Um caso de três tragédias | Conto

Um Caso de três tragédias | Conto

Era início de dezembro do ano de 2018, depois de forte chuva, transbordamento do Onça e do Arrudas, quedas de árvores e de energia…ah bom, a falta de eletricidade obrigou o Sr. Helvécio a pegar o rádio movido à pilha. Lenoxx Sound Rp 60, tablete cinza de alça preta e antena expressiva, elegante no design. E o Sr. Helvécio não perde a oportunidade de sair pelas ruas com o seu Lenoxx, na altivez dum pastor sucedido carregando sua bíblia.

São os homens sociáveis exibindo suas armas de comunicação, ferramentas que alimentam as cabeças; esquentam as conversas e as discussões; apimentam a curiosidade pelas empresas do futebol, fortalecem as opiniões políticas e nutrem as grandes questões morais da sociedade.

– O Du disse que vão vender o goleiro do Atlético para um clube da Arábia. Mas pelo jeito é mentira. Não deu nada disso na Itatiaia.

No começo era só o livro, depois vieram o teatro, o folhetim, os panfletos e cartazes, o rádio, o cinema, as revistas. Por fim a televisão e o computador pessoal. Não cheguemos até os dias de hoje, nos aparelhos de telefones móveis, com tudo aquilo, somando-se aos acessórios e aos vídeos-jogos: essa avalanche perturbadora de informações maçantes, em cadeia e distribuídas em rede.

Já por volta das vinte e duas horas, a lua se expunha no seu quarto crescente, numa noite após à primeira tempestade do mês. Era frio e era calor, a depender da esquina que se curvasse naquele bairro de Stª Efigênia dos Negros e dos Militares.

O Sr. Tarcísio anunciava o fechar das portas, quando olhou para o céu à procura de sinal do tempo, abriu a boca como um animal regido, largou as cadeiras que recolhia – havia sido tomado por alguma lembrança marcante –, e passando para dentro do balcão, começou:

– Rádio é bom que a gente não precisa abrir os olhos. Pode deitar, descansar as vistas e só escutando fica sabendo de tudo. Vai misturando as notícias e as músicas com cochilo – disse isso olhando para o aparelho Lenoxx.

– A gente descansa as vistas das imagens, é isso aí Sr. Tarciso… apoiou um frequentador menos velho, estilo heavy metal.

Respeitemos a preferência do Sr. Helvécio:

– Esses rádios de celular não prestam porque só funcionam com fio de ouvido. O bom mesmo é ouvir as coisas com o rádio solto, de alto-falante livre.

E dito os pitacos dum outro botequeiro qualquer, tratando a todos sempre como “meu amigo”:

– Meu amigo, rádio ainda é bem melhor que aquela bagunça da internet. No rádio é tudo dentro dos horários, não precisa de ficar procurando as coisas; tem lá os programas de piada, o aviso de tempo e do trânsito, os comentários dos jogos, o resultado da loteria e do bicho, as notícias, as horas certas, as músicas…é só ligar nos momentos certos.

– As músicas eu escuto, mas logo fico enjoado da repetição delas – reforçou o Sr. Helvécio.

– É… rapaz – confirmou o Sr. Tarcísio, tomando de volta a vez da fala e emendando mais um de seus casos. Como de sua mania, iniciava a contação já no meio da história – … chamava-se Jocélio, mas o apelido era Churrasco: “ô Churrasco, vem cá!” Ele tinha um violão velho, ficava na cama de colchão de palha, deitado como se fosse sua mulher. “Tenho um ciúme danado dessa bicha”, o Jocélio falava. Ele tinha o violão como viola, sabe? Mas só depois da desgraça toda é que fui saber que’ra violão. Não conhecia essas coisas. Não sabia o que era um ou outra. Tanto violão como viola, para mim, eram uma coisa só.

O Antônio já freava os goles para segurar a dose, saborear o momento trágico e final na última talagada da cachaça.

–  Mas esse tal Churrasco era o que seu? – perguntou o Luizinho.

– Trabalhava para o papai nos roçados. Mas isso não importa. E papai sempre nos ensinava: “só ponha a mão no que é seu, só pega no que é dos outros em último caso, e mesmo assim se for a pedido do próprio dono da coisa, porque se…rã…”

– E o homem era bom na enxada e na viola? Pergunto do Churrasco – insistia o Luizinho.

