveríamos ganhar mais espaço e liberdade. Por exemplo: na internet o espaço e a liberdade são maiores, e quem desejar é só escrever, mas a qualidade é muitas vezes duvidosa. O jargão, não obstante, é inescapável. É assim em todas as áreas, não é mesmo? Claro que há exageros. O suporte em si mesmo é algo bom. A internet, para o pesquisador sério, é uma ferramenta, hoje, inescapável.    

Não sabia que Fausto Nilo escreve crítica. Deve ser ótimo, pois é arquiteto e compositor. Um ensinamento como “O ideal do Crítico” de Machado de Assis e os apontamentos de um José Veríssimo guardam ainda alguma utilidade para os dias de hoje?

Li os dois autores, mas confesso de que não me lembro de quase nada da crítica deles. Teria que relê-los para responder sua pergunta.  

“O advogado é o poeta da Justiça. O poeta é o advogado da beleza”, disse José Martiniano de Alencar. Quais seriam as responsabilidades de um poeta nos dias de hoje nessas questões de ética, estética, direitos humanos (direitos culturais), justiça e paz social?

A primeira responsabilidade de um poeta é escrever boa poesia. Seu ofício tem como base o bom, o belo e o verdadeiro. A dimensão estética vem sempre em primeiro plano. O resto vem por acréscimo. Se ele deseja fazer justiça e promover a paz social, então, vá cuidar dos pobres e oprimidos. Mas em nome de Deus e não de uma ideologia qualquer.

Filosofia. No poema Luz Primeira, da terceira parte do livro A dimensão necessária encontramos a relação conflitante do atomismo grego com a genealogia judaica. Origens dos elementos (lumens e sons), o firmamento, as criaturas tais e quais. Poderia nos dizer de seu percurso nos exercícios filosóficos? Mais por questões, problemas e sensações ou mais pela historiografia?

Com certeza pelas questões e problemas que me surgiram ao longo da vida. Não sou filósofo, e, acho, não tenho capacidade para tanto. Mas algumas questões filosóficas básicas foram intuídas desde quando eu era menino. Claro, com a intuição infantil. Uma delas na quarta série primária, e eu só soube o nome décadas depois: o infinito quantitativo. Numa aula, a estagiária falou que poderíamos perguntar o que quiséssemos. Eu fiquei intimidado porque ela me pareceu com cara de poucos amigos, apesar de permitir as perguntas. No entanto, meu pensamento de menino partiu de onde estava, em Bom Jesus da Lapa, e foi se ampliando em círculos concêntricos cada vez maiores, Bahia, Brasil, América do Sul, planeta terra, Via Láctea, e esbarrou nessa imensidão. Minha pergunta seria se não tivesse ficado intimidado: – E depois? O que é que há depois? Porque, para o menino ali, o que vinha depois era um imenso vazio branco. Eu não conseguia ultrapassá-lo de nenhuma maneira.  

Assim, minhas leituras filosóficas foram feitas a partir de questões que me surgiram ao longo dos anos. Mas também me apoiei na historiografia. O eixo geral de minhas perguntas é comum à história da filosofia – de onde viemos, para onde vamos, quem sou eu e o que faço aqui. Nada de novo.

Pergunta frequente. Afinal, poesia lírica é ou não é traduzível? Anderson Braga Horta diz que “alguns proeminentes autores dizem que não, mas os tradutores não acreditam e traduzem sem parar (…) território nebuloso, ambíguo.” Como João Filho imagina o efeito de sua poesia no leitor pensante e falante em outros idiomas?

A tradução é uma aproximação ao que foi escrito na língua de partida. E a tradução, de qualquer área que seja, é a veia aorta que ajuda a bombear vida às culturas. Quem é que conhece todas as línguas? Logo, é vital a tradução. Terá sempre perdas e ganhos, óbvio.

Está aí uma pergunta que nunca me fiz. Sério mesmo. Pensando nisso agora, eu mais desejo do que imagino: que os meus poemas, ou um verso, possam abrir uma pequenina janela de luz no coração do leitor estrangeiro.

Subsídios ( dois dos autores citados pelo entrevistador):

https://editoradanubio.com.br/o-futuro-da-literatura-brasileira-douglas-lobo/

Douglas Lobo

Daniel Piza