– Nãnão…ninguém lá tinha mais força no braço pra capina igual eu não, sô…eu via aquela viola e sentia uma vontade de pegar nela. Ver se eu sabia tocar na bicha, sabe? Quer dizer, eu pensava que era viola também, porque o Churrasco tratava como viola. “Essa bicha é como se fosse a mulher do Churrasco”, o povo brincava. Mas era um violão.

(…)

– “Arrebentou duas cordilha da bicha. Fica essa falha feia no braço e no buraco”. “Pior é as músicas que saem tudo afrouxadas. Foi o Tacinho, esse cabeçudo que mete o dedo onde não deve.” Falavam assim comigo. Foi muito tempo ouvindo essas lamúrias. Era difícil achar alguém para trazer uma corda da cidade. E também era complicado porque cada corda tem uma finura, e nas muitas lojas só vendia o jogo completo das cordas.

– E seu pai?

– Me castigou com uma semana de capina sem ganho.

Depois foi o caso de um relógio – continuava o Sr. Tarcísio- que escorregou da minha mão como peixe e estourou no chão feito goiaba madura. Era do meu primo, mas disso papai nunca ficou sabendo.

Olhando esse radinho do Sr. Helvécio, pior de todos foi o rádio de minha madrinha. Fui na besteira de mexer na coisa e… “A rádia não manda mais notícia porque o Tacinho arrebentou o botão do aparelho”; “Ô meu Deus! Já era de se esperar…” mais essa chuva de lamúrias eu num ía aguentar…

– Já vi muito caso de gente mão-mole, mas no caso do senhor é o contrário.

Risos entre tragadas de cigarros. Ninguém interrompeu, esperando continuidade. E o contador continua:

– Vai escutando: fiquei muito chateado, triste… sabe? Nos dias que não deixei de dormir também almocei mal e nem jantei. De preocupação, de arrependimento. Pêso na consciência. Era mais u’a outra grande tragédia. O conselho do meu pai tintilava na minha idéia como o sino da igreja: “não põe a mão em coisa que não é sua…” Pensei até em pegar o facão…

– Cê num pensou em fazer u’a besteira dessa não, sô!?

– Pensei…ô?? Não só pensei como falei em cortar a mão, mas…

– Mas e aí?

– Mas minha irmã me deu o conselho, lembrando que ia dar mais trabalho ainda para os outros: lambrecar a camionete de sangue. E ainda mais com o pronto socorro naquela distância.

Então…hoje só ponho a mão no dinheiro que vem para ser meu e na mercadoria que vai para ser sua. Só pego na caneta para riscar o pagado e marcar o fiado devido. Faço o cálculo no papel que é meu, para não dar problema.

Quiseram me treinar para calcular em máquina. Falei: “nesse tipo de coisa dos outros eu não ponho a mão; só se um dia eu comprar ou ganhar u’a máquina dessas para mim.”

Das poucas vezes que peguei em aparelho dos outros deu em desgraça feia.

Não tomo nada emprestado. Não pego em nada dos outros para ver como funciona. Nas lojas, escolho a mercadoria sem pegar, olhando tudo no manuseio do vendedor. Depois que’u passo no caixa, aí a coisa já é minha. Se der qualquer quebrado, já paguei e o negócio sendo da minha posse, o prejuízo é meu. Ninguém pode mais falar nas minhas orelhas.

Daí o Sr. Tarcísio tornou a recolher as cadeiras e mesas dobráveis, de ferro, batendo-as com força, decidido, descarregando a raiva contida.

No balcão, o Sr. Helvécio havia desligado o rádio para não atrapalhar a conversa. Acertou a pinga e foi-se despedindo. Ao religar o aparelho – era chegada a hora do programa de piadas- o Lenoxx Sound Rp 60 não funcionou. Então disse baixinho consigo mesmo, conformado, o Sr. Helvécio:

– Acabou a pilha.

E como trovoada, o baixar das portas de aço do bar mercearia cortou o silêncio noturno do quarteirão.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano 181231.

